Assumindo que o cérebro possa ser digitalizado e todas as memórias preservadas, o resultado seria uma consciência desencarnada, capaz de experimentar de tudo sem se preocupar com eventuais consequências para o corpo.
Livre deste fardo mortal, todos os sonhos seriam possíveis. Seria difícil resistir às tentações do sistema nervoso primitivo. Em um porre sem ressaca, não existiriam restrições a psicotrópicos e aventuras nunca imaginadas. Como seria saltar de bungee-jumping, sem equipamentos de segurança, doido de heroína em um espetáculo de cores, cheiros, gostos e imagens?
Passada a infância das experiências não tardaria o tédio. Na imortalidade a adrenalina não tem o mesmo sabor. Talvez fosse a hora de tentar se unir ao próximo em uma intensidade jamais vista, infinitamente superior a uma gravidez, fundindo capacidades em uma compreensão infinita.
Não tardaria para que outros se juntassem a esse Woodstock cibernético em busca de uma consciência única, mundial, transmitindo em ondas cósmicas a experiência telúrica para pirâmides esotéricas em outros planetas.
Já ouvimos essa história. Desde muito antes do Tim Maia é comum a figura do doidão que vira crente, nem que seja por um breve período.
A digitalização do cérebro, se for possível em algum dia muito distante, terá que ser analisada sob diversos parâmetros éticos. Sem o original, qual das cópias teria direito à identidade? Se todo clone pensa, todo clone tem direito à existência. Mas isso é Filosofia para os próximos milênios. Para não atormentar você com ficção cientifica, prefiro me concentrar em uma questão prática, bem conhecida por todos: a memória das redes.
É bem sabido que um dos efeitos colaterais de redes sociais é o de lembrar (e expor publicamente) seus micos. Por mais que se tente esquecer de uma declaração, foto ou lugar frequentado, não tarda para alguém encontrar o registro e marcá-lo, para o desespero de quem sonhava esquecê-lo.
O esquecimento, visto por muitos como um defeito, uma perda de informação, está gravado no código genético. Ele ajuda a selecionar e priorizar as experiências vividas, contribuindo para o aprendizado e o desenvolvimento. A memória humana precisa administrar a informação recebida entre os recursos limitados que tem para armazenar o que for relevante e recuperá-lo quando for necessário.
O cérebro humano é maleável. Sua estrutura muda conforme o contexto, a emoção e a utilização da informação recebida. Não há máquina capaz de reproduzir esse processo orgânico chamado de plasticidade, que em uma mente saudável, remove o que é tóxico em busca de evolução.
Há vários motivos para se esquecer de algo: para se livrar de uma experiência traumática, de lembranças tristes ou vergonhosas, de estilos de vida doentios, de comportamentos embaraçosos ou de coisas e lugares que não são mais usadas. Como Sherlock Holmes, é possível se esquecer temporariamente de tudo que não é relevante para uma situação. Apaixonados e fanáticos em geral descartam tudo o que não for belo em seu objeto de adoração. Quem sofre um trauma precisa se esquecer da experiência para continuar a viver produtivamente.
Sob esse aspecto o esquecimento não é uma perda, mas um desapego. Ele acontece quando não há vontade de reter uma informação. É tão comum que é normal desenvolver métodos externos para lembrar do que é importante.
Digitalmente essa administração de recursos não é necessária. Como não há plasticidade, pouco se aprende do que se acumula - e nada se esquece. As estruturas não se modificam e a memória é infinita. Quando tudo pode ser recuperado, perde-se a noção do que é relevante. É aí que surgem as implicâncias.
Quem não esquece não perdoa, guarda rancores e revive frustrações. Um cérebro digitalizado será obrigado a rever todos os seus erros, incapaz de mudá-los ou esquecê-los, como quem relê uma discussão de relacionamento por SMS. Ele estará preso eternamente no pior lugar do mundo, sem a opção de melhorá-lo, de aprender com ele ou de encerrar a história, apagando o conteúdo em um suicídio. Não é uma situação desejável.
Voltando à Filosofia, a neurociência de hoje mostra como a mente depende do corpo físico em que habita. Descartes errou ao tentar separá-los, da mesma forma que Platão se enganou ao imaginar um mundo habitado apenas por ideias. De todos os aforismos antigos, talvez o mais profundo ainda seja o bom e velho "mens sana in corpore sano".
Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Autor do livro "Enciclopédia da Nuvem", em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas na versão impressa de "Tec" e no site da Folha.
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