segunda-feira, 4 de outubro de 2021

‘Os países crescem com instituições inclusivas’, diz Pastore, OESP

Adriana Fernandes, O Estado de S.Paulo

03 de outubro de 2021 | 05h00

BRASÍLIA - Quando completou 80 anos, Affonso Celso Pastore teve o impulso de escrever um livro para reunir as notas acumuladas ao longo de mais de 50 anos como professor, integrante de governo, consultor e analista da cena política e econômica do País. Dois anos depois, o ex-presidente do Banco Central lança nesta semana o livro Erros do passado, soluções para o futuro: a herança das políticas econômicas do século XX. Publicado pela Portfolio-Penguin, da Editora Schwarcz, com prefácio do economista Marcos Lisboa, faz uma incursão pela história para saber o que levou o Brasil a entrar numa fase de estagnação a partir dos anos 80.

Pastore
Políticas públicas já feitas falharam na distribuição de renda, afirma Pastore  Foto: Werther Santana/Estadão

​Qual foi a sua motivação para escrever sobre os erros do passado das políticas econômicas?

Desde o final da segunda guerra até os anos 80, o Brasil teve taxas de crescimento muito fortes, 7,5% ao ano, talvez, em média. Foram 30 anos de crescimento forte. Um período de grande transformação estrutural da economia, com aumento da industrialização. O Brasil deixou de ser um País eminentemente agrícola, se urbanizou. Tinha uma renda per capita superior a da China, da Coréia, e vinha se aproximando da dos Estados Unidos. A partir dos anos 80, reduzimos enormemente o crescimento. Nos afastamos da renda per capita dos EUA e fomos superados por vários outros países. Entramos numa fase de estagnação. A motivação é simples: saber o que fizemos de errado nesse período que levou a isso. Essa é a temática e os capítulos que analisam cada um dos principais episódios com a incursão que eu fiz na história para saber onde nós erramos e o que deveríamos corrigir daqui para frente

Por que o Brasil foi pego nessa armadilha do lento crescimento e perdeu esse dinamismo e continua errando? A raiz do problema é política?

Não tem uma causa única. É evidente que existe uma questão que é a das instituições. A teoria do desenvolvimento econômico vem evoluindo ao longo do tempo e, nos anos recentes, alguns economistas brilhantes, como Daron Acemoğlu que está no MIT, começaram a olhar as razões pelas quais há países que crescem e os que não crescem.  Ele diz o seguinte: crescem os países cujas instituições econômicas e políticas permitem o crescimento. Quando são inclusivas e não são instituições extrativistas, os países crescem. Caso contrário, se perdem. É evidente que para entender que instituições falharam é necessário fazer uma análise mais profunda. Parte das instituições são as estacas do processo democrático, como é o Judiciário, o Executivo e o Legislativo, que tem checks and Balances (pesos e contrapesos), e são independentes entre si. E parte das instituições são as leis, as regras do jogo.

Como elas influenciam?

Há países que conseguem montar essas regras de tal forma a canalizar o esforço da sociedade para o crescimento. E há países que se perdem no meio do caminho e acabam gerando políticas econômicas que respondem a interesses de grupos, interesses privados, que no fundo auxiliam quem se beneficia daquele tipo de instituição. Mas não produzem o crescimento do País. Há uma interação entre os problemas econômicos e políticos. Não há dúvida nenhuma que uma boa parte da deterioração das nossas instituições foi de caráter político. Hoje, temos vários desenhos no sistema político, talvez maiores do que existiam no passado, que em grande parte são responsáveis pela incapacidade que temos de crescer.

O livro começa logo com um capítulo sobre a agricultura e o desenvolvimento econômico. Por que a agricultura brasileira é uma das mais produtivas no mundo e a nossa indústria não é?

