sábado, 18 de março de 2017

A perna que não é minha, OESP


Quando perdemos uma perna pode ocorrer um fenômeno estranho. A pessoa continua a sentir dores e coceiras no local, mas ela não existe mais. Esse fenômeno, chamado de “membro fantasma”, é bem conhecido. Muito menos conhecido é algo muito mais estranho. São pessoas que possuem uma perna normal, mas que acreditam que aquela perna não faz parte de seu corpo. As consequências podem ser trágicas ou felizes, dependendo do ponto de vista.
Nosso cérebro constrói uma representação de nosso corpo. Ele sabe onde está cada membro e o que está acontecendo em cada lugar. Quando um pernilongo pica, o cérebro usa essa representação para dirigir nossa mão para o local exato da dor. Essa representação do corpo não é fixa. Ela muda à medida que crescemos. Se isso não ocorresse, quando o dedão doesse levaríamos os olhos para um local onde ele estava na nossa infância, que é onde hoje está nosso joelho. Essa representação é muito detalhada e qualquer incompatibilidade entre a representação e o que informa nossos sentidos incomoda. É o que ocorre quando colocamos uma obturação milimetricamente maior que o dente original. Parece que temos um elefante na boca, mas depois de um tempo nosso cérebro refaz a representação e a pequena obturação ou o enorme aparelho ortodôntico “desaparece”.
No caso da amputação, o cérebro possui uma representação da perna antes dela ser amputada. Aí ela é cortada, mas, no cérebro, continua presente na representação. Não basta olharmos para o coto para convencer o cérebro que a perna desapareceu e modificar a representação. A representação é robusta e difícil de ser alterada. Ainda bem! Se o desaparecimento da perna na representação ocorresse de maneira fácil e imediata, bastaria cobrirmos a perna para o cérebro acreditar que ela havia desaparecido. A vida seria muito complicada. Uma pessoa coberta até o pescoço começaria a acreditar que era uma cabeça isolada. É por isso que mesmo sem perna, quando o cérebro recebe um estímulo do coto ou relembra um estímulo no dedão do pé, imediatamente “localiza” esse estímulo na ponta da representação da perna que foi perdida, e o pobre coitado sente dor e leva a mão a um local que fisicamente não existe, mas ainda está presente em uma representação no seu cérebro.
Existe um número pequeno de pessoas (na casa de centenas) que sofrem com o problema complementar. Elas se queixam que aquela perna, absolutamente normal, que elas usam todos os dias para andar, e cujas unhas cortam toda semana, não faz parte de seu corpo. Elas descrevem a perna como algo estranho, pendurado no corpo, e que incomoda. É o que sentimos com uma obturação alta na boca. Quando examinada, nada de errado é encontrado na perna. O tato é perfeito, os músculos funcionam, a pessoa faz o uso normal da perna. O único problema é que a pessoa reclama que aquela perna não faz parte de seu corpo, é como se fosse uma prótese perfeita. Se você perguntar onde termina o corpo, ela mostra exatamente, na coxa ou em outra altura da perna, uma linha onde o corpo termina, para além tem essa “coisa” que não faz parte do corpo.
Muitas dessas pessoas se acostumam com a sensação estranha, mas outras ficam tão incomodadas que querem se livrar do incômodo e pedem para o membro ser amputado. Os médicos, claro, se recusam. Em muitos casos, a pessoa fica tão desesperada que tenta amputar em casa. Acaba no hospital e se diz feliz se o estrago foi tanto que só resta ao médico amputar.
Nos últimos anos surgiram médicos que fazem a amputação de forma clandestina. Muitos desses pacientes, depois de feita a amputação, ficam felizes. Problema resolvido. Médicos ficam horrorizados.
No inicio se acreditava que essas pessoas sofriam de uma espécie de histeria. Hoje se acredita que, por algum motivo desconhecido, a representação do corpo, construída pelo cérebro, não inclui aquela perna. Mesmo quando a perna envia sinais nervosos para o cérebro, a representação não se modifica. O “eu” daquela pessoa não inclui aquela perna.
O que mais me chamou a atenção é o paralelo que existe com pessoas que se identificam de um sexo e tem a sensação de habitar um corpo do outro. Em ambos os casos, existe uma incompatibilidade entre a representação (que faz parte do “eu”) e a realidade física. E em ambos os casos o incômodo é tanto que as pessoas desejam modificar o corpo para restaurar a compatibilidade.
MAIS INFORMAÇÕES NO LIVRO THE MAN WHO WASN’T THERE. INVESTIGATIONS INTO THE STRANGE NEW SCIENCE OF THE SELF, DE ANIL ANANTHASWAMY, DUTTON PRESS, 2015
* É BIÓLOGO

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