domingo, 21 de abril de 2019

Salvar o que resta, Janio de Freitas, FSP

Desgaste maior do Supremo fortaleceria o plano da extrema direita

Na situação extravagante em que está o Brasil, as decorrências sutis das anormalidades são piores do que a turbulência evidente, como a originada na reação polêmica do Supremo Tribunal Federal a ameaças e ataques. Caso os ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes não tragam, com as investigações em curso, conclusões que justifiquem suas criticadas providências, o incremento à perda de autoridade do Supremo será grande e gravíssimo.
Não passa de bom tranquilizante a crença na firmeza da democracia incipiente em que estamos. Não pela presença, no poder, dos generais reformados que alicerçam o governo e servem de pedestal para Jair Bolsonaro posar de presidente. Os ventos poluídos vêm de outro quadrante.
Com a imprevista vitória eleitoral de Bolsonaro, a extrema direita passou a considerar viável o seu projeto, que, por definição, não se destina a um regime de consolidação do Estado democrático de Direito, liberdades civis, eleições livres, pluralidade política. Muito ao contrário. Tal projeto é que explica as escolhas desatinadas na composição do governo, continuadas a cada dia. Anúncios frequentes de medidas insensatas, umas, revoltantes outras. E mesmo atitudes que perturbam ministros, para maior embaraço da governança.
Estátua em frente ao STF (Supremo Tribunal Federal)
Estátua em frente ao STF (Supremo Tribunal Federal) - Alan Marques/Folhapress
Por mais que a atual composição do Supremo possa ser insatisfatória, na média, para o devido pelo mais alto tribunal, por certo o é também para o plano de extrema direita. Por isso, Bolsonaro e os direitistas que o circundam incluíram no projeto da Previdência, apresentado por Paulo Guedes, a antecipação de cinco anos na aposentadoria compulsória de ministros dos tribunais superiores. Do Supremo, pois. Se aprovada, a antecipação permitirá a Bolsonaro nomear ministros ao seu feitio. São citados, aliás, para a primeira nomeação, João Gebran, desembargador da corrente extremada no Tribunal Regional Federal do Sul, e depois, claro, o retribuído Sergio Moro.
Desgaste maior do Supremo, portanto, fortaleceria o plano da extrema direita. Duvidosa embora, para muitos estarrecidos com a série de decisões decepcionantes do tribunal, ainda é lá que permanece a possibilidade de dificultar-se o plano medievalesco personificado em Jair Bolsonaro.

PREPARATIVOS

Eduardo Bolsonaro, deputado, anda pela Europa para contatos com líderes da extrema direita. De sua missão só se sabe que boa coisa não pode ser.
general Augusto Heleno Pereira, do Gabinete de Segurança Institucional e um caso à parte entre os generais do governo, requereu e Sergio Moro determinou: ocupação da Esplanada dos Ministérios pela Força Nacional. Por 33 dias. Para “prevenir manifestações”, sobretudo motivadas pelo Dia do Trabalho. Não um mês ou dois, mas 33 dias precisos. E por causa de um.

EMANADAS

Em pazes com a imprensa, Bolsonaro pede a publicação de “palavras, letras e imagens que estejam perfeitamente emanados com a verdade”. O “emanados”, ainda mais “com”, não dá nem para saber se, em português, quereria dizer “irmanadas com” ou “emanadas da”. E publicação de letras, para quê? Bem, no que me cabe, aí vão: A n a L F.
Fernando Henrique Cardoso é sempre colaborativo. Motivado pelo suicídio do peruano Alan García, deu um de seus habituais ensinamentos: propõe “simplicidade no viver”, como ele faz em clubes de golfe e polo, e “respeito à lei” (nas privatizações, por exemplo), “ou há risco de ditadores enganarem o povo com discursos enganosos”. E enganar sem discurso enganoso, pode ser?
Janio de Freitas
Jornalista

Estudo obsessivo da luz e da visão está por trás de obras geniais de Da Vinci, FSP

Artista foi pioneiro da aplicação do método científico à arte e pesquisou com afinco as propriedades físicas e matemáticas da luz

