segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Marcus André Melo 27 pandemias, FSP

 

"La vittoria trova cento padri, e nessuno vuole riconoscere l'insucesso" (a vitória encontra cem pais, e o fracasso não é reconhecido por ninguém), notou Conde Ciano, ministro do exterior e genro de Mussolini. A disputa em torno de quem é o responsável —que merece crédito ou deve ser punido— é ubíqua na política; mas ela se agudiza onde há tensões na separação horizontal e vertical de Poderes.

A estratégia de Bolsonaro para a pandemia consistiu em atribuir responsabilidade aos governadores pelo horror sanitário e pelo colapso da economia. A expectativa era dupla: se suas ações gerassem resultados positivos, tratava-se, como alegou, "de uma gripezinha". Caso contrário, seria a confirmação de que acabariam piorando a situação, como havia alertado.

Seu receio maior era uma conflagração que viesse a desestabilizar o governo. Se inicialmente o auxílio emergencial foi pensado como o melhor remédio para o colapso, seu enorme potencial político foi percebido "ex-post", quando o Congresso elevou seu valor de $190 para $500. O aumento para $600 pelo presidente buscou torpedear a estratégia congressual para desgastá-lo, caso o vetasse, e capturar o crédito político.

A responsabilidade congressual é difusa, e a presidencial é concentrada: "todo o esforço e o trabalho que o Parlamento faz geram louros para o Executivo", como lembrou o presidente do MDB. De qualquer modo, interessa ao Parlamento, sobretudo à oposição, "tomar posição" e falar para seu público interno.

Por outro lado, o aumento da popularidade de Bolsonaro em um quadro de mais de 100 mil mortos sugere que sua estratégia teve êxito.

O abandono do estilo confrontacional e o auxílio foram fatores cruciais. A transferência de responsabilidade pretendida não foi uniforme, o que impede generalizações. O presidente em parte logrou desresponsabilizar-se, mas a transferência de culpa é incerta. No entanto, ela foi facilitada pelo arranjo federativo que obscureceu ou até borrou completamente a responsabilidade federal.

O federalismo estimulou uma disputa política em torno do desempenho relativo dos estados, produzindo uma "desnacionalização da pandemia" —assim, são 27 diferentes pandemias. E revelou escassa solidariedade interregional, além de mecanismos perversos de culpabilização (certas populações ou dirigentes mereceriam sua sina).

Além disso, a difusão da Covid não segue um padrão uniforme: o ciclo temporal produz a sensação precoce de melhoria nos estados que foram atingidos primeiro, malgrado a escalada de vítimas.
Bolsonaro saiu na frente. O que ocorrerá quando "se desligar o aparelho" que garante a sobrevida de vastas parcelas do eleitorado, não sabemos.

Marcus André Melo

Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

Ruy Castro - A morte e a morte de Eric Bentley, FSP

 

Pode acontecer de um obituário ter sido escrito por alguém que também já morreu

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A morte de Eric Bentley, talvez o ensaísta mais importante da história do teatro, no dia 5 último, em Nova York, não mereceu uma linha na imprensa brasileira. Bentley era inglês, radicado nos EUA e estava com 103 anos. Foi o homem que divulgou, traduziu e explicou Bertolt Brecht para o público americano. Produziu também o maior corpo crítico sobre Bernard Shaw e, em 1971, juntou os interrogatórios do macarthismo num livro de 992 páginas, “Thirty Years of Treason”.

Bentley veio ao Brasil em 1988 e entrevistei-o para o Estadão. Brecht, segundo ele, era importante como encenador, não como teórico, o que explicava que, já então, suas peças tivessem “perdido o gume político”. As de Bernard Shaw, ao contrário, continuavam “uