VALOR ECONÔMICO - 22/04
Um elogio curioso à democracia deve-se a Winston Churchill, falando na Câmara dos Comuns, em novembro de 1947: "A democracia é a pior forma de governo, excetuando todas as outras que já foram testadas de tempos em tempos". É puro humor britânico. Na prática, diz que a democracia é a melhor forma de governo disponível; mas a graça está em que, mesmo assim, não é um bom regime político. É o menos ruim que podemos ter.
Hoje, quando elogiamos a democracia, parece que sua principal virtude é a transparência. Já não se enfatiza sua definição: como "poder do povo", ela dá voz a todos, gera governos que atendam à vontade da maioria, e isso sem esmagar a minoria. Hoje, a transparência parece até mais importante que a vontade do povo. Um século atrás, a Primeira Guerra Mundial marcou o auge e o apocalipse da diplomacia secreta, que levava a tratados negociados a portas fechadas, com o propósito de retaliar países inimigos. A entrada dos Estados Unidos na guerra, defendendo a autodeterminação dos povos, e a saída dos russos da guerra, divulgando os tratados sigilosos, anunciaram o fim da política internacional secreta. Ela fica difícil na democracia, o que é bom. Talvez por isso se diga, com certo exagero, que democracias nunca fazem guerra entre si. Finalmente, a transparência tem sido, talvez, o principal antídoto para o mau uso do dinheiro público.
Mas a democracia tem problemas. Estudiosos de comportamento eleitoral afirmam que as intenções de voto acompanham o crédito ao consumidor. O eleitor é racional, sim, ele não se oferece aos demagogos como uma vítima inocente - mas sua racionalidade parece estar ligada ao dinheiro que tenha no bolso para gastar. Isso favorece políticas diretamente voltadas para a satisfação de seus desejos. Assim, a importação de produtos baratos da China ajuda a aumentar o poder aquisitivo dos brasileiros mais pobres. Só que essa importação se faz em detrimento de nossa indústria. Para ganhos sociais em prazo curto, pagamos um preço econômico, a maior prazo.
Vejam um caso: a Europa está sacrificando sua política climática às imposições da crise econômica. Pois sacrificávamos as políticas sociais à primeira turbulência econômica, até não muito tempo atrás. Uma das mudanças do governo Lula foi tornar a política social um componente central - e irrenunciável - de todo projeto político brasileiro. Em 2010, mesmo quem atacava a Bolsa Família propôs aumentá-la. Além disso, havia um subconsumo crônico dos mais pobres em relação a produtos básicos, fosse o iogurte, fosse a geladeira. Mas a ênfase no consumo traz problemas. Um, econômico: consumir é mais popular do que poupar. Outro, cultural: a tão propalada ascensão dos mais pobres à classe C é medida em termos de renda e de acesso ao mercado. Não é avaliada em função da cultura ou da educação. Em suma, promovemos as pessoas não por algo que elas adquiriram e nunca hão de perder, ao se tornar seu patrimônio inalienável: a cultura, o conhecimento; mas por algo que é vulnerável e efêmero: o consumo.
Eleitores-consumidores votam de uma maneira específica. Premiarão o governo que lhes permitir o gozo das mercadorias e serviços. Propor políticas de longo prazo fica difícil. Ora, para ter um mínimo de eficiência, o governo tem que mirar o futuro. Daí que o Executivo tenha de ser racional, no lugar de eleitores que não o são. O governo atende o desejo consumista dos eleitores da forma mais barata que conseguir, e se vira para separar dinheiro destinado a grandes projetos estruturais - estradas, portos, universidades, usinas elétricas. O único gasto público de longo prazo que o eleitorado adora é na saúde. Nem a educação consegue igual popularidade.
Nada mais longe do iluminismo, o movimento de ideias que no século 18 fundou a democracia moderna, propondo difundir as luzes do conhecimento para melhorar a vida e a ação humana. O filósofo Kant resumiu-o numa expressão: "Sapere aude", atreve-te a saber. Disse que representava a passagem da humanidade à idade adulta. "Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade, de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem." Recomendo que leiam seu opúsculo "O que é o iluminismo", acessível na internet. Pois, enquanto a democracia se escorar no eleitor-consumidor, ele será perpetuamente infantil. Eis um traço preocupante da política contemporânea, agudo no Brasil, mas presente também nos países ricos. E o pior é que nosso Congresso age de maneira parecida. Afirmei outro dia que o Executivo federal é o garante de nossa racionalidade. Ao não pagar emendas paroquiais ao orçamento, ao vetar leis inconvenientes, ao ter nas pastas ministeriais quadros superiores aos que dirigem as comissões parlamentares, ele atenua o impacto de demandas imediatas, populares ou parlamentares, sobre as finanças e, mais que isso, sobre a construção de nosso futuro. Teria dito FHC, quando presidente, comentando uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que perturbava as finanças públicas: "Eles não pensam no Brasil". É um pouco essa a ideia. Em nossa democracia, pensar no Brasil e em seu futuro se torna dever e ofício da Presidência da República, a quem cabe a tarefa racional de sacrificar o desejo imediato em nome do bem futuro, no lugar dos eleitores, envoltos pelo consumo, e dos parlamentares, ansiosos por serem populares.
Como mudar este quadro? Não creio que uma reforma política ou eleitoral o altere; ela terá seus méritos, mas não aqui. A única saída é melhorar a educação e, sua parceira mais que necessária, a cultura. Este é tema para a próxima coluna.
