Cenas lamentáveis de 2019 são o ápice de uma deterioração que começou em 2000
Vera Magalhães, O Estado de S.Paulo
03 Fevereiro 2019 | 03h00
A derrota de Renan Calheiros é um marco delimitador de uma crise do Senado que durou quase 20 anos. Curiosamente, o processo começou com uma briga de titãs entre PMDB e PFL, nas figuras de Jader Barbalho e Antonio Carlos Magalhães, e ontem teve seu episódio mais bizarro protagonizado por MDB e DEM, as versões repaginadas no nome, mas não nas práticas, dos mesmos partidos.
Em 2000, o Senado cassou o primeiro senador de sua história, o hoje presidiário Luiz Estevão. Começava ali a deixar de ser a Casa das altas discussões e da aposentadoria dos políticos para frequentar o noticiário policial. Naquela votação, o então todo-poderoso ACM exigiu que uma funcionária do Prodasen, Regina Célia, extraísse e lhe fornecesse a lista de como votaram os senadores, em escrutínio secreto.
Estevão era do PMDB de seu arqui-inimigo Jader. ACM passou a usar a lista para chantagear senadores que votaram no escurinho para salvar o mandato do brasiliense. A violação se tornou pública, ACM teve de renunciar ao mandato para não ser cassado, logo em seguida Jader enfrentou o mesmo processo e o Senado nunca mais voltou a ser o mesmo.
Renan, o velho Renan, viveu seu calvário em 2007, quando sobreviveu a cinco pedidos de cassação sucessivos. Começou com a acusação de que usara dinheiro de empreiteira para pagar pensão à filha que teve com uma amante, resvalou para negócios mal explicados com a compra de gado, desaguou em denúncias de uso de laranjas para emissoras de rádio e outros problemas. Se safou de todas.
Dois anos depois foi a vez do escândalo dos atos secretos de José Sarney, unha e carne com Renan. De novo, um peemedebista se safou de sucessivos pedidos de cassação. De novo no voto secreto. O reinado do PMDB no Senado dura desde 2001, com um breve período, na renúncia de Renan, em que o petista Tião Viana (AC) assumiu.
O desespero demonstrado pelo antes frio e calculista Renan, distribuindo em público, a golpes de cusparadas no microfone, as ameaças que sempre fez a seus pares em privado, foi a reação de um dos poucos sobreviventes da onda de renovação de outubro às evidências de que, por mais que ainda use as manobras nas quais é expert, seu tempo está chegando ao fim.
Renan caiu. Teve sua maior derrota no Senado. Foi vaiado por senadores novatos, desafiado dentro da bancada, derrotado no voto secreto. Levou um nó tático até mesmo em matéria de manobras de um novato como Davi Alcolumbre e de um articulador político neófito e questionado, o ministro Onyx Lorenzoni, da Casa Civil, que sai vitorioso de sua primeira batalha.
Tal qual o inseto que citou duas vezes, o tal cavalo do cão, que tem uma ferroada considerada letal e enfrenta mesmo bichos maiores, Renan tentará ir à forra da derrota tendo o governo Jair Bolsonaro como alvo. Antes um entusiasta das reformas, deve passar ato contínuo a miná-las.
A reforma da Previdência começa na Câmara, onde deverá ter o trâmite facilitado pela vitória sem sobressaltos de Rodrigo Maia (DEM). Depois chegará ao Senado.
Por mais que tente armar a picada, Renan, o cavalo do cão, está com o enxame reduzido a poucos espécimes. Alguns do MDB e outros de um anêmico PT, que foi um coadjuvante assustado da batalha do Senado, como já havia sido na Câmara.
A queda de Renan mostra que os ecos de outubro de 2018 não se restringiram à onda que varreu velhas raposas, ainda que algumas tenham se segurado nos galhos. Não fosse a opinião pública, talvez o emedebista tivesse conseguido operar no terreno em que antes era mestre. Sua queda encerra um ciclo de 20 anos de crises no Senado. Que depois de uma catarse pública vexatória nos últimos dois dias a Casa volte a ser a Câmara alta e deixe de se rebaixar.