A fêmea, na espécie humana, é tratada como um tema especial. A base da singularidade do feminino está assentada na consciência masculina que elaborou grande parte da representação das mulheres.
Temas ligados ao corpo feminino, como o aborto, foram legislados por homens, e pior, homens com voto formal de celibato. Apesar da imaginação do meu saudoso amigo Moacyr Scliar, a Bíblia foi escrita por homens. Em Êxodo 20, 17, lemos: “Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a sua mulher, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu próximo”. Enumeram-se bens interditados à cobiça alheia: casa, mulher, escravos, bois e jumentos. Seria ordem crescente ou decrescente de importância na visão do autor?
Deus tem identidade masculina na língua criada por homens. Suas imagens são sempre do macho da espécie. Todo teólogo dirá que Deus não tem gênero ou forma e, sendo assim, nada impede que seja representado com seios, tão equivocados na iconografia quanto a barba. Deus é mulher no filme Dogma (Kevin Smith, 1999). Alanis Morissette encarna a figura da Toda-Poderosa na obra. Na peça teatral O Topo da Montanha, Katori Hall revela, pela boca da camareira-anja, que Deus é “Ela” e, momento lindo na interpretação de Taís Araújo, a divindade é negra e tem um “cabelão”... Trata-se de um gesto político, como foi político Michelangelo pintar o Onipotente como homem na Capela Sistina. As imagens de Deus falam muito sobre o humano.
A opção gramatical de gênero é questão menor, mas significativa. A língua determina, por exemplo, o predomínio do masculino na enumeração de itens. Se eu falar de 35 meninas numa sala e, no meio, incluir um João, são eles, os meus alunos, que surgem gramaticalmente. Há questões mais graves. Um homem sexualmente ativo recebe denominações positivas: tigrão, garanhão ou galo. Uma mulher em idêntica situação é galinha ou piranha, animais com menor associação positiva. A língua, reflexo vivo daqueles que a usam, apaga o feminino de forma tão antiga e repetitiva, que achamos que isso é natural e atemporal. Lembro-me de algo bizarro: quando criança, li o romance Éramos Seis, assinado pela senhora Leandro Dupré... Aqui, a talentosa Maria José desaparecia até no nome.
O preconceito contra a mulher, a misoginia, é sólido e universal. Contaminou outros preconceitos. Vejamos: um homem homoafetivo é mais discriminado quando é mais feminino. Perdoa-se com mais indulgência um gay como Rock Hudson do que um que se vista como ou que aparente ser mulher. É provável que a homofobia esteja contaminada por algo anterior e mais vasto, a misoginia. O defeito é ser mulher. O filme O Segredo de Brokeback Mountain (Ang Lee, 2005) foi algo novo ao trazer cowboys masculinos, casados, com filhos e… completamente apaixonados um pelo outro. Parte do sucesso da obra é este: tolera-se melhor que sejam gays, desde que não aparentem o feminino.
Quando o Enem de 2015 trouxe uma frase conhecida e antiga de Simone de Beauvoir, causou alvoroço. “Não se nasce mulher, torna-se mulher foi a afirmação que amotinou algumas pessoas que descobriram, enfim, a ideia escrita 62 anos antes. Beauvoir adota uma posição que existe há mais tempo ainda: o biológico feminino não é óbvio, mas parte de um processo que envolve elaboração cultural de uma identidade feminina. O tema continua dilacerando o fígado de muita gente. Para quem acredita que ser mulher ou ser homem são dados da natureza e evidentes, recomendo ganhar algum tempo assistindo ao delicado filme de Lucía Puenzo, XXY (2007).
Hoje é Dia Internacional da Mulher. Há avanços notáveis na consciência da questão. A Lei Maria da Penha trouxe à tona a extensão assustadora da violência doméstica. Enquanto o governo autoritário de Putin na Rússia retrocede e permite o espancamento de mulheres, o Brasil continua dando passos, insuficientes, mas reais, para mudar a situação. O Instituto Maria de Penha sofre com a falta de verbas e necessita do nosso auxílio. Caso deseje conhecer o trabalho dessas/desses ativistas, hoje é um dia especial para fazê-lo.
Quanto mais frágil a sociedade julga ser uma pessoa, mais a atacará. As mulheres negras, estatisticamente, sofrem ainda mais do que as brancas. Misoginia e racismo são um cruzamento desastroso. Mulheres apanham todos os dias e, quase sempre, a agressão parte do companheiro. Existe uma cultura do estupro que consegue elaborar a frase mais canalha já criada pela nossa espécie: a culpa estaria na insinuação feminina. O racismo já é crime inafiançável (embora se condene menos do que se deveria por esse tipo de comportamento inaceitável). Já a incitação à violência contra a mulher infelizmente ainda não é crime da mesma força, é apenas falta de cérebro e de caráter que gera morte, dor e traumas.
Há uma longa estrada pela frente. Inicie, talvez, vendo o site do Instituto Maria da Penha e o filme que recomendei. Depois, poderemos discutir nossa linguagem. Por fim, resta eliminar o monstrinho misógino que habita em homens e mulheres. Todos ganharemos com isso. Descobriremos, enfim, que lugar de mulher é onde essa mulher desejar estar. Boa semana para os quase 7,5 bilhões de gêneros que existem andando por este mundo!
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