Um elogio curioso à democracia deve-se a Winston Churchill, falando na Câmara dos Comuns, em novembro de 1947: "A democracia é a pior forma de governo, excetuando todas as outras que já foram testadas de tempos em tempos". É puro humor britânico. Na prática, diz que a democracia é a melhor forma de governo disponível; mas a graça está em que, mesmo assim, não é um bom regime político. É o menos ruim que podemos ter.
Hoje, quando elogiamos a democracia, parece que sua principal virtude é a transparência. Já não se enfatiza sua definição: como "poder do povo", ela dá voz a todos, gera governos que atendam à vontade da maioria, e isso sem esmagar a minoria. Hoje, a transparência parece até mais importante que a vontade do povo. Um século atrás, a Primeira Guerra Mundial marcou o auge e o apocalipse da diplomacia secreta, que levava a tratados negociados a portas fechadas, com o propósito de retaliar países inimigos. A entrada dos Estados Unidos na guerra, defendendo a autodeterminação dos povos, e a saída dos russos da guerra, divulgando os tratados sigilosos, anunciaram o fim da política internacional secreta. Ela fica difícil na democracia, o que é bom. Talvez por isso se diga, com certo exagero, que democracias nunca fazem guerra entre si. Finalmente, a transparência tem sido, talvez, o principal antídoto para o mau uso do dinheiro público.
Mas a democracia tem problemas. Estudiosos de comportamento eleitoral afirmam que as intenções de voto acompanham o crédito ao consumidor. O eleitor é racional, sim, ele não se oferece aos demagogos como uma vítima inocente - mas sua racionalidade parece estar ligada ao dinheiro que tenha no bolso para gastar. Isso favorece políticas diretamente voltadas para a satisfação de seus desejos. Assim, a importação de produtos baratos da China ajuda a aumentar o poder aquisitivo dos brasileiros mais pobres. Só que essa importação se faz em detrimento de nossa indústria. Para ganhos sociais em prazo curto, pagamos um preço econômico, a maior prazo.
Vejam um caso: a Europa está sacrificando sua política climática às imposições da crise econômica. Pois sacrificávamos as políticas sociais à primeira turbulência econômica, até não muito tempo atrás. Uma das mudanças do governo Lula foi tornar a política social um componente central - e irrenunciável - de todo projeto político brasileiro. Em 2010, mesmo quem atacava a Bolsa Família propôs aumentá-la. Além disso, havia um subconsumo crônico dos mais pobres em relação a produtos básicos, fosse o iogurte, fosse a geladeira. Mas a ênfase no consumo traz problemas. Um, econômico: consumir é mais popular do que poupar. Outro, cultural: a tão propalada ascensão dos mais pobres à classe C é medida em termos de renda e de acesso ao mercado. Não é avaliada em função da cultura ou da educação. Em suma, promovemos as pessoas não por algo que elas adquiriram e nunca hão de perder, ao se tornar seu patrimônio inalienável: a cultura, o conhecimento; mas por algo que é vulnerável e efêmero: o consumo.
Eleitores-consumidores votam de uma maneira específica. Premiarão o governo que lhes permitir o gozo das mercadorias e serviços. Propor políticas de longo prazo fica difícil. Ora, para ter um mínimo de eficiência, o governo tem que mirar o futuro. Daí que o Executivo tenha de ser racional, no lugar de eleitores que não o são. O governo atende o desejo consumista dos eleitores da forma mais barata que conseguir, e se vira para separar dinheiro destinado a grandes projetos estruturais - estradas, portos, universidades, usinas elétricas. O único gasto público de longo prazo que o eleitorado adora é na saúde. Nem a educação consegue igual popularidade.
Nada mais longe do iluminismo, o movimento de ideias que no século 18 fundou a democracia moderna, propondo difundir as luzes do conhecimento para melhorar a vida e a ação humana. O filósofo Kant resumiu-o numa expressão: "Sapere aude", atreve-te a saber. Disse que representava a passagem da humanidade à idade adulta. "Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade, de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem." Recomendo que leiam seu opúsculo "O que é o iluminismo", acessível na internet. Pois, enquanto a democracia se escorar no eleitor-consumidor, ele será perpetuamente infantil. Eis um traço preocupante da política contemporânea, agudo no Brasil, mas presente também nos países ricos. E o pior é que nosso Congresso age de maneira parecida. Afirmei outro dia que o Executivo federal é o garante de nossa racionalidade. Ao não pagar emendas paroquiais ao orçamento, ao vetar leis inconvenientes, ao ter nas pastas ministeriais quadros superiores aos que dirigem as comissões parlamentares, ele atenua o impacto de demandas imediatas, populares ou parlamentares, sobre as finanças e, mais que isso, sobre a construção de nosso futuro. Teria dito FHC, quando presidente, comentando uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que perturbava as finanças públicas: "Eles não pensam no Brasil". É um pouco essa a ideia. Em nossa democracia, pensar no Brasil e em seu futuro se torna dever e ofício da Presidência da República, a quem cabe a tarefa racional de sacrificar o desejo imediato em nome do bem futuro, no lugar dos eleitores, envoltos pelo consumo, e dos parlamentares, ansiosos por serem populares.
Como mudar este quadro? Não creio que uma reforma política ou eleitoral o altere; ela terá seus méritos, mas não aqui. A única saída é melhorar a educação e, sua parceira mais que necessária, a cultura. Este é tema para a próxima coluna.
Nenhum comentário:
Postar um comentário