O resultado das tentativas obcecadas de Da Vinci de compreender como luzes e sombras se comportam no mundo real são obras-primas como "A Última Ceia" Reprodução
Reinaldo José Lopes
SÃO CARLOS
Não foi apenas a genialidade em estado bruto que transformou Leonardo da Vinci (1452-1519) no pintor mais famoso de todos os tempos. Pode-se dizer que o artista italiano foi o pioneiro da aplicação do método científico à arte, estudando com afinco as propriedades físicas e matemáticas da luz para conferir a seus quadros uma vivacidade ímpar.
Da Vinci também usou seus talentos como anatomista para tentar entender como as imagens eram captadas pelo olho humano e transmitidas ao cérebro, alcançando alguns insights sobre o tema que só seriam confirmados séculos mais tarde.
O resultado dessas tentativas obcecadas de compreender como luzes e sombras se comportam no mundo real são obras-primas como “A Última Ceia” (reproduzida abaixo), “Mona Lisa” e outras menos conhecidas, como “Dama Com Arminho” e “La Belle Ferronière”, nas quais cada detalhe de como os raios luminosos adentram um ambiente e ricocheteiam em pessoas e objetos foi pensado com antecedência. Eis um dos grandes motivos pelos quais Leonardo demorava para terminar seus quadros e deixou muitos deles inacabados: sua meta era a perfeição científica, e não apenas artística.
Duas palavras italianas que entraram para o vocabulário técnico das artes plásticas ajudam a entender como o mestre florentino concebia a pintura. Os termos-chave são sfumato (literalmente “esfumado”, algo que se desfaz como fumaça) e chiaroscuro (“claro-escuro”, o uso de contrastes entre luz e sombra).
“As sombras e luzes que desenhais devem se mesclar sem linhas ou fronteiras, à maneira da fumaça que se perde no ar”, escreveu Leonardo numa coleção de máximas dedicadas a jovens pintores (que ele não publicou em vida, assim como ocorreu com quase todos os seus textos).
Com efeito, observações e experimentos de óptica que realizou ao longo da vida o levaram a concluir que o olho humano nunca capta linhas totalmente definidas separando um objeto do outro, mas gradações contínuas, que um artista habilidoso é capaz de reproduzir.
“Entre a luz e a escuridão há uma variação infinita, porque a quantidade delas é contínua”, escreveu ele. (Essa visão predominaria até a revolução da física quântica no século 20, quando se descobriu que, na verdade, existem “pacotes” não contínuos e indivisíveis de luz, os fótons ou partículas luminosas, mas a percepção humana usual bate com a afirmação de Leonardo.)
Traçando diagramas da propagação dos raios luminosos em seus intermináveis cadernos, Da Vinci estipulava regras para o ambiente imaginado de seus quadros levando em consideração as proporções entre os objetos pintados e a fonte de luz hipotética que os ilumina.
“Se o corpo é maior do que a luz, a sombra lembra uma pirâmide invertida e truncada, e seu comprimento também não tem uma terminação definida. Porém, se o corpo é menor do que a luz, a sombra lembrará uma pirâmide e chegará a um fim, como se vê nos eclipses da Lua”, detalhou o mestre em suas anotações.
“Ele criou diversas categorias de sombras e propôs escrever capítulos sobre cada uma delas em seu futuro tratado sobre o tema, nunca publicado”, diz um de seus biógrafos, o escritor americano Walter Isaacson, no livro “Leonardo da Vinci”. Entre elas estavam: sombras primárias criadas pela luz incidindo diretamente sobre um objeto, sombras derivadas que resultam da luz ambiente se difundindo pela atmosfera, sombras suavemente “salpicadas” pela luz refletida em objetos próximos —a lista é longa.
Entre seus rascunhos sobreviveu também um desenho detalhado dos nervos ópticos, que saem da parte de trás do olho e se encaminham para o cérebro, levando as informações visuais para o órgão.
Da Vinci dissecou dezenas de cadáveres para obter esses dados, chegando até a criar uma técnica específica voltada para a análise post-mortem do olho humano. Para evitar que o delicado tecido ocular mudasse de forma quando fosse cortado, ele recomendava o seguinte: “Deve-se colocar o olho inteiro dentro de uma clara de ovo, fervê-la até ficar sólida e depois cortar o ovo e o olho transversalmente, para que a porção média do globo ocular não seja derramada”.
Juntando essas observações ao raciocínio matemático, Leonardo concluiu que as imagens não eram formadas pela incidência da luz num único ponto do olho, mas de forma “espalhada” em diversos pontos da retina (na verdade, na época dizia-se que isso acontecia na pupila), o que se revelou correto.
Por outro lado, acabou “travando” na tentativa de entender como o olho consegue corrigir as imagens, que deveriam chegar de ponta-cabeça ao cérebro ao passar pela abertura da pupila. “Ele não percebeu que o próprio cérebro é capaz de fazer esse ajuste”, escreve Isaacson.
A capacidade de observação prodigiosa de Leonardo também permitiu que ele reproduzisse os gestos associados às emoções humanas de modo que não alcançaria paralelos em sua época (e que, de certa maneira, antecipa os estudos que psicólogos e naturalistas, incluindo o próprio Darwin, fariam sobre o tema no século 19).
O resultado mais emblemático disso é o “cinema” dos gestos dos apóstolos em “A Última Ceia”. Cada gesto e expressão são espelhos do estado de espírito dos personagens no drama retratado pelo artista. 

