segunda-feira, 17 de agosto de 2020

A política como ela é, Catarina Rochamonte, FSP

 

O novo líder do governo na Câmara, o deputado Ricardo Barros (Progressistas) é um expoente do centrão que já foi condenado a ressarcir os cofres públicos quando prefeito de Maringá, apareceu na lista da Odebrecht como beneficiário de propina, foi denunciado por improbidade administrativa quando ministro da Saúde, teve o mandato cassado por compra de votos (ingressou com recurso que anulou a decisão), foi relator do projeto de lei contra o abuso de autoridade e, adivinhem só, é um dos inúmeros inimigo da operação Lava Jato.

Na sua primeira entrevista depois de se tornar líder, Barros atacou Sergio Moro, disse que a Lava Jato estava sendo "combatida até pelo procurador-geral da República" e que as suas ilegalidades seriam passadas a limpo. Ou seja, reproduziu a ladainha que até pouco tempo era exclusividade da esquerda.
Mas ele declarou também que assumiu a posição de líder "justamente na hora em que o presidente Bolsonaro se articula com a política como ela é."

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O novo líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (Progressistas) - Gilmar Felix/Câmara dos Deputados

Infelizmente somos herdeiros de Maquiavel. Encaramos a política como ela é; pouco nos importando como ela deve ser. Aceitamos passivamente o corte entre política e ética perpetrado pelo pensador florentino e já não ousamos conceber a virtude e o bem comum como meta da vida pública. Somos modernos. Entendemos a política como conquista e manutenção do poder; fim esse para consecução do qual todos os meios são válidos.

Vale se aliar à velha política jurando de dedinho combater o establishment; vale sancionar fundo eleitoral, juiz das garantias, lei de abuso de autoridade, limitação de delação premiada e restrição de prisão preventiva. Vale dizer que vai dar carta branca a Moro e em seguida tentar interferir no seu ministério. Vale interferir na Polícia Federal, nomear petista para PRG e assessor de Toffoli para Ministério da Justiça. Vale trocar dois ministros da Saúde em meio a uma pandemia. Vale tudo na política porque esse vale tudo é justamente "a política como ela é."

Catarina Rochamonte

Doutora em filosofia, autora do livro 'Um olhar liberal conservador sobre os dias atuais' e vice-presidente do Instituto Liberal do Nordeste (ILIN).

Nabil Bonduki A boiada que Doria quer passar deixará Ricardo Salles e Bolsonaro com inveja, FSP

 Não podemos dormir tranquilos. Não bastasse a pandemia, a crise econômica e a possibilidade de acordar com a notícia de um óbito de um ente querido, estamos sempre em risco de ver um dos nossos governantes utilizar esses tempos de isolamento social para, sorrateiramente, avançar no desmonte do estado ou na promoção de alterações legislativas sem debate com a sociedade.

O país assistiu estupefato à reunião ministerial de 22 de abril, quando o ministro Ricardo Salles afirmou que o governo Bolsonaro deveria aproveitar a pandemia, momento em que a opinião pública está distraída, para fazer passar a boiada, alterando a legislação ambiental.

Lamentavelmente, a estratégia bolsonarista está fazendo escola, inclusive entre um dos seus atuais maiores desafetos, o governador João Doria. Sob a genérica ementa de “estabelecer medidas voltadas ao ajuste fiscal e ao equilíbrio das contas públicas”, o governador encaminhou à Assembleia Legislativa, em caráter de urgência, o Projeto de Lei 529/2020, uma boiada de fazer inveja a Ricardo Salles.

O governador João Doria na entrevista que concedeu na segunda (10) para falar da Covid
O governador João Doria na entrevista que concedeu na segunda (10) para falar da Covid - Newton Menezes - 10.ago.2020/Futura Press/Folhapress

O projeto de lei tem sido divulgado como se se limitasse à extinção de autarquias e empresas estaduais e à redução do quadro de servidores celetistas estáveis, que trabalham, como afirma a justificativa do PL, "com dificuldade ou sem interesse”, o que já seria bastaste. Mas ele é muito mais do que isso. Uma verdadeira manada.

