domingo, 16 de agosto de 2020

Hélio Schwartsman Máscaras ferem a liberdade?, FSP

 

A direita global busca fundamentar sua oposição ao uso de máscaras e de medidas de distanciamento social numa suposta defesa da liberdade. Para essa turma, as restrições impostas por governos para controlar a pandemia violam o direito do indivíduo de dispor sobre si mesmo. Faz sentido?

Um autor insuspeito de pendores autoritários é John Stuart Mill, que escreveu “On Liberty” (1859), até hoje uma das mais eloquentes defesas da liberdade. Mill não deixava barato: “Na parte que concerne apenas a ele mesmo [o indivíduo], à sua independência, o direito é absoluto. Sobre si mesmo, o seu corpo e sua mente, o indivíduo é soberano”.

Mas Mill não era tolo. Não teve dificuldades para ver que a liberdade, posta em grau superlativo, entraria em choque não só com outros direitos relevantes mas também com as liberdades de outros indivíduos. Impôs, portanto, um limite a essa liberdade: o princípio do dano.

Retrato de John Stuart Mill, em 1870
John Stuart Mill, em 1870 - London Stereoscopic Company/Wikimedia

Para o filósofo, “a única situação em que o poder pode justificadamente ser exercido contra a vontade de qualquer membro de uma comunidade civilizada é para prevenir dano a outros”. “Dano” (“harm”) é uma palavra meio vaga, mas, ao utilizá-la, Mill tinha em mente perigos físicos concretos e iminentes e não meras percepções de ofensa.

Resta determinar se as restrições sanitárias satisfazem ao princípio do dano. Em minha modesta opinião, satisfazem. Acho até que constituiriam um exemplo que o próprio Mill usaria.

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Uma das características do Sars-CoV-2, afinal, é a de ser um vírus facilmente transmissível mesmo em fase pré-sintomática ou assintomática. Isso significa que qualquer um pode ser portador invisível da moléstia e contaminar outros através de perdigotos e aerossóis. Para uma fração dos infectados, a doença revela-se fatal. Máscaras e distanciamento, embora não eliminem o risco de contágio, o reduzem. No meu entender, é algo que devemos a nossos semelhantes.

Hélio Schwartsman

Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

Uso ou tráfico, Editorial da FSP

 A assim chamada guerra às drogas ocasiona tragédias evitáveis. Em 4 de julho, por exemplo, Lucas Morais da Trindade, 28, foi encontrado desmaiado em um presídio em Minas Gerais e, no mesmo dia, morreu de Covid-19. Ele fora condenado sob a acusação de ter vendido R$ 10 em maconha.

Não se trata de caso isolado. Um dos pilares da ineficiência da Lei de Drogas, de 2006, é sua imprecisão. Isso, combinado ao punitivismo do Judiciário, leva à aplicação seletiva da regra penal e ao maior encarceramento de negros e pobres.

Embora a lei avance ao excluir a prisão das sanções possíveis para o usuário de drogas, não chega a descriminar o uso nem fixa parâmetro que o diferencie do tráfico.

É devido a essa lacuna que fatores como raça e condição socioeconômica contribuem, por vezes implicitamente, para o entendimento de juízes e delegados pela punição mais grave. Assim concluíram especialistas em debate online transmitido ao vivo pela Folha.

Países como Portugal e Colômbia, de forma mais acertada, estabelecem quantidades de droga que diferenciam usuários e traficantes. No Brasil, a norma e a prática judicial privilegiam o encarceramento de jovens portadores de pequenos volumes de entorpecentes.

Fora a punição desproporcional, gasta-se dinheiro público em excesso com presídios superlotados, sem ganhos relevantes em segurança pública para a população.

Nesse tema, os três Poderes cometem erros diferentes. O ministro Luiz Fux, que assumirá em setembro a presidência do Supremo Tribunal Federal, já sinalizou que não deve pautar neste semestre o julgamento do recurso que discute a descriminalização do consumo.

Já o Senado aprovou às pressas no ano passado, em sintonia com o governo Jair Bolsonaro, diretrizes para uma política linha-dura de enfrentamento do problema.

Trata-se de insistir num caminho comprovadamente ineficaz —e particularmente cruel neste momento de pandemia. Os tribunais, com efeito, têm resistido a cumprir a recomendação do Conselho Nacional de Justiça para aliviar o sistema carcerário.

