quarta-feira, 31 de maio de 2023

Eles querem o petróleo, Carlos Alberto Sardemberg, O Globo (definitivo)

 

Petrobras quer explorar a Margem Equatorial Brenno Carvalho
Carlos Alberto Sardenberg

Jornalista

É preciso ter uma sólida convicção ambientalista para desistir dessa que era a grande riqueza do século passado

Há meio PIB brasileiro depositado na nossa Margem Equatorial. Encontram-se ali, numa boa estimativa, 15 bilhões de barris de petróleo. A US$ 70 o barril, temos US$ 1,05 trilhão, ou cerca de R$ 5 trilhões — metade do valor de tudo que se produziu no Brasil no ano passado. Meio PIB.

Claro que seria um dinheiro obtido ao longo de anos de exploração, mas também seria preciso acrescentar o valor dos investimentos a fazer nos estados — instalação de bases terrestres e marítimas, portos e aeroportos, aquisição de barcos e aviões. E empregos numa região, incluindo o Norte e parte do Nordeste, bastante pobre.

É preciso ter uma sólida convicção ambientalista para desistir dessa que era a grande riqueza do século passado, o motor das economias todas. Mas como continua dando dinheiro e movendo boa parte do mundo, e ainda moverá por algumas décadas, seria preciso também uma clara visão do futuro para desistir daqueles R$ 5 trilhões.

O que nos mostra essa visão? Energia verde, o emprego digital, dependente do cérebro, não dos braços, escola pública de qualidade, a riqueza dos softwares, inteligência artificial, o motor elétrico. Encontram-se essa convicção ambientalista e essa visão de futuro no governo Lula?

Considerem o programa do carro popular anunciado pelo vice-presidente Geraldo Alckmin: redução de impostos para baratear carros movidos a motor a combustão. A coisa inclui regras como “eficiência energética”, condição para receber a isenção. Mas não diz do que se trata. Etanol? Ora, praticamente não tem motor só a etanol, é tudo flex, a petróleo, pois. Carro elétrico está excluído. Só haverá benefício fiscal para carros abaixo de R$ 120 mil, e por aqui não tem elétrico por menos de R$ 200 mil. O programa exigirá também componentes nacionais, mas não diz em qual proporção. Tudo considerado, a ideia básica é oferecer ao público um carro de R$ 60 mil, chamado de popular.

Como notou Zeina Latif, 70% dos brasileiros ganham até dois salários mínimos. A manutenção de um carro, incluindo licenciamento, IPVA, combustível, estacionamento, troca de óleo, e mais a prestação, claro, fica em torno de R$ 1.500 por mês. Popular para quem? E notem que o benefício fiscal também vai para ricos que compram carro de R$ 120 mil.

Sim, o setor automobilístico emprega. Mas o programa anunciado por Alckmin não inclui compromisso com a geração de novas vagas, nem mesmo com a manutenção das já existentes. Fica assim, portanto: uma mãozinha para a velha indústria automobilística, campeã de subsídios e proteções. E que está longe de produzir carros modernos. O melhor que se tem é o motor flex, que Lula e Alckmin querem exportar para a África. Sabe como é... Eles também são assim como nós.

Nessa visão, precisa do petróleo, não é mesmo?

Dirão: mas mesmo países já encaminhados para a economia verde continuam produzindo petróleo.

Verdade, parcial.

Considerem a Noruega. Está aumentando a produção e a exportação de petróleo. Mas todo o incentivo local vai para o ouro lado: 80% dos carros novos vendidos no ano passado são elétricos. Em 2025, serão todos. A política principal é de transporte público sustentável.

Ok, trata-se de um país pequeno e já rico. Mesmo assim, proporciona lições úteis para nós. A produção de petróleo é estatal. Mas não se gasta o dinheiro obtido diretamente com a venda do óleo. Essa renda engorda um fundo de investimentos do governo, que aplica em negócios no mundo todo. A renda desse fundo é usada nos programas locais. Muito especialmente em boas escolas e boa saúde — e em programas de economia verde. O dinheirão do petróleo fica lá, para financiar aposentadorias daqui a uns 20 anos.

Aqui, estados como o Rio de Janeiro já gastaram os royalties do petróleo que receberão em dez anos. E a última coisa em que se pensa no governo federal é na formação de alguma reserva para o futuro. Por isso precisam do óleo da Margem Equatorial. O do pré-sal? Já estão torrando.


