segunda-feira, 16 de abril de 2012

A realidade fora do tribunal


Para médico, mulheres devem receber as informações do diagnóstico e do prognóstico; a partir daí, cabe a elas decidir

15 de abril de 2012 | 3h 09
Thomaz Gollop - O Estado de S.Paulo

Mesmo depois de votada a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 - Anencefalia -, é preciso esclarecer pontos importantes. Várias lições foram aprendidas por todos que acompanharam cuidadosamente a votação encerrada quinta-feira no Supremo Tribunal Federal (STF). Quase ao final da votação o ministro Lewandowski afirmou que haveria graus variados de anencefalia. A ciência estabelece que anencefalia é uma malformação congênita grave e incompatível com a vida, caracterizada por ausência de encéfalo e de crânio, permanecendo apenas a base do crânio. Ela é uma entidade única e não é subdividida em graus. Em 100% dos casos é mortal. Os fetos portadores dessa anomalia sobrevivem minutos ou dias após o nascimento. Anencefalia é um diagnóstico preciso e único: ausência de crânio, encéfalo, existindo apenas a base do crânio. Existem outras malformações do sistema nervoso que são raras e distintas da anencefalia: acrania e merocrania, das quais não trata a ação apresentada ao STF.
Outra questão importante: autorizada a antecipação do parto em gestações acompanhadas de fetos anencéfalos estaria, segundo alguns, aberta uma porta para a ampliação dos permissivos legais do aborto. Certamente não, levada em consideração apenas essa decisão do STF. Muito bem falou o ministro Ayres Brito em seu voto: "Todo aborto é uma interrupção de gestação, mas nem toda interrupção de gestação é um aborto". Em todos os fóruns, nacionais e internacionais, incluído nosso Conselho Federal de Medicina, o feto anencéfalo é considerado um natimorto cerebral. Logo, não se trata de aborto, por não haver feto viável. Mais ainda, afirmou Ayres Brito: se os homens engravidassem, essa questão já estaria resolvida há muitos anos!
Foi importante absorver as lições que embasaram o voto do relator - ministro Marco Aurélio - ao elencar, entre outros, princípios que devem ser caríssimos à nação brasileira como laicidade do Estado, direitos reprodutivos e sexuais, autonomia das mulheres, não submeter ninguém (as mulheres no caso) a tratamento indigno ou a tortura. Verifica-se que o julgamento da ação foi muito além do foco central que a originou. No Brasil ainda é pouco difundido o conceito de laicidade do Estado: respeitam-se todas as religiões e mesmo quem não possui nenhuma. Cada uma pode manifestar-se sobre qualquer questão que diga respeito aos cidadãos(ãs), mas nenhuma delas deve interferir sobre questões que dizem respeito ao Estado. Nesse sentido, questões do Direito são públicas e questões de fé são privadas.
Em relação à autonomia das mulheres, deverá ficar claro que a decisão do STF não obriga as mulheres a anteciparem o parto em casos de anencefalia. Elas deverão receber todas as informações relativas ao diagnóstico e prognóstico fetal, assim como eventuais riscos para a saúde da gestante. O apoio psicológico será muito importante. A partir disso, cada mulher decidirá se quer manter a gravidez e, consequentemente, ser seguida em unidade obstétrica competente ou, ao contrário, interrompê-la. Naqueles casos em que a mulher se decidir pela interrupção, será seguido um protocolo de atendimento que está em fase final de elaboração na Área Técnica da Saúde da Mulher do Ministério da Saúde e orientará os profissionais de saúde na atenção ao abortamento em casos de anencefalia, conforme a norma técnica do ministério "Atenção Humanizada ao Abortamento" (2011), nos casos previstos em lei. Na verdade já há muitos precedentes de atendimento às mulheres nessa condição, pois nos últimos 23 anos os juízes de primeira instância concederam, caso a caso, alvarás judiciais e as mulheres foram então atendidas sem que se tenha notícias de dificuldades na prestação desse serviço. Não haverá, portanto, sobrecarga no Serviço Único de Saúde (SUS).
As causas dessa grave anomalia congênita são geográficas, sazonais, genéticas e nutricionais. Sobre as três primeiras não podemos ainda interferir. Entretanto, desde 1973 sabemos que a deficiência de ácido fólico (vitamina B9) é responsável por aproximadamente 50% dos casos de anencefalia. Por essa razão o Ministério da Saúde tem uma política pública que consiste em acrescentar ácido fólico às farinhas e com isso contribuir para a minimização da ocorrência e recorrência da anencefalia. Além disso, é ensinado aos médicos obstetras prescreverem ácido fólico na dose de 4 mg pelo menos um mês antes da gestação e nos primeiros dois meses da gravidez. Esse é um medicamento barato e disponível no SUS. E em relação à precisão e disponibilidade de diagnóstico? O diagnóstico é 100% seguro com uma única ultrassonografia a partir de 12 semanas de gravidez. Dizia com razão o saudoso professor José Aristodemo Pinotti que há dois diagnósticos ultrassonográficos em obstetrícia que não têm erro: óbito fetal e anencefalia. Qualquer serviço público ou privado está habilitado a fazê-lo.  
THOMAZ GOLLOP É MÉDICO OBSTETRA, ESPECIALISTA EM MEDICINA FETAL

Fotografando o que não existe


CLAUDIO EDINGER, Aliás, dia 15/4/2012
Quando fui fotografar num centro espírita em São Paulo voltei pra casa com um legítimo Picasso, comprado por R$ 50 à vista. Sensacional! Aproveitei e encomendei ao médium uma foto psicofeita por Cartier-Bresson. Ele mandou avisar que aguarda o momento decisivo certo...
Picasso dizia que a arte é uma mentira que conta a verdade. Falava da fotografia. Mentira só é mentira se puder passar por verdade. O rosto todo torto e deformado de uma mulher com dois olhos do lado de cá do nariz não é uma mentira. É a verdade de Picasso. Mas a foto que fiz há dois anos e coloco no Facebook como sendo eu é pura mentira. A foto de ontem é mentira hoje. Eu não sou mais daquele jeito que era ontem, hoje. Não penso mais assim, não sou mais aquele (e aquela) cara. E a fotografia é tanto mentira pelo tempo quanto pelo espaço. A foto da praia nos dá a ilusão de que é ela, mas não tem nada da praia - nem cheiro, nem vento, nem molha, nem enche o carro de areia. A Susan Sontag definiu bem isso: "Todas as fotos são memento mori, lembranças de algo que já desapareceu".
Queremos que a vida não acabe, que nossa juventude não acabe, que as coisas boas nunca acabem. A fotografia surgiu disso, dessa fome do que não acaba nunca. Ela nasceu em 1824 nas mãos de Nicephore Nièpce, um inventor francês. Mas há controvérsias. Alguns dizem que foi Daguerre, em 1839. Um outro inventor, Bayard, quando soube que Daguerre havia sido reconhecido como tal, aceito pela Academia Francesa de Ciências, mandou-lhes uma foto de si mesmo afogado (!). Não só inventou a fotografia como também foi o primeiro grande mentiroso explícito do ramo. Enquanto isso, Fox Talbot inventava a fotografia na Inglaterra. Mais que isso, inventava a fotografia arte, já que era, de longe, o melhor fotógrafo dos três. Até aqui no Brasil um francês chamado Hércules Florence, redescoberto pelo nosso brilhante Boris Kossoy, criou um método só dele de transferir o mundo pro papel.
Antes disso vários pintores utilizaram o artifício da câmera obscura para fazer sua arte. A câmera obscura foi descoberta pelo chinês Mo-Ti, 400 anos antes de Cristo. Na própria caverna de Platão, as pessoas presas viam imagens nas paredes, possivelmente sob o efeito da câmera obscura.
É fácil fazer uma câmera obscura em casa: escolha um quarto com uma boa vista, feche as janelas com uma cortina preta, imune à luz, e fita adesiva. Abra um pequeno furo de um ou dois centímetros no meio do tecido e na parede oposta à janela deve aparecer, de cabeça pra baixo, a vista da janela. O fotógrafo cubano-americano Abelardo Morell utiliza a câmera obscura para fazer trabalhos lindos que estão na coleção de mais de cem museus do mundo. São imagens de imagens de imagens...
O Pintor mais célebre a usar a câmera obscura foi o espanhol Diego Velásquez. Para pintar um dos quadros mais importantes da história, o Las Meninas, Velasquez usou uma câmera obscura. E não foi o único, Caravaggio também usava o artifício. A fotografia perseguia a pintura como uma assombração.
A sanha era tanta pra nascer que ela foi inventada por cinco pessoas diferentes. E quando nasceu assustou de tal forma a pintura que essa virou o Impressionismo. E, do Impressionismo, a pintura foi distanciando-se cada vez mais da fotografia, com Braque e Picasso e o cubismo. Por anos a jovem arte fotográfica crescia nas mãos de grandes artistas como Talbot, Fenton, Muybridge, Nadar, Prokudin-Gorsii, Lartigue, Atget, Brassai, Stieglitz e Steichen. Nos anos 60 o fotógrafo americano William Eggleston revolucionou a fotografia tornando-a colorida e ainda mais presente nos museus. Claro, a foto colorida foi inventada muito antes, mas acabou potencializada nas mãos de Eggleston, que influenciou toda uma geração brilhante trabalhando com câmeras de grande formato: Stephen Shore, Joel Meyerowitz, Richard Misrach, Joel Sternfeld.
"No futuro o analfabeto não vai mais ser quem não sabe ler", disse profeticamente o pensador Walter Benjamin no começo do século 20. "O analfabeto será quem não souber ver fotografias." Isso hoje acabou. Acabaram-se os analfabetos fotográficos. Só que fotografia mesmo é um alfabeto. "Quem conhece e desenha bem as letras é um ótimo calígrafo", dizia o fotógrafo húngaro André Kertész, cuja exposição abre no MIS em maio. "O bom escritor tem que ter algo a dizer."
E algo a dizer nestes novos tempos de completa literacia fotográfica é o que não falta. Redes sociais como o Facebook e Instagram aumentam a cada segundo nossa capacidade de compartilhar e mostrar domínio sobre o alfabeto fotográfico. A foto publicada é, queiramos ou não, editada e assimilada por quem vê e assim produz novas imagens melhores e mais sofisticadas. É um processo que ninguém sabe onde vai parar. Mas, se o que está acontecendo agora é alguma pista, a fotografia vai crescer de tal forma que os tempos atuais serão apenas a pré-história da nossa arte. Já vemos isso acontecendo aos poucos aqui no Brasil, nas mãos geniais de Miguel Rio Branco, Claudia Jaguaribe, Cassio Vasconcelos, Cristiano Mascaro, Sebastião Salgado, Pedro Martinelli, João Castilho, Pedro Motta, Eustáquio Neves, Gustavo Lacerda, Caio Reisewitz, Gal Oppido, Bob Wolfenson, Julio Bittencourt, Christian Cravo, Iatã Cannabrava, Juan Esteves, Juliana Stein, Rogerio Reis, Tiago Santana, Eduardo Muylaert, Betina Samaia, Marcos Bonisson, Bruno Veiga, Rosangela Rennó, Rochele Costi, Tuca Vieira, Gui Mohallen, Cia de Foto, Lost Art e muitos, muitos outros.
Imagino o médium do centro espírita recebendo o espirito de Nièpce, vendo o que está acontecendo, abrir um largo sorriso. Quem diria que aquela sua simples foto, do fundo do quintal, iria dar nisso...

A normalidade das coisas


Demóstenes Torres é um 'senador normal pego em flagrante'. Sua desgraça consiste exatamente no flagrante

15 de abril de 2012 | 3h 06


Renato Lessa - O Estado de S.Paulo
Se a identidade nacional de uma população for definida por suas práticas mais usuais, pode-se dizer que o brasileiro é, antes de tudo, um telespectador. A medida de exposição diária ao veículo supera a quantidade média de horas passadas pelas crianças brasileiras, a cada dia, nos bancos escolares. Se fosse eu um paranoico amador diria que o conteúdo veiculado está a serviço do propósito de transformar os cidadãos do País em uma cáfila de oligofrênicos cívicos.
(Nota metodológica: por ignorar qual seja o coletivo de "oligofrênicos cívicos", optei por "cáfila", que me parece menos ofensivo do que "vara" e mais apropriado do que "alcateia" ou "enxame"; espero não ser molestado pela Sociedade de Proteção dos Camelos.)
Não sei se há propósito na coisa, mas isso é irrelevante. O que parece ser incontroverso é o fato de que no jorro televisivo o espaço dedicado à informação política resume-se a poucos minutos dos jornais intercalados em meio ao que interessa - as novelas - e a alguns minutos a mais para os notívagos, nos jornais do fim da noite. Da qualidade da informação, pouco há que falar: pouquíssimo texto, abundância de lugares comuns, imagens agressivas. Sobretudo denúncias, já que o animal telespectador que se quer fabricar deve ser um vingador vicário, adicto à droga inscrita na dose diária de escândalo que lhe é ministrada.
O civismo do personagem deve confinar-se na indignação instantânea, que fenece no próprio ato de expressão, imediatamente encoberta pelo turbilhão de imagens a respeito de assuntos diversos. Em plena "sociedade da informação", são os ecos do padre Antonil, importante cronista colonial, que se insinuam, ao falar, no século 18, das crianças criadas nos engenhos de açúcar "como tabaréus, que nas conversações não saberão falar de outra coisa mais do que do cão, do cavalo, e do boi".
Mas, mesmo supondo que as energias cognitivas médias do País estejam em estado de deflação - e que passemos grande parte de nossos trabalhos e dias a falar do "cão, do cavalo e do boi" - há coisas que não podem deixar de ser percebidas. Não há como imaginar que os brasileiros sejam, por natureza, menos inteligentes do que outros povos. Nesse sentido, é inacreditável pretender sustentar que o turbilhão que envolve o senador Demóstenes Torres seja extrínseco ao enredo que o constituía, até o momento de sua caída em desgraça, como campeão da direita brasileira e virtual candidato à Presidência da República.
Seu ex-partido - o quase ex-DEM - é formado por experientes expoentes da política tradicional brasileira, que têm noção precisa a respeito do que deva ser a vocação da política. É pouco crível que ao menos parte dos elementos, digamos, biográficos do senador Demóstenes fosse desconhecida de seus pares mais importantes. A cultura política que paira sobre o Estado do Goiás, e parece vincular em uma rede pluripartidária todo o espectro da representação política a um circuito criminoso, não é goiana, sua linguagem e sua gramática podem ser compreendidas em diversos cantos do País. E nesses cantos, entre próceres operadores de outros partidos, há os que pertencem à agremiação que tinha no senador Demóstenes destemido e implacável campeão.
Assim como Nelson Rodrigues definia os tarados como "homem normais pegos em flagrante", os correligionários de Demóstenes Torres, no âmago de suas almas, devem concebê-lo como um "senador normal pego em flagrante". Sua desgraça consiste exatamente no flagrante. É evidente que é um erro generalizar a proposição, mas será ingenuidade desconhecer a plausibilidade do mantra. O caso Demóstenes é expansivo: a mesma rede se apresenta a alguns insuspeitos e a outros nem tanto assim. A rede é viscosa e sua pregnância não reconhece distinções partidárias. O efeito da dispersão - ou da onipresença da relação entre alta criminalidade e alta política - apresenta-se em uma percepção pública, cada vez mais comum e consolidada, de que os agentes públicos apanhados em conversas estranhas são "homens normais pegos em flagrante". O flagrante aparece como capricho; como azar e como descuido que revelam a normalidade das coisas.
Se o espectro do Direito Penal ronda a política, os tribunais, de modo necessário, convertem-se em arenas decisivas, não apenas para a sentença devida, mas para a elucidação do que está a se passar. Graças à inteligente e oportuna intervenção do presidente do Partido dos Trabalhadores, aprendemos que o evento Demóstenes - e toda a infestação que o acompanha - possui, digamos, propriedades compensatórias com relação ao estrago de 2004. Com a palavra o STF, que, assim, cumpre tripla função: a que lhe é própria - a de julgar; a de dirimir disputas políticas; e a de explicar o País para os telespectadores. Do jeito que as coisas seguem, as sentenças do STF qualificam-se como itens bibliográficos obrigatórios para quem quer entender a normalidade do Brasil.
RENATO LESSA É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE; INVESTIGADOR ASSOCIADO DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, DA UNIVERSIDADE DE LISBOA; PRESIDENTE DO INSTITUTO CIÊNCIA HOJE.