Quando eu comecei a minha vida profissional, as pessoas achavam que a agricultura não tinha função no processo de crescimento. De fato, ao longo do processo de crescimento, a contribuição dela no PIB tende a cair. Não porque ela perde eficiência, mas porque outros setores crescem muito mais depressa. A nossa agricultura, não obstante a isso, se manteve extraordinariamente eficiente. É um setor sempre exposto à competição internacional. O que fez a grande diferença é que tivemos inovações tecnológicas e uma tradição de fazer pesquisas. Existe um papel importante da inovação tecnológica. Caso contrário, trava o crescimento. Conseguimos fazer isso na agricultura e nunca perdemos. O segredo foi o capital humano que nas universidades e na Embrapa produziram todas as inovações.

Apesar de ser bem-sucedida, a agricultura tem sofrido atualmente muitas críticas pelo fato de o Brasil ser um dos maiores exportadores de alimentos, mas não resolveu o problema da fome que aumentou na pandemia. O que deu errado?

O Brasil não resolveu o problema da fome porque não resolvemos o problema da distribuição de renda. É claro que tivemos certas tentativas de favorecer os excluídos. O Bolsa Família foi isso, porém, existe uma população que está num nível de pobreza absoluta que não está tendo oportunidade de crescer e melhorar a sua perspectiva. Desenvolvimento econômico não pode ser olhado no agregado, no crescimento do PIB. Tem que olhar taxas de crescimento que permitam que se vá reduzindo o grau de desigualdade. Quando a sociedade não consegue resolver o problema, num dos extremos, que é o da pobreza absoluta, aparece a fome. Mas isso não é culpa da agricultura. É culpa das políticas públicas que não conseguiram gerar incentivos eficientes para dar capacidade da renda dos mais pobres crescer mais depressa.

O livro tem um capítulo sobre a crise de petróleo da década de 10. Hoje, o mundo corre o risco de uma crise mundial de energia depois da pandemia da covid-19. É possível fazer correlações desses dois momentos históricos?

Lá atrás, estávamos saindo  do regime de Bretton Woods, que era de câmbio fixo. A crise do petróleo aconteceu em 1973, quando terminou a guerra do Vietnã. Como todas as guerras, foi financiada pelos Estados Unidos com a emissão de moeda, gerando lá uma inflação  que virou uma inflação mundial. Essa inflação levou a taxas de juros baixas no mundo, que gerou oportunidade do Geisel endividar o Brasil.  O que levou à crise da dívida externa. Hoje, temos uma crise energética no mundo diferente daquela. Não é mais a Opep que está fazendo a crise. Na Europa, tem a Rússia, fornecedor de gás, que resolveu subir o preço e criou uma crise energética na Europa. Está tendo falta de gasolina no Reino Unido. Tem uma subida de preço de petróleo  provocada em parte por problemas geopolíticos como esses. Não é mais o EUA gerando um aumento na oferta mundial, o que induziu a OPEP a subir o preço e gerar a crise do petróleo. São outros problemas, mas o efeito é de subida de preço. O mundo aprendeu a se financiar melhor e não vai ter uma crise como aquela. Mas a economia mundial tende a se desacelerar com esse efeito que estamos vendo no mercado de energia hoje. Desacelera a Europa, os Estados Unidos, a China e desacelera o Brasil.

Em um dos mais importantes capítulos, o sr. analisa o episódio da crise da dívida externa, momento histórico no qual participou.  O livro traz uma revisão desse período?

Quando estava na presidência do Banco Central, eu fazia parte do governo do Figueiredo (79 a 85), o último governo do ciclo militar do Brasil. Evidentemente, tudo que esse governo fizesse era criticado. Isso é natural. Eu tenho muitos amigos hoje e eram amigos antes que foram extremamente críticos com relação à forma como conduzimos a negociação da dívida naquele período. Existe uma frase do George Orwell que diz que a história é sempre contada pelos vencedores. Felizmente os vencedores daquele período foram os caras que estavam a favor das eleições livres. Aí, eu aplaudo. Mas eles contaram a história sobre a crise da dívida que era politicamente interessante naquele momento . O que eu mostro é que não havia fórmula de fazer a negociação a não ser como ela foi feita. Em 1980, a dívida externa em dólares estava em 60% do PIB. Quando eu entrei no BC, em 1983, o nível de reserva de caixa do Brasil estava em menos de US$ 2 bilhões. Não tinha reservas. O Brasil teve que parar de pagar a dívida. Teve que ser publicada uma resolução no BC que centralizava o câmbio.