40 anos de quase-estagnação, Bresser-Pereira, FSP (definitivo)

Luiz Carlos Bresser-Pereira
De repente, meus colegas economistas descobriram o que eu gritava indignado há tempo: a economia brasileira está quase-estagnada desde 1981. Em 2001, falei em 20 anos de quase-estagnação; em 2007, quando o Cristo Redentor foi transformado em um foguete espacial, publiquei o livro “Macroeconomia da Estagnação”. Nos anos seguintes, os títulos de alguns dos meus trabalhos começavam com uma contagem progressiva: “Brazil’s 34 years... 35 years... 36 years old quasi-stagnation”.

Neste mês, talvez porque o FMI publicou um livro reconhecendo o problema (“Brazil: Boom, Bust, and the Road to Recovery”), leio no jornal Valor Econômico três artigos de competentes economistas brasileiros, Carlos Luque, Simão Silber e Roberto Zagha, da USP (5.abr), Castelar Pinheiro, da FGV (5.abr), e Mário Mesquita, economista-chefe do Itaú-Unibanco (4.abr), assinalando nosso triste fracasso econômico.

O título mais significativo é o de Mesquita: “Os 40 miseráveis e o FMI”. Mas, leitores, não é o FMI o culpado. A melhor coisa do livro é a definição da quase-estagnação. Eu sempre comparo a taxa de crescimento per capita do Brasil de 4,5% ao ano, de 1950 a 1980, uma taxa extraordinária, com os tristes 0,9% ao ano desde então. O FMI compara o crescimento do Brasil com o dos demais países em desenvolvimento e com os países ricos: nesse período “o crescimento do PIB per capita de 0,9% ao ano, em média, compara-se mal com os 3% das outras economias emergentes e em desenvolvimento e o 1,7% das economias desenvolvidas” (pág. 4).

Como isso pôde acontecer? A explicação de economia política pode ser resumida em uma frase: os trabalhadores, os capitalistas rentistas e a alta burocracia pública preocupam-se apenas com seu consumo imediato: os trabalhadores priorizam o aumento dos salários e veem na expansão da despesa pública o caminho para o desenvolvimento; os rentistas, representados pela ortodoxia liberal, justificam seus juros altos com o fantasma da inflação e veem no corte da despesa pública, inclusive o investimento público, a solução de todos os males; a alta burocracia pública, corporativista, que se legitima pela luta contra a corrupção, ignora o problema do desenvolvimento. Em outras palavras, o Brasil foi dominado nestes 40 anos pelo populismo fiscal (déficits públicos) do primeiro grupo, pelo populismo cambial (crescimento com “poupança externa” ou déficits em conta-corrente) do segundo, e pelo corporativismo do terceiro.

A preferência pelo consumo imediato, que reduz a acumulação de capital e o crescimento, transparece na simples comparação de 2016-2017 com 1976-1978: o investimento público no país caiu brutalmente, de 9,5% para 2,1% do PIB, queda esta não compensada pelo setor privado, que continuou investindo 15% do PIB. Boa parte da queda do investimento público pode ser explicada pelos juros pagos pelo Estado aos rentistas, que subiram de 2,2% para 6,3% do PIB.
 
Há solução para essa quase-estagnação velha de 40 anos? A solução liberal é impensável; falta ao liberalismo econômico a ideia de nação e a capacidade de combinar de forma equilibrada a coordenação econômica do mercado (insubstituível quando este é competitivo) e a do Estado, imprescindível para os setores não competitivos e para os cinco preços macroeconômicos que o mercado não tem capacidade de coordenar. A solução desenvolvimentista é uma alternativa, mas desde que não seja desfigurada pelo populismo fiscal ou por pura incompetência.

Qualquer solução depende de uma mudança profunda na forma de pensar das elites econômicas, políticas e intelectuais brasileiras. Entre os anos 1930 e os anos 1980, elas foram predominantemente desenvolvimentistas; desde 1990, liberais.

A direita liberal supõe guiar-se pela razão, mas hoje reflete apenas os interesses de rentistas e financistas e os interesses estrangeiros; a esquerda acredita guiar-se pela justiça, mas justiça sem desenvolvimento econômico é a perpetuação da miséria dos pobres e a emigração dos filhos da classe média educada para onde haja emprego.
Luiz Carlos Bresser-Pereira
Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)