O STF e a chance de um salto civilizatório., Meio

 Por Denise Tamer*

A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, pautou para amanhã, 1º de junho, a retomada do julgamento que pode descriminalizar o porte de drogas no Brasil. Essencialmente, o que está em jogo no julgamento é o artigo 28 da Lei de Drogas, dispositivo que criminaliza o usuário de drogas — ou seja, a pessoa que compra, guarda, mantém em depósito ou porta drogas para consumo próprio. Quem defende a descriminalização do porte de drogas afirma que o artigo 28 contraria a Constituição Federal por criminalizar atitudes que dizem respeito à vida privada. E mais: tende a punir em excesso um tipo específico de cidadão.

“A percepção geral é de que o tratamento criminal aos usuários de drogas alcança, em geral, pessoas em situação de fragilidade econômica, com mais dificuldade em superar as consequências de um processo penal e reorganizar suas vidas depois de qualificados como criminosos por condutas que não vão além de mera lesão pessoal. Assim, tenho que a criminalização da posse de drogas para uso pessoal é inconstitucional, por atingir, em grau máximo e desnecessariamente, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas várias manifestações, de forma, portanto, claramente desproporcional”, diz um trecho do voto do ministro Gilmar Mendes, relator do caso. Esta defesa aconteceu em 2015, quando o processo começou a ser julgado. Mas o julgamento foi paralisado por um pedido de vista e desde então ficou engavetado. Ao lado de Mendes, também votaram pela descriminalização do usuário Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. Ainda faltam os votos de sete ministros.

Hoje, no Brasil, um em cada três homens presos foram acusados ou condenados por tráfico de drogas; duas em cada três, no caso das mulheres presas. Os dados são do livro Lei de Drogas Interpretada na Perspectiva da Liberdade, escrito pelo advogado Cristiano Maronna, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), diretor do justa.org.br, membro da Rede Reforma e representante da OAB no Conselho Municipal de Política sobre Drogas de São Paulo. Para ele, uma alteração na Lei de Drogas significa um avanço civilizatório possível. Colocaria o Brasil em uma posição um pouco mais próxima de países como Canadá e Uruguai. E, no conturbado cenário político atual, com um Congresso mergulhado no reacionarismo, Maronna acredita que o Judiciário é o único caminho para essa mudança. Confira os principais trechos da entrevista.

Esse julgamento mudou de data várias vezes. Por que o Brasil tem tanta dificuldade de lidar com o assunto?
Em primeiro lugar, a descriminalização significaria o maior avanço na política de drogas brasileira em décadas. Não faz sentido criminalizar o porte de uso pessoal. Vários países da Europa e da América Latina já descriminalizaram. O Brasil é um dos últimos países a ainda criminalizar. Não por acaso, o Índice Global de Política de Drogas, da ONU, publicado em 2021, coloca o Brasil no último lugar entre 30 países pesquisados. Este caso entrou no Supremo em 2011, começou a ser julgado em 2015 e foi interrompido pelo pedido de vista do ministro Teori Zavascki em novembro de 2015. O ministro Zavascki faleceu em fevereiro de 2017 e no seu lugar assumiu Alexandre de Moraes, que recebeu seu acervo. No final de 2018, Moraes disse que estava pronto para apresentar seu voto. O ministro Toffoli, presidente do Supremo em 2019, chegou a pautar a continuação do julgamento para julho daquele ano. Mas, nas vésperas, retirou da pauta. Colocou de volta em novembro de 2019. Retirou de novo. E aí o processo ficou engavetado até agora. Por um lado, é muito esperançoso que ele tenha sido pautado. Por outro, estamos calejados, sabemos que a data do Supremo pode mudar a qualquer momento e não se sabe exatamente as razões. Quando o ministro Toffoli tirou da pauta em 2019, nenhuma explicação foi dada além da meramente burocrática.