A gestão Doria mistura, em um único projeto de lei, alhos e bugalhos, propondo que o legislativo autorize de uma só vez: a extinção de dez empresas públicas, fundações e institutos de pesquisa e de 12 fundos; a limitação da autonomia financeira e a retirada de fundos das universidades públicas paulistas e da Fapesp; a venda do patrimônio imobiliário do estado e de suas autarquias; a concessão de parques e unidades de conservação à iniciativa privada; o aumento de impostos, como o IPVA, entre dez grupos diferentes de iniciativas polêmicas.

O objetivo declarado do pacote, pomposamente chamado de “Programa de Modernização Administrativa" seria cobrir o déficit orçamentário do estado, estimado em R$ 10,4 bilhões para 2021, ou seja, 4,6% das despesas previstas.

Não se questiona a necessidade do estado equilibrar suas contas, mas a maneira como isso está sendo feito, em um período de isolamento social, sem debate público, misturando temas que nada tem a ver um com outro e extinguindo instituições relevantes sem apresentar alternativas de gestão, é totalmente equivocado.

A proposta está longe de ser uma necessária reforma administrativa do estado. Propõe simplesmente de extinguir instituições relevantes, se limitando a dizer que suas finalidades serão cumpridas por outros órgãos estaduais ou pelo setor privado, sem definir como isso será feito.

Caso, por exemplo, a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), órgão criado há mais de 70 anos com o objetivo de produzir habitação social. A empresa, que já passou por várias fases, vem sendo esvaziada pelas últimas gestões do PSDB, que tem preferido firmar parcerias público privadas, que atendem um número limitado de famílias.

É consenso entre os especialistas que o problema de moradia da população de mais baixa renda, onde se concentra o déficit habitacional, não será equacionado apenas pelo setor privado, requerendo a implementação de programas e ações que apenas uma empresa pública poderá cumprir. Se a CDHU precisa mesmo ser reestruturada e modernizada para que possa ser estratégica para o equacionamento de um dos principais problemas sociais, não é isso que está sendo proposto.

O mesmo pode ser dito, guardadas as especificidades, da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP), que tem por objetivo planejar e executar as políticas agrária e fundiária.

Já a extinção de vários institutos de pesquisa estaduais, como o Instituto Florestal, a Fundação para o Remédio Popular e a Fundação Oncocentro, mostra que a gestão Doria, nem mesmo na pandemia entendeu o papel do Estado no desenvolvimento científico. A reestruturação e reorganização dessas instituições talvez seja necessária, mas isso deveria ser feito com a participação dos pesquisadores e garantindo a continuidade das atividades em curso e não em um pacote que tem como único objetivo o ajuste fiscal e o desmonte do estado.

Já o Capítulo 5 do PL 529, que trata da transferência para o Tesouro Estadual do superávit financeiro apurado em balanço patrimonial das autarquias, inclusive as de regime especial, e das fundações, tem grande impacto na autonomia das universidades estaduais e na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Essas instituições recebem recursos vinculados e gozam de autonomia financeira, podendo planejar suas ações de modo a criarem um superávit destinado a um fundo de reserva, a ser aplicado em investimentos ou em situações emergenciais, embora nos últimos anos, com a crise econômica, as universidades não tenham conseguido gerar um superávit significativo.

No caso da Fapesp, a mais importante agencia de fomento à pesquisa do país, o impacto desse dispositivo é grave, pois a excelência da instituição está baseada na sua autonomia financeira, resultante da receita vinculada que lhe é garantida constitucionalmente. Se o dispositivo for aprovado, ela terá que devolver ao caixa geral do estado os recursos que não tiverem sido utilizados até o final de cada exercício, rompendo com uma política cientifica baseada na autonomia financeira.

No capítulo que trata dos aspectos tributários, entre outros, o PL 529 unifica o IPVA em 4%, eliminando as alicotas mais reduzidas, aplicadas, por exemplo, para veículos que utilizam combustíveis limpos e com menor emissão de CO2. Trata-se de um grande retrocesso em um momento em que a transição ecológica e a mitigação das mudanças climáticas são questões fundamentais para o futuro do planeta.

