O GLOBO - 20/04
Não sou supersticioso, prefiro confiar no acaso. Mas também só entro em avião com o pé direito, procuro não passar por baixo de escada e, quando adolescente, só ia aos jogos com a mesma camisa número seis do Botafogo (a de Nilton Santos). Embora evite a superstição que nos imobiliza, gosto de brincar com números e, num desses jogos, me ocorreu uma certa magia no ano que vem.
Em 2014, ano da Copa do Mundo no Brasil, completaremos 50 anos do golpe militar que resultou na mais longa e cruel ditadura de nossa história nacional, iniciada em 64. E 64 anos do golpe cruel da Copa de 50, quando os uruguaios nos venceram, naquela histórica final no Maracanã que resultou em longa depressão nacional, iniciada com o gol de Ghiggia.
São 64 anos de 50 e 50 de 64. Datas e números que dizem provavelmente pouco aos nossos jovens, mas que têm significado profundo para aqueles que viveram grande parte de suas vidas durante a segunda metade do século 20.
No maracanazo de 50, iniciamos a exposição pública de nosso complexo coletivo de vira-lata, num sofrimento nacional do qual não consigo me lembrar de outro igual (talvez por ser tão criança na época). Obdúlio Varela, o valente capitão uruguaio, cuspira no rosto de Bigode, nosso lateral mulato, sem que esse reagisse, e levara seu time à vitória aos gritos, contra brasileiros acovardados em campo e conformados em silêncio nas arquibancadas. Era assim que nós mesmos descrevíamos a tragédia.
Desde ali, os brasileiros se tornaram um povo sem flama, incapaz de reagir à desgraça à qual estava destinado. Por mais que tivéssemos nacionais virtuosos, como Zizinho e Ademir, jamais seríamos uma coletividade vitoriosa. O sucesso nos escaparia sempre nos últimos minutos, por decreto do destino e impotência nossa. O Brasil estava condenado a adormecer eternamente em berço esplêndido, incapaz de se erguer para existir.
No golpe de 64, o vira-lata foi convencido de que era mesmo ignorante e estúpido, na melhor das hipóteses ingênuo. Nem mesmo sabia votar, não merecia portanto o luxo da democracia e da liberdade. Militares insuflados pelos sábios que cuidavam de nossa incompetência e se substituíam à nossa incapacidade de gerir o país, tomavam às mãos a condução de nossas vidas, à revelia do que pensássemos disso. Haviam-nos roubado o direito de ganhar, agora nos levavam o de ser.
A partir do golpe, a tragédia se tornara cotidiana, o inaceitável passara a ser normalidade. Vivemos exilados em nosso próprio país, neutralizados pelo medo e pela conveniência. Passamos vinte e um anos com nossa vontade alienada, em nome da luta contra o monstro comunista que nos havia de devorar e que acabou ruindo sem muito ruído.
Quando eu era estudante, países como o nosso eram chamados simplesmente de “subdesenvolvidos”. Ao longo dos anos 1960, esses países passaram a ter uma certa importância estratégica nos embates da Guerra Fria. A inteligência francesa deu-lhes então uma identidade política própria, chamando-os de Tiers Monde (Terceiro Mundo), nos presenteando com o orgulho da singularidade.
Hoje, quando o Brasil e outros países semelhantes começam a ter certo peso na economia globalizada, sendo capazes de provocar crises ou de bem suportá-las na bagunça do capitalismo financeiro contemporâneo, somos elevados à categoria de países “emergentes”. Não sei dizer se essa evolução etimológica é parte de algum capítulo das ciências humanas modernas ou se é pura habilidade político-diplomática. Mas pode também ser a tradução do inconsciente coletivo da humanidade a nos conduzir a uma nova identidade.
Desde a redemocratização do país, começamos a nos libertar dos fantasmas e carmas derrotistas. Seja qual for a opinião politica de cada um de nós, é evidente que viemos, ao longo dessas duas últimas décadas, aprendendo a confiar em nós mesmos. Nossos jovens não acham mais que estamos condenados ao fracasso e querem exercer sua justa vontade sobre o concerto da nação. Temos que acreditar sempre que isso seja possível.
Tomara que 2014 celebre, sem superstições positivas ou negativas, o enterro definitivo do vira-lata. Compreenderemos então que a mágica da realidade começa pelo exercício da vontade.
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Uma correção. Em meu artigo anterior, cometi um injusto equívoco para o qual fui alertado pelo deputado Chico Alencar, a quem respeito e admiro. Não foi apenas Jean Willys o único congressista a se manifestar, logo que o pastor Marco Feliciano foi indicado para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Segundo ele, outros sete parlamentares se manifestaram logo contra a aberração: Luiza Erundina, Érica Kokai, Domingos Dutra, Arnaldo Jordi, Nilmário Miranda, Ivan Valente e o próprio Chico Alencar.
Enquanto isso, o deputado Marco Feliciano continua responsável pela Comissão, mesmo que a cada dia nos surpreenda com novas e mais delirantes profissões de fé, como essa que incentiva o assassinato de nossos mais queridos artistas, em nome de não sei que deus, com o auxilio de anjos que pilotam aviões. Não se trata mais de conflito ideológico, mas de pura insanidade.