O que a aplicação da Lei de Drogas até aqui revela sobre o Brasil?
A nossa Lei de Drogas é um parâmetro que revela o grau de retrocesso civilizatório em que nos encontramos. Ela é o maior exemplo de como a aplicação disfuncional de uma lei pode gerar coisas negativas. No Índice Global de Políticas sobre Drogas, em primeiro lugar está a Noruega, que tem o maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo. Depois, vêm Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido... As primeiras posições são de países com melhores IDH e com PIBs bem mais elevados do que o nosso também. É preciso fazer a relação: de uma maneira geral, nas sociedades onde a democracia é levada a sério, regras sobre aborto, eutanásia e uso de drogas acabam sendo mais tolerantes do que em lugares onde a democracia tem baixa intensidade, como é o caso do Brasil. Nesse sentido, a aplicação da Lei de Drogas pode ser um parâmetro indicativo de avanço civilizatório, sim. Nas sociedades mais avançadas, onde existe menos desigualdade, onde existe um Estado de bem-estar social que garante saúde, educação, transporte, moradia e direitos sociais são concretizados, a questão das drogas parece ser encaminhada de uma outra forma, com outra abordagem. E aí identificamos justamente que a América do Sul, América Central e Caribe foram as regiões mais afetadas pela guerra às drogas, fazendo uma relação entre essa guerra e a militarização da segurança pública, a letalidade policial e o super encarceramento. E no Brasil, a pauta tem dificuldade de avançar porque há uma interferência da religião no Estado. Isso acaba se tornando uma disputa entre o poder do Estado laico e o poder do Estado religioso.

Políticas de drogas que buscam regular, que abandonam o paradigma proibicionista e tentam uma abordagem mais pragmática, com redução de danos e regulação responsável, acontecem justamente em países onde há matéria-prima democrática.

O que realmente está em jogo nessa votação?
São vários fatores. Primeiro, há a discussão sobre se haveria ou não uma invasão de competência do Judiciário no Legislativo, ao tratar da inconstitucionalidade do artigo 28, que criminaliza a posse para uso pessoal. Os bolsonaristas estão alegando que o Supremo não deveria tratar do tema, que seria de competência do Legislativo. É mentira. O que o Supremo está fazendo, e deveria fazer, é realizar o controle de constitucionalidade de normas jurídicas. No Brasil, conforme a Constituição, quem dá a última palavra sobre a constitucionalidade das notas jurídicas é o Supremo. Então, declarar inconstitucional uma norma é algo corriqueiro de uma Corte constitucional. Não há nenhum tipo de invasão de um poder. Vencido isso, temos uma série de discussões trazidas na continuidade do julgamento, em razão dos três votos já proferidos. O voto do Gilmar Mendes propõe declarar inconstitucional o artigo 28 da Lei de Drogas e transformá-lo de norma penal para norma administrativa. E isso valeria para todas as drogas. Assim, a posse de drogas para o uso pessoal deixa de ser crime, mas continua sendo um ilícito administrativo. Algo parecido com uma infração de trânsito, que rende uma multa. O ministro Fachin, por sua vez, restringe a declaração de inconstitucionalidade apenas à maconha. Não entra nessa discussão sobre se tornar uma norma administrativa, simplesmente declara a inconstitucionalidade do artigo 28. Em princípio, isso significa que essa conduta deixa de ser criminosa e deixa também de ser ilegal. E, em terceiro lugar, temos o voto do ministro Barroso, que declara a inconstitucionalidade só da posse para uso pessoal da maconha. Então, o artigo 28 deixaria de ser constitucional apenas quando o porte de drogas for a maconha. E propõe critérios objetivos: que a pessoa com até 25 gramas de flor ou até seis plantas fêmeas deve ser considerada usuária.

Então, além de definir a constitucionalidade do artigo, é preciso redefinir o que punir daqui em diante?
Os ministros, nos seus votos, reconhecem a zona cinzenta na distinção entre o uso e o tráfico de drogas. Esses são os debates que devem ocorrer: primeiro, se é competência do Supremo ou se haveria uma interferência na atuação legislativa. Segundo, se a declaração da inconstitucionalidade vai ser majoritária. Temos três votos, ainda faltam sete ministros para votar. E há muitas dúvidas. Pode ser que a maioria discorde dos votos proferidos até aqui e declarem a constitucionalidade do dispositivo, o que me parece uma aberração jurídica. Mas pode acontecer. Se declarada a inconstitucionalidade pela maioria, nós temos que analisar o teor dos votos: se vão se referir a todas as drogas ou apenas a maconha, e se vão fixar critérios objetivos para diferenciar o uso e o tráfico.

No seu livro, você afirma que “a legislação de drogas brasileira, tradicionalmente, é essencialmente punitiva. Vivemos ainda sob o paradigma de guerra às drogas”. Uma mudança deste paradigma pode acontecer nesse julgamento?
É uma boa discussão. Vários países do mundo já perceberam que a guerra às drogas é um fracasso e que é preciso buscar alternativas. Temos experiências ocorrendo em lugares como Canadá, Estados Unidos, Uruguai. A Alemanha agora discute isso também. E em vários países da Europa existem regras mínimas. É evidente que a guerra às drogas é uma política irrealizável. E a guerra às drogas, sabemos, não é contra as substâncias, mas é contra certas pessoas. O exemplo brasileiro é bastante claro, quando se percebe que o grande alvo da polícia acaba sendo as pessoas não brancas. O fato de que os presídios têm uma maioria de pessoas não brancas prova isso. Só que no Brasil essa questão é muito politizada. Temos no Congresso uma “bancada da bala”, que é basicamente uma bancada a favor da guerra às drogas. De um ponto de vista da correlação das forças políticas, nós estamos em desvantagem. Isso significa que, pelo Legislativo, as mudanças seriam para pior. Diante do atual quadro político, só vislumbro a possibilidade de avanços nessa frente pelo Judiciário.

Você também diz que o número expressivo de presos por tráfico de drogas mostra que essa lei é o principal vetor encarcerador no Brasil, que tem hoje a terceira maior população prisional do planeta. 
Sim, a lei de drogas é o principal vetor encarcerador no Brasil e este encarceramento é fruto de uma aplicação disfuncional da lei. Pessoas que são usuárias acabam sendo condenadas como traficantes. Essa é uma situação extremamente negativa do ponto de vista do interesse público. As prisões brasileiras são sementeiras de reincidência. A questão é justamente essa: nós vamos insistir em um modelo político criminal que não está dando certo? Insistir nessa política criminal é mais ou menos como insistir num tratamento que não funciona. E a única mudança que de fato é capaz de transformar essa realidade é um processo de regulação das drogas, começando pela maconha.

Recentemente, Lula chamou Viviane Sedola, uma das principais figuras do cenário da Cannabis no Brasil, para ser parte do seu Conselhão. Estamos caminhando para uma regulamentação da maconha?
Existem sinais positivos. A presença de Viviane Sedola no Conselhão é um ponto a favor, mas existem outros, como a presença do ministro Silvio Almeida. Ele tem se manifestado sobre o tema de maneira muito contundente. E quem conhece a história dele sabe que ele não iria se omitir. Porém, o governo é um campo em disputa. Existem outras forças de poder, como o ministro Flávio Dino, que já disse que uma regulamentação de drogas de uso adulto não é prioridade. Analisando o cenário político, já estamos em junho, praticamente um semestre que se encerra, o que vemos é um governo com muita dificuldade no Legislativo, que é avesso a essas pautas. Podemos dizer que o governo anterior deixou esta herança maldita, que é o fortalecimento das bancadas conservadoras como a evangélica, da bala e do boi. São setores refratários a avanços civilizatórios, que costumam defender a Idade Média. O que chamam de valores morais é eufemismo para essas políticas medievais. Então, nesse cenário, em que a maioria é refratária a mudanças modernizantes, não podemos esperar grandes coisas do Legislativo. E do Executivo, da mesma forma. Resta o Judiciário.

Se o Supremo Tribunal Federal decidir que o artigo 28 da Lei de Drogas é inconstitucional, não há recurso para quem discordar. O Judiciário é a última esperança para um avanço na política de drogas do Brasil.

Quais são as diferenças dos modelos regulatórios em relação a drogas?
Despenalização é o que existe no Brasil. O porte é crime, mas é sancionado com medidas alternativas. Há a descriminalização da conduta de porte para uso pessoal. É o caso de Portugal, que desde 2001 deixou de criminalizar a posse, estabelecendo critérios baseados na quantidade. Tem também a legalização, que torna legal todas as fases da cadeia produtiva — é o caso do Uruguai e do Canadá. A legalização não é o “libera geral”. É o oposto. Significa criar regras, mecanismos de controle como existem em relação a outras indústrias. A conclusão é que é melhor controlar e regular do que proibir e reprimir. Por mais perigosa que seja uma substância, por mais riscos que existam associados ao consumo de certa substância. E não há dúvidas de que há riscos. Mas uma política de drogas deveria basear-se em evidências científicas e buscar controlar e regular essa situação, garantindo limites. E também oferecer tratamento adequado focado na saúde, nos direitos humanos e na redução de danos.

Atualmente, o Conselho Nacional de Política sobre Drogas (Conad) está realizando a escolha de novos integrantes. Qual é a importância desse conselho para o Brasil?
No governo anterior, o Conad foi desmobilizado e a sociedade civil foi excluída. A OAB, por exemplo, tinha um assento e deixou de ter. Agora, o novo governo busca revitalizar o conselho e trazer a sociedade de volta. Foram abertas 10 vagas para que a sociedade civil possa ocupar por meio de um sistema de inscrição e votação em áreas correlatas, como saúde, direitos humanos, justiça, pesquisa, etc. O problema é que os adversários, os proibicionistas, os punitivistas também se inscreveram e vão concorrer. Estão em grande número, até porque há uma fragmentação sobre as federações que se dividem, ao que parece, para aumentar o número de votos. Esta foi minha primeira impressão ao observar a lista de habilitados. Há uma inflação de entidades ligadas a comunidades terapêuticas, por exemplo, o que impactaria diretamente no número de votos que esse campo político pode ter na disputa por essas vagas. E o campo antiproibicionista vai precisar se mobilizar e agir com inteligência para tentar superar as adversidades nessa disputa.

Fala-se muito sobre a importância da redução de danos. O que é esta política pública reconhecida pela Organização Mundial da Saúde, a Constituição, a própria Lei de Drogas, e o Ministério da Saúde?
São estratégias de cuidado que reconhecem que há pessoas que usam drogas, que não querem ou não conseguem deixar de usar, mas que é possível melhorar a qualidade de vida delas. Exemplos: troca de seringas para pessoas que usam drogas, fornecer água para pessoas que usam drogas como MDMA e equivalentes. Nós temos, em alguns lugares do Hemisfério Norte, salas de uso seguro, onde há um ambiente higiênico para usuários de drogas. São programas que foram implantados há mais ou menos 20 anos e que têm sido muito bem sucedidos. Há uma grande polêmica a respeito da redução de danos, porque ela contempla uma ética do cuidado não necessariamente vinculada à abstinência, ao não uso. E ao desafiar esse pilar central do proibicionismo, o “diga não às drogas”, que é a negação da possibilidade de qualquer consumo, ela cria uma fenda, exibe uma contradição em relação ao proibicionismo baseado na abstinência. Mas é um conceito tão amplo que vale inclusive para políticas proibicionistas.

*Jornalista com mestrado em comunicação e cultura pela Universidad Catolica de Uruguay, em Montevidéu. Escreve sobre diferentes usos da Cannabis e sobre política de drogas no Brasil e no mundo.


Plano de carro popular é um ‘desastre’, um ‘absurdo’ do ponto de vista social, avalia Samuel Pessôa, Cleide Silva, OESP

 Medidas anunciadas pelo governo Lula na quinta-feira, 25, para dar fôlego ao setor industrial, já foram adotadas no passado e não deram certo, avalia o economista Samuel Pessôa. Nos mandatos anteriores, diz ele, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) colocou R$ 400 bilhões em políticas de crédito subsidiado “e, mesmo assim, a indústria perdeu participação no PIB”.

No caso da indústria automobilística, que terá isenções fiscais para voltar a produzir carros populares, ou mais baratos, Pessôa vê como “um desastre” reduzir impostos tendo como uma das regras o maior índice de uso de componentes fabricados no Brasil.

“Eu eliminaria o requerimento de conteúdo nacional e deixaria trazer peças de fora e montar o carro no Brasil, mas com meta de exportação”, diz. “Qualquer política pública deveria ter como meta forçar as montadoras a acessarem o mercado internacional.”

A seguir, leia trechos da entrevista.

Qual sua avaliação sobre as medidas anunciadas para a indústria?