Essa parada brusca produziu uma recessão profunda?

Eu sou presidente do comitê de datação de ciclos econômicos da FGV. Datamos o início daquele ciclo no  começo dessa crise da dívida. Foi a maior queda da renda per capita que aconteceu, uma redução de 12%. Uma recessão extremamente longa. Tudo parou. Se tem um sujeito que parou de respirar, você vai fazer respiração artificial, massagem cardíaca, vai botar oxigênio. Não adianta dar remédio para dor de cabeça. A prioridade era renegociar e obter dinheiro novo para ter recursos para fazer a economia voltar a funcionar. Naquele período não tinha mercado de títulos, bonds, os empréstimos estavam todos na carteira dos países. Foi uma crise que atingiu os países, mas foi uma crise bancária sistêmica em nível internacional. Tinha que navegar nesse ambiente hostil com extrema cautela. Uma das condições era produzir receitas de divisas, tinha que produzir uma forte depreciação do câmbio real. Só a economia estava indexada e não tinha âncora porque o BC não tinha capacidade de operar a taxa de juros. Quem operava isso era o Conselho Monetário. Eu mostro que isso gerava uma inflação totalmente descontrolada que só foi dominado muito lá na frente com o Plano Real. Num dos capítulos, eu discuto primeiro o erro do Geisel de tentar uma reedição do processo de substituição de importação com dívida externa. E como isso levou à crise da dívida e como essa crise, somada a toda fragilidade institucional que tínhamos no campo monetário, levaram à hiperinflação dos anos 80.

O livro fala do eterno problema fiscal brasileiro que ainda não está resolvido.

O Brasil tem um problema que vem desde a Constituição de 1988, que criou uma série de direitos com despesas públicas, que até termos o teto de gasto, cresciam a 6% em termos reais ao ano. Acontece que não tem crescimento de PIB de 6% no Brasil. O nosso crescimento potencial é 2%, 2% e pouco. Se a despesa cresce a 6% e a receita a 2%, a dívida pública não vai parar de crescer e fica insustentável.  Tem que fazer uma reforma fiscal que permitisse resolver. Tentou aqui e de lá. Esse problema foi jogado para frente durante o governo Fernando Henrique porque ele gerou um aumento de imposto contínuo que fez com que a receita crescesse junto com o aumento da despesa. Era o período do tripé, quando havia um aumento de carga tributária que gerava superávit primário grande para evitar o crescimento da dívida. Só que aumento de carga tem custo econômico, retarda o crescimento e gera um custo de bem-estar para a população.

Em 2016, o governo  criou o teto de gastos. Mudou algo nesse cenário?

Em todos os processos de controle de gastos, o custo de recessão e queda do PIB é muito menor do que via aumento do imposto. Todos os experimentos que fizeram austeridade por controle de gastos terminaram com uma relação dívida PIB menor. Em princípio, foi a opção correta, não necessariamente o teto, o controle de gastos. O Brasil tem que controlar gastos e nós tivemos algum sucesso na reforma da Previdência. Não posso dizer que ficamos parados, mas não conseguimos ir adiante nisso. Nunca conseguimos fazer uma reforma administrativa.

No final do capítulo, o sr. analisa o impacto político sobre as contas públicas. Como é isso?

Com o fracionamento partidário que o Brasil teve nos últimos anos é praticamente impossível ter um presidencialismo de coalizão que permite no fundo atacar os problemas fundamentais do Brasil, Fica preso a uma luta de partidos, que são muito heterogêneos, e linhas diferentes em cada partido que pioram extraordinariamente a qualidade da política econômica. Para atender os objetivos dos partidos, não têm capacidade de atender o objetivo da sociedade como um todo. 