Em outro capítulo, é autorizada a concessão para o setor privado de 14 parques estaduais, entre eles o Villa Lobos, o Água Branca e o da Juventude, sem que sejam estabelecidas as condições básicas que garantam o uso público dessas áreas. A autorização para a alienação do patrimônio imobiliário do estado é genérica, não se especificando todos os terrenos e glebas que serão privatizados.

Os temas tratados no PL 529 são tantos que esse espaço é pequeno para uma boiada desse tamanho. Como a Assembleia Legislativa tem a tradição de ser subserviente ao Executivo, não será surpresa se ele for aprovado em meio a um isolamento social que dificulta a mobilização e o debate público.

Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

Mathias Alencastro Avanço de Bolsonaro no Nordeste não é acidente provocado pela pandemia, FSP (definitivo)

 O avanço de Jair Bolsonaro no Nordeste não é um acidente provocado pela pandemia, mas o destino natural do seu projeto de poder. A extrema direita se move pelo desejo de conquistar os bastiões dos seus inimigos políticos.

Num processo bem documentado na literatura de ciência política, a Frente Nacional, por um meticuloso trabalho de porta a porta, explorando as dificuldades da integração dos imigrantes do norte da África e os problemas de segurança pública, conquistou o chamado cinturão vermelho das cidades francesas, como eram conhecidas as periferias organizadas pelo Partido Comunista desde antes da Segunda Guerra.

Na última década, a extrema direita alemã e a espanhola replicaram essa estratégia com algum sucesso, capturando regiões tradicionalmente vinculadas à esquerda.

O presidente Jair Bolsonaro cumprimenta apoiadores em São Raimundo Nonato, no Piauí
O presidente Jair Bolsonaro cumprimenta apoiadores em São Raimundo Nonato, no Piauí - Alan Santos - 30.jul.20/Presidência da República/Reuters

O populismo não ocidental tenta realizar em anos uma obra que demorou décadas para ser construída nos países europeus. Reeleito triunfalmente ano passado, Narendra Modi continua mobilizado na luta pela aniquilação do histórico Partido do Congresso.

Recentemente, lançou uma ofensiva no Rajastão (68 milhões de habitantes), uma das últimas grandes regiões controladas pela oposição, recorrendo à multiplicação de programas sociais e à cooptação de lideranças locais da nova geração, que não se reconhecem na história do velho partido da independência indiana.

Eleito por uma mistura de sentimento antipolítico, rejeição à alternativa eleitoral e desalento generalizado, Bolsonaro se beneficiou de palanques estaduais circunstanciais.

Em 2022, João Doria, que tatuou o nome do presidente em 2018, será um dos seus mais ferozes opositores. Wilson Witzel terá regressado ao anonimato de onde nunca deveria ter saído, e o fantasista Romeu Zema está condenado a ser derrubado pelo prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil.

Esse campo de ruínas obrigará Bolsonaro a se apresentar como um candidato puro-sangue de extrema direita, sem partido organizado, mas com um poderoso movimento de massa no Nordeste e no Centro-Sul, onde criou hegemonia nas periferias das grandes cidades.

O campo progressista deve estar preparado para a batalha regional. A estratégia do PT de apostar na nostalgia lulista de um eleitorado jovem, transformado por uma revolução do mercado do trabalho e da comunicação, está fadada ao fracasso.

Os mitos de Mahatma Gandhi e de Jawaharlal Nerhu nada serviram contra a máquina de Narendra Modi.

A velocidade com que os monumentos da centro-esquerda desmoronaram nas periferias da Europa também deveria servir de alerta para os petistas ainda iludidos pela força da memória coletiva.

Uma reação à altura do desafio seria a transformação do Consórcio do Nordeste em um movimento de oposição estruturado.

Com o Nordeste como principal palco eleitoral, essa geringonça regional, para retomar o conceito criado em Portugal, virou o único ponto de partida possível de um novo projeto progressista nacional.

Mathias Alencastro

Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).