O governo petista, na outra fase no Planalto, colocou R$ 400 bilhões no BNDES para gerar fundos para políticas de crédito subsidiado. Os estudos que conheço mostram que não gerou muitos resultados. Esse governo faz parte de um grupo que ficou à frente do Planalto por 13,5 anos, e volta com as mesmas políticas. Parece que acham que, da outra vez, o resultado foi bom, mas essas políticas geraram a maior crise da história do País. Precisa ver os detalhes das medidas, mas acho que crédito para exportação, por exemplo, deveria ser de natureza diferente, assim como subsidiar compra de máquinas e investimentos.

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O que seria mais viável?

Da outra vez eles colocaram muito dinheiro (em subsídios) e mesmo assim a indústria perdeu participação no PIB. Por que agora vai ser diferente? Eu acho que tem problemas estruturais que explicam a dificuldade da indústria no Brasil. Por exemplo, ela não consegue exportar. Muitos falam dos subsídios agrícolas, mas a agricultura exporta, e muito. Por que dar, por exemplo, subsídio para a indústria automobilística se ela não consegue exportar o nosso carro? O dia em que a nossa indústria conseguir fazer um carro que compita no mercado internacional, aí vou achar que algum tipo de subsídio ou política vai fazer sentido. Mas essa é uma indústria que está conosco há 60 anos, e tirando um ou outro período relativamente curto, nunca gerou capacidade exportadora.

De que problemas estruturais o sr. está falando?

O primeiro é que o Brasil é um país de juro alto, e é alto porque nossa taxa de poupança é baixa e o risco país é elevado. Temos de resolver o problema fiscal, temos de aumentar a poupança do setor público, resolver os problemas da falta de mão de obra qualificada e do sistema educacional. Muitos ficam o tempo todo falando de Coreia, Taiwan, Japão, e China. Olhem a qualidade educacional desses lugares, a taxa de poupança. Eles não têm indústria porque têm subsídio, mas porque trabalham muito, estudam muito, poupam muito.

Baixar preço de R$ 70 mil para R$ 60 mil, significa dar R$ 10 mil para a classe média comprar carro, avalia Pessôa
Baixar preço de R$ 70 mil para R$ 60 mil, significa dar R$ 10 mil para a classe média comprar carro, avalia Pessôa Foto: Hélvio Romero/Estadão

Como avalia as medidas para a volta do ‘carro popular’?

É na mesma linha. Ouvi gente dizendo que essa política está mais bem desenhada, tem contrapartidas de tecnologia, conteúdo nacional, mas as últimas políticas para o setor, e que não deram certo como Inovar Auto e Rota 2030 já tinham cláusulas de eficiência energética, de conteúdo local, estímulo a pesquisa e desenvolvimento. Não tem nenhuma novidade no desenho, vão fazer mais do mesmo. Do ponto de vista social é um absurdo. O Brasil é um país pobre, e um bem que custa R$ 70 mil não é para pobre, é para a classe média. Se baixar o preço para R$ 60 mil, significa que vai dar R$ 10 mil para a classe média comprar carro. O carro congestiona nossas vias públicas, polui a cidade, produz efeito estufa e é contra a transição energética. Essa política gera gasto tributário e o ministro Fernando Haddad mais de uma vez disse que o objetivo dele é reduzir o gasto tributário. É uma agenda inversa à do ministro.

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No novo plano há mais benefícios para carros mais baratos, com menos emissões e maior conteúdo nacional. Não são contrapartidas importantes?

Acho isso um desastre. Se eu tivesse de fazer essa medida, faria diferente. Eliminaria o requerimento de conteúdo nacional e deixaria trazer peças de fora e montar (o carro) no Brasil, mas com meta de exportação. O problema da indústria brasileira é que a economia globalizou, e uma planta, para ser eficiente, tem de produzir pelo menos 300 mil unidades do mesmo modelo por ano. Para gerar mais escala, precisa ter acesso ao mercado internacional porque só o doméstico não dá escala suficiente. Por outro lado, para exportar o carro precisa de melhor qualidade, e elevados elementos de conteúdo nacional reduzem a qualidade. A política teria de ter como meta incluir a indústria automobilística nas cadeias globais de valor. A Embraer, por exemplo, está na cadeia global, não tem requerimento de conteúdo nacional e é por isso que seu avião é bom. Praticamente metade do seu valor é conteúdo importado.

Aumentar importação não reduziria empregos?

Não, porque a indústria se especializa, compra mais componente de fora, monta e faz alguma etapa melhor aqui dentro e ganha no volume. Ao produzir mais unidades com menor conteúdo nacional, a qualidade é maior e a empresa é capaz de sobreviver sem subsídio, porque se torna competitiva. A única régua para avaliar o sucesso de uma atividade produtiva é a capacidade de acessar o mercado internacional. Se não acessa, o produto é ruim, não vale a pena subsidiar. Qualquer política pública deveria ter como meta forçar as montadoras a acessarem o mercado internacional.

Qual sua opinião sobre o arcabouço fiscal?

Não era o que eu faria, mas acho que está correto, embora tenha alguns problemas graves que limitam muito sua eficácia. A regra aprovada é, essencialmente, a do teto de gastos do (ex-presidente Michel) Temer, um pouco mais complicada. Um grupo político passou anos batendo no Temer, reclamando do teto de gastos, mas ganha a eleição e faz essencialmente o teto de gastos dele, com algumas mudanças. Eu acho que o teto é importante, mas é também importante que um partido de esquerda que ganhou a eleição demonstre essa responsabilidade fiscal. A gente tem de lembrar que o governo petista nunca fez muito ajuste fiscal, ele herdou uma situação fiscal sólida do governo anterior e teve a consciência de mantê-lo, o que é certo. Mas agora precisa construir uma situação fiscal sólida e é muito mais difícil construir do que manter uma situação previamente estabelecida. Acho que o teto de gastos é o primeiro passo, mas é insuficiente.

O que o sr. quer dizer com isso?

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Como o ponto de partida já é uma situação fiscal ruim, isso faz com que esse teto não seja capaz de estabilizar a dívida pública. Se ela for aplicado nos quatro anos do governo, as simulações que eu conheço sugerem que a dívida pública vai subir 15 pontos porcentuais do PIB. Vamos sair de uma dívida de 74% do PIB para 89%. O presidente Lula tem um trabalho grande de convencer o Congresso a dar mais receita para ele, mas o Congresso tem se recusado a aumentar carga tributária há duas décadas.

Qual sua avaliação geral do governo Lula?

É um governo que começou com o pé trocado. O Lula é provavelmente a maior liderança política da história do País, é muito experiente, foi eleito três vezes presidente e fez uma sucessora. É uma pessoa que tem um sucesso na política brasileira que ninguém nunca teve. Dado o que acontecia no País, ele avaliou que tinha de começar o governo com o pé no acelerador do gasto público. Com isso, avaliou que tinha de rasgar o ‘livro texto da ciência política’. Segundo o ‘livro’, se começa um mandato com uma dominância da economia sobre a política, ou seja, gastando capital político para arrumar a casa, colhe uma situação melhor no final e termina bem o governo, com uma dominância da política sobre a economia. Ele começou aprovando uma emenda constitucional para colocar R$ 200 bilhões a mais no orçamento e queimou o capital político para gastar mais. De certo vai ter problemas para conseguir governar.

Com todas as dificuldades, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem se saído bem

Qual seria a razão dessa escolha?

Quando ouço cientistas e analistas políticos, a explicação que dão para tentar entender essa escolha é que o presidente Lula avaliou que, dado uma vitória por pequena margem, numa sociedade muito polarizada, deveria haver algumas entregas imediatas do governo, produzir resultados imediatos para a população porque dessa forma conseguiria diluir de alguma maneira essa polarização, esse clima ruim de disputa da sociedade brasileira. Não sei se está certo ou não, mas o ponto é que o governo começou assim, e sobrou um ‘pepinão’ para o ministro da Fazenda, que tem de arrumar essa situação toda.

E que avaliação o sr. faz do ministro Haddad?

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Com todas as dificuldades, ele tem se saído bem. A agenda do governo hoje é estabelecida principalmente por ele. O fato de o governo ter uma agenda dá um norte, um caminho, e isso é bom. Qual é a agenda? Marco fiscal, reforma tributária, planejamento tributário, renda. É uma agenda meritória que ataca nossos maiores problemas como desequilíbrio fiscal, baixa produtividade do trabalho e falta de renda. Agora vamos ver quais serão os esforços do presidente Lula no Congresso para conseguir aprovar essa agenda.