Não sou supersticioso, prefiro confiar no acaso. Mas também só entro em avião com o pé direito, procuro não passar por baixo de escada e, quando adolescente, só ia aos jogos com a mesma camisa número seis do Botafogo (a de Nilton Santos). Embora evite a superstição que nos imobiliza, gosto de brincar com números e, num desses jogos, me ocorreu uma certa magia no ano que vem.
Em 2014, ano da Copa do Mundo no Brasil, completaremos 50 anos do golpe militar que resultou na mais longa e cruel ditadura de nossa história nacional, iniciada em 64. E 64 anos do golpe cruel da Copa de 50, quando os uruguaios nos venceram, naquela histórica final no Maracanã que resultou em longa depressão nacional, iniciada com o gol de Ghiggia.
São 64 anos de 50 e 50 de 64. Datas e números que dizem provavelmente pouco aos nossos jovens, mas que têm significado profundo para aqueles que viveram grande parte de suas vidas durante a segunda metade do século 20.
No maracanazo de 50, iniciamos a exposição pública de nosso complexo coletivo de vira-lata, num sofrimento nacional do qual não consigo me lembrar de outro igual (talvez por ser tão criança na época). Obdúlio Varela, o valente capitão uruguaio, cuspira no rosto de Bigode, nosso lateral mulato, sem que esse reagisse, e levara seu time à vitória aos gritos, contra brasileiros acovardados em campo e conformados em silêncio nas arquibancadas. Era assim que nós mesmos descrevíamos a tragédia.
Desde ali, os brasileiros se tornaram um povo sem flama, incapaz de reagir à desgraça à qual estava destinado. Por mais que tivéssemos nacionais virtuosos, como Zizinho e Ademir, jamais seríamos uma coletividade vitoriosa. O sucesso nos escaparia sempre nos últimos minutos, por decreto do destino e impotência nossa. O Brasil estava condenado a adormecer eternamente em berço esplêndido, incapaz de se erguer para existir.
No golpe de 64, o vira-lata foi convencido de que era mesmo ignorante e estúpido, na melhor das hipóteses ingênuo. Nem mesmo sabia votar, não merecia portanto o luxo da democracia e da liberdade. Militares insuflados pelos sábios que cuidavam de nossa incompetência e se substituíam à nossa incapacidade de gerir o país, tomavam às mãos a condução de nossas vidas, à revelia do que pensássemos disso. Haviam-nos roubado o direito de ganhar, agora nos levavam o de ser.
A partir do golpe, a tragédia se tornara cotidiana, o inaceitável passara a ser normalidade. Vivemos exilados em nosso próprio país, neutralizados pelo medo e pela conveniência. Passamos vinte e um anos com nossa vontade alienada, em nome da luta contra o monstro comunista que nos havia de devorar e que acabou ruindo sem muito ruído.
Quando eu era estudante, países como o nosso eram chamados simplesmente de “subdesenvolvidos”. Ao longo dos anos 1960, esses países passaram a ter uma certa importância estratégica nos embates da Guerra Fria. A inteligência francesa deu-lhes então uma identidade política própria, chamando-os de Tiers Monde (Terceiro Mundo), nos presenteando com o orgulho da singularidade.
Hoje, quando o Brasil e outros países semelhantes começam a ter certo peso na economia globalizada, sendo capazes de provocar crises ou de bem suportá-las na bagunça do capitalismo financeiro contemporâneo, somos elevados à categoria de países “emergentes”. Não sei dizer se essa evolução etimológica é parte de algum capítulo das ciências humanas modernas ou se é pura habilidade político-diplomática. Mas pode também ser a tradução do inconsciente coletivo da humanidade a nos conduzir a uma nova identidade.
Desde a redemocratização do país, começamos a nos libertar dos fantasmas e carmas derrotistas. Seja qual for a opinião politica de cada um de nós, é evidente que viemos, ao longo dessas duas últimas décadas, aprendendo a confiar em nós mesmos. Nossos jovens não acham mais que estamos condenados ao fracasso e querem exercer sua justa vontade sobre o concerto da nação. Temos que acreditar sempre que isso seja possível.
Tomara que 2014 celebre, sem superstições positivas ou negativas, o enterro definitivo do vira-lata. Compreenderemos então que a mágica da realidade começa pelo exercício da vontade.
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Uma correção. Em meu artigo anterior, cometi um injusto equívoco para o qual fui alertado pelo deputado Chico Alencar, a quem respeito e admiro. Não foi apenas Jean Willys o único congressista a se manifestar, logo que o pastor Marco Feliciano foi indicado para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Segundo ele, outros sete parlamentares se manifestaram logo contra a aberração: Luiza Erundina, Érica Kokai, Domingos Dutra, Arnaldo Jordi, Nilmário Miranda, Ivan Valente e o próprio Chico Alencar.
Enquanto isso, o deputado Marco Feliciano continua responsável pela Comissão, mesmo que a cada dia nos surpreenda com novas e mais delirantes profissões de fé, como essa que incentiva o assassinato de nossos mais queridos artistas, em nome de não sei que deus, com o auxilio de anjos que pilotam aviões. Não se trata mais de conflito ideológico, mas de pura insanidade.
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