O encarceramento em massa, confundido com rigor diante do crime, acaba por colocar pessoas que não oferecem perigo à sociedade na condição de mão de obra em potencial para as facções organizadas que dominam os presídios.

editoriais@grupofolha.com.br

sábado, 15 de agosto de 2020

É o dinheiro das eleições!, OESP

 Adriana Fernandes*, O Estado de S.Paulo

15 de agosto de 2020 | 04h00

É a pressa do calendário político que move o acordo do presidente Jair Bolsonaro com lideranças partidárias do bloco do Centrão para enviar ao Congresso uma Medida Provisória (MP) que abre um crédito extraordinário de cerca de R$ 5 bilhões para custear investimentos em infraestrutura e ações indicadas por parlamentares. 

Esse tipo de crédito é uma das poucas exceções possíveis para que despesas fiquem livres de qualquer limitação imposta pelo teto de gastos e pode ser feito por meio de MP. É com esses créditos que o governo tem liberado recursos para o enfrentamento da covid-19 no chamado orçamento de guerra.

Em ano eleitoral, os parlamentares querem mesmo é ver recursos na mão e bem rápido. Simples assim. A pandemia do coronavírus é só o pano de fundo. Não há uma política coordenada, bem desenhada e planejada de investimentos públicos para estimular a retomada econômica, como defendem muito economistas de dentro e fora do governo.

Paulo Guedes
Mudança no Orçamento de 2021 para permitir o aumento dos gastos vai acontecer com ou sem Guedes. Foto: Evaristo Sa/AFP

Como o Palácio do Planalto argumenta que a quantia de R$ 5 bilhões não é tanto dinheiro assim e que há espaço fiscal, Bolsonaro bem que podia tentar um remanejamento de recursos do Orçamento via crédito suplementar. 

O problema técnico e político do crédito suplementar é que ele tem que ficar dentro do teto e só pode ser aberto se cancelar outra dotação orçamentária. Pelo valor proposto, o mais provável é que a liberação dos recursos exigisse, ao final, projeto de lei e não a edição de um decreto. Levaria, portanto, mais tempo, o que os políticos não têm.

Bolsonaro teria que mandar o projeto pelo Congresso e, dessa forma, enfrentar mais negociações por causa do controle da pauta de votação. Mas há urgência para gastar tudo até dezembro, e não deixar restos a pagar para 2021, que são aquelas despesas transferidas de um ano para o outro.

O comando do Ministério da Economia não ofereceu resistências à MP e não viu problemas jurídicos no uso de créditos extraordinários embasado nas regras do orçamento de guerra. Pelo contrário, divulgou nota apontando sua posição de que a medida está em consonância com a legislação. 

Segundo o ministério, o orçamento de guerra permite a ampliação de gasto sem 2020 desde que respeitado o “princípio exclusivo de enfrentar a calamidade e suas consequências econômicas e sociais”. Técnicos especialistas em Orçamento questionam, no entanto, o fato de a Constituição restringir o uso a “despesas imprevisíveis e urgentes”.

Aliás, é bom lembrar que o acordo da MP foi acertado no encontro “histórico” desta semana entre Bolsonaro, ministros, lideranças políticas e os presidentes do Senado e da Câmara. Na reunião, o ministro Paulo Guedes conseguiu o apoio que queria depois da “debandada” da equipe que fragilizou a sua agenda liberal. No encontro, todos reafirmaram o compromisso com o teto e a tal responsabilidade fiscal.

Mas só que não.

O que está em curso é uma negociação para gastar mais em 2021. Os lados estão fazendo os seus acertos e a forma de fazê-lo. Para muitos observadores da cena política em Brasília, está cada vez mais claro que essa mudança acontecerá mais cedo (2020) ou mais tarde (2021), com ou sem Paulo Guedes.

Será com ou sem dor. Sem dor: mudando o teto logo por meio de tampão. Com dor: como tenta o ministro da Economia, acionando gatilhos de medidas automáticas de corte de despesas, como proibição de criação de despesas obrigatórias, eliminação de renúncias e gastos com pessoal e programas com o abono salarial. 

Os gatilhos são tão duros e demandará muita articulação política para aprová-los. Os líderes vão querer enfrentar esse desgaste ou farão corpo mole? Nada mais urgente do que construir essa saída e com planejamento até para não faltar dinheiro para saúde e programas sociais em 2021 – esse, sim, os problemas mais urgentes. 

O tamanho do ajuste de rota veremos mais à frente. Vai depender da empolgação do presidente com o aumento da popularidade e dos compromissos que estão acertados com os parlamentares do Centrão.

Bolsonaro quer chegar vivo em 2022 e com gás para sair vencedor nas eleições. Depois é que são elas.

*É JORNALISTA