sexta-feira, 19 de abril de 2019

Notre-Dame de Paris: duas observações, João Pereira Coutinho, FSP

V

A catedral não é uma relíquia do passado muito menos uma ONG

1) Assisto ao incêndio da Notre-Dame de Paris pela TV –estranha coisa, essa, de ver a destruição em tempo real– e penso no saudoso senhor meu pai.
A primeira vez que visitei a catedral foi com ele e por causa dele, teria eu uns 15 anos. Hoje, quando usamos o adjetivo “medieval”, continuamos herdeiros dos filósofos iluministas, para quem a história parara depois das invasões bárbaras e só recomeçara no Renascimento.
Público aguarda a Via Crúcis nesta Sexta-Feira Santa em frente à Notre-Dame de Paris - Stephane de Sakutin/AFP
(Ou, então, acreditamos em Quentin Tarantino, que reserva para os vilões dos seus filmes um tipo de tratamento com esse qualificativo.) 
Nada mais falso, dizia o meu pai, um fanático pela Idade Média para quem a história parara, sim, mas depois do século 14. Se existe período que merece o nome de renascimento, acrescentava ele com devoção, esse período começa no ano mil e vai até à Peste Negra.
São três séculos gloriosos de civilização e arte, em que os homens se reproduzem como nunca; se alimentam como nunca; estudam como nunca; realizam trocas comerciais como nunca; constroem como nunca; e viajam como nunca. A prova?
Ali estava, apontava ele para a Notre-Dame. Longe iam os tempos em que as casas de culto eram pequenas, modestas, grosseiras. A catedral gótica era a expressão da riqueza de um tempo –riqueza material e, sobretudo, espiritual, com as paredes a elevarem-se para o céu como se fossem orações (cito de memória).
Para aquele homem, os medievais não eram fantasmas rústicos que viviam em outro planeta. Eram nossos contemporâneos, partilhando os desejos e os medos que é possível encontrar no homem do século 21.
Como professor que era, aconselhou-me bibliografia. Sobretudo Georges Duby, que eu li e agora reli. O homem medieval, escreveu o historiador francês, tinha medo da miséria, do outro, das epidemias, da violência e do além. E nós?
Nós não somos assim tão diferentes. Medo da miséria? Continua a ser uma angústia, mesmo ou sobretudo no meio de tanta afluência.
Medo do outro? Basta olhar para os nacionalismos agressivos, para quem os “estrangeiros” são os novos bárbaros.
Medo das epidemias? Nunca a saúde foi tão santificada como hoje.
Medo da violência? Uma preocupação que pode determinar resultados eleitorais.
Só não temos medo do além, talvez por não acreditarmos nele. Mas temos medo do aquém: o medo da morte nunca foi tão drástico.
A Notre-Dame de Paris não é uma relíquia do passado; é um monumento do presente onde podemos ver e projetar a nossa eterna humanidade.
2) Certa vez, contei a um grupo de amigos a minha visita à Capela Sistina. Falei do teto, daquele teto, que Michelangelo pintou em idade avançada. Alguém do grupo retorquiu: “E os pobres que passavam fome?”
É um comentário inteligente. Na cabeça do parceiro, se o papa não tivesse encomendado a obra a Michelangelo, ele teria comprado pão a todos os pobres de Roma, ou de Itália, ou da Europa.
Que a opção, no século 16, não fosse entre o teto ou os pobres mas entre o teto ou nada, eis uma hipótese que não perturbou aquela cabeça.
Agora, com o incêndio da Notre-Dame de Paris, esse argumento voltou a soar forte. Os milionários franceses já conseguiram juntar 900 milhões de euros para a reconstrução da catedral?
Hipocrisia, gritam os moralistas; eles deveriam gastar o dinheiro em ajuda humanitária, acrescentam. Uma vez mais, e na sabedoria dos moralistas, a opção não é entre a catedral ou nada; é entre a catedral ou uma ONG.
Se esse raciocínio fosse levado a sério, e aplicado retroativamente na história, não seria apenas o teto da Capela Sistina a desaparecer. Seria toda a arte ocidental, ou uma parte generosa dela, que sempre dependeu das boas graças dos mecenas.
De que nos servem as esculturas de Donatello se a família Médici não ajudava os pobres?
Que interessam as “Meninas” de Velázquez se Filipe 4º, rei de Espanha, não acabou com todos os miseráveis do país? (O país dele e, já agora, o país do lado, Portugal, então sob domínio filipino.)
E como tolerar Picasso ou Chagall se Peggy Gunggenheim não adotou todas as crianças órfãs do seu tempo?
É assim o mundo dos simples.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Suicídio de Alan García tem paralelos com o de Getúlio, diz analista britânico , FSP


Sylvia Colombo
BUENOS AIRES
Para o colunista da revista britânica The Economist e ex-correspondente da publicação no Peru, Michael Reid, o suicídio de Alan García tem paralelos com o de Getúlio Vargas (1954).
"Ambos haviam tido um primeiro mandato no passado que consideravam exitoso e quiseram reviver isso depois num segundo período. Ambos também eram animais políticos e, quando se viram pressionados a ter de ficar de fora da política, preferiram se matar. E, em terceiro, diria que mesmo tendo cometido erros, eram homens inteligentes. Ambos bons oradores, afirmou.
García, 69, foi presidente do Peru por duas vezes, de 1985 a 1990 e de 2006 a 2011. Ele se suicidou nesta quarta-feira (17) em sua casa em Lima após receber ordem de prisão. 
O ex-presidente era investigado por sua ligação com o escândalo revelado pela Lava Jato na América do Sul em dois casos: ter recebido verbas ilegais da Odebrecht durante a campanha eleitoral de 2006 e por ter favorecido a empreiteira brasileira na licitação das obras da linha 1 do metrô de Lima. 
A Procuradoria peruana ainda investiga se o pagamento de US$ 100 mil que a Odebrecht fez a García por uma conferência na Fiesp (Federação de Indústrias de São Paulo), em São Paulo, em 2012, está relacionado a pagamentos ilícitos em troca de benefícios à empreiteira brasileira.
Já Getúlio, que governou o Brasil por dois períodos (1930-1945 e 1951-1954), se suicidou enquanto ainda estava no cargo, em meio a uma crise política que tinha engolido seu governo. 
O ex-presidente do Peru Alan García - Cris Bouroncle - 3.abr.16/AFP
Para Reid, autor do livro "Forgotten Continent" (continente esquecido), sobre a América Latina, as declarações de García sobre a falta de evidências concretas para sua acusação são corretas.
"A única das acusações contra ele de que se tem prova concreta é que ele recebeu dinheiro da Odebrecht pela palestra na Fiesp, em São Paulo. Mas essas coisas são pagas, são legais. Estabelecer um vínculo com subornos em seu governo a partir apenas dessa evidência é algo que não se sustenta muito. Não digo que não tenha sido corrupto, mas é verdade que ainda faltavam evidências contundentes para prendê-lo agora."
Reid crê que o Peru se diferencia dos outros países latino-americanos nesse caso do escândalo da Odebrecht, com investigações e prisões de quase todos os ex-presidentes, porque "há uma geração nova na Justiça, que se mostrou engajada em levar adiante as investigações".
"Em segundo lugar, o Peru é um país que sempre contestou muito seus governantes, tanto que eles perdem a popularidade sempre muito cedo. Essa tradição da cultura histórica ajuda a acelerar o processo. Também creio que a imprensa se empenhou muito em divulgar os casos de corrupção."
Para o jornalista, a morte de García não vai mudar a opinião geral dos peruanos, "de que era um líder arrogante e corrupto", mas também o transformará em vítima para os apoiadores de um partido que tem "muita mística", o Apra, o que pode significar um crescimento da sigla num futuro a médio prazo.

Chegou a hora de reescrever a história da transição democrática, Matias Spektor, FSP

Episódio envolvendo o Supremo permite fazer o ajuste de contas com o passado

Estátua da Justiça, em frente ao prédio do Supremo Tribunal Federal, em Brasília
Estátua da Justiça, em frente ao prédio do Supremo Tribunal Federal, em Brasília - Alan Marques - 12.nov.12/Folhapress
reação de ministros da corte suprema a suspeitas sobre o possível envolvimento de magistrados com corrupção política é alarmante porque viola a Constituição. 
No entanto, esse episódio tem um poderoso efeito pedagógico. Ele permite, finalmente, fazer o necessário ajuste de contas com o passado. Explico. 
Nos últimos 30 anos, vingou a tese da suposta transição exitosa para a democracia. A narrativa dominante apresenta o Brasil como um caso de sucesso, em que pesem os vários percalços no meio do caminho.
Claro, essa visão reconhece que a travessia não foi perfeita. Mas as imperfeições são descritas como um mero resquício autoritário —aquela sobra incômoda que sempre tem numa obra grande e bem-sucedida. Não à toa, a expressão comum para descrever esses restos é “entulho autoritário”. 
Essa continua sendo a forma hegemônica de descrever os últimos 30 anos. Segundo ela, o entulho atrapalha, mas não inviabiliza. Basta dar tempo ao tempo que uma democracia plena nascerá graças ao acúmulo de anos de governança virtuosa por parte de instituições democráticas, que estariam funcionando muito bem. 
Tal visão da história ainda impera incólume em livros, artigos, universidades e na grande imprensa. Durante a década de 2000, quando o crescimento econômico puxado pela China permitiu esquecer o conflito redistributivo, ela virou dogma. 
Alguns acadêmicos chegaram a vislumbrar um futuro próximo no qual o Brasil teria uma democracia de qualidade similar àquela hoje vista em Portugal e Espanha, exemplos de transições bem-feitas para longe do autoritarismo.
Ocorre que, nos últimos cinco anos, esse dogma ruiu. Aprendemos que o Executivo usa recursos de conglomerados privados para comprar o Legislativo.
Em conluio, políticos e empresários compram juízes e capturam agências reguladoras. Juntos, abocanham nacos da política de defesa e sequestram parte da política externa. As milícias servem como cabos eleitorais, enquanto o narcotráfico financia candidatos. Clientelismo e compra de voto não ficaram num distante passado arcaico. Permanecem vivos. 
censura impulsionada desde o STF é parte do pacote. Ela coroa as recentes revelações sobre como a corte funciona na prática, e o cenário é desolador. 
Por isso, passou da hora de trocar a velha tese da transição bem-sucedida por outra, mais precisa. A dimensão autoritária da atual democracia não se resume ao escombro da reconstrução pós-ditadura. Ela é central a seu funcionamento. 
É necessário um esforço coletivo para reescrever essa história à luz das novas evidências. Só assim entenderemos por que o velho pacto oligárquico conseguiu sobreviver à Nova República. 
Matias Spektor
Professor de relações internacionais na FGV.