O impasse que o País vive para abrir espaço no Orçamento para um programa social mais robusto é decorrente desse problema político?

Essa é uma das dimensões do problema que estou falando. Em primeiro lugar, temos um governo muito fraco. Ele não tem um programa consistente e é fraco no apoio político. E temos um Congresso que depende do Centrão, que não é um grande partido de centro, mas um grande conglomerado de partidos fisiológicos que no fundo estão olhando uma forma de minimizar danos aos seus grupos eleitorais. Essa combinação é extremamente negativa do ponto de vista da eficácia da política econômica.

Em mais de 50 anos como economista, o sr. viveu boa parte da história política recente. qual o maior erro?

Não pode dizer um erro. Foram muitos erros. Fica mais fácil listar os acertos. O primeiro ano do governo Fernando Henrique conseguiu reformas importantes e corrigiu o erro da fragilidade institucional brasileira, do BC, do domínio da inflação. Isso tudo foi corrigido no primeiro ano. Isso e mais as privatizações foram uma marca profunda. Mudou o curso do Brasil. Mas ele cometeu dois erros muito ruins. Ele criou o financiamento empresarial de campanha e a reeleição. Não resistiu ao sucesso do primeiro mandato e foi para a reeleição e ali começou o presidencialismo de coalizão a entrar em colapso.

Qual o maior erro que o sr. vê agora?

O Brasil está em frangalhos porque o Bolsonaro está em campanha eleitoral 100% do tempo. Esse governo deveria começar a governar, o que acho que não começou até agora. Está em campanha.

Olhando os erros do passado, dá para consertar o futuro, como agora depois da pandemia da covid-19? Dá para fazer mudanças com o olho no retrovisor?

Não estou dizendo que as soluções que resolveram o passado são as que resolvem agora. Não se pode pegar diagnósticos de lá (do passado) e aplicar aqui. É preciso deixar claro que a teoria econômica não é a física. Ela não tem uma resposta imutável para qualquer tipo de problema. Depende do contexto histórico no qual se está. Tanto que eu digo no livro que não se pode nunca parar de estudar economia porque ela é uma ciência em contínua evolução. Os economistas hoje em dia dão um peso muito grande aos modelos matemáticos. Só que eles esquecem a história.

Esse é o caminho do novo livro?

Eu sou um sujeito mais velho e quando abrir o livro vai ver que as lições da história são muito importantes. Aprende-se  como as pessoas interagem, os grupos de pressão e o governo, e que tipo de solução foi encontrada.  A história é um receptáculo de experiência, algumas válidas positivamente e outras negativamente, mas todas muito válidas que ajudam a fazer escolhas no presente. Revisitar o passado nos faz conhecer porque se fez a bobagem que levou ao problema. Reconhecer onde está o problema é o primeiro passo para tentar resolvê-lo.  É um tipo de exercício que caiu em desuso. As pessoas hoje olham menos para isso tudo. Mas é preciso ter um pouco de humildade para tentar ir buscar na história um pouco mais de informação para como resolver os problemas. Eu me propus a fazer um exercício como esse. 

Qual foi o gatilho para começar a escrever o livro? A situação atual do País

O gatilho foi o seguinte. Fiz 80 anos e os meus amigos resolveram me homenagear daqui e dali e eu falei que ainda estou ativo. Tenho uma história vivida, tanto na academia, na pesquisa, como dentro do governo, e ao longo do tempo fui acumulando muitas notas em cima de tudo isso. Num fim de ano, eu estava na casa da minha enteada em Bolonha, na Itália, e comecei a juntar isso e disse ‘eu tenho a impressão que tenho um livro’. Em dois anos, ele acabou saindo. São reflexões. Tem muita experiência e análise e que, no fundo estão escondidas em notas que valia a pena trazer a público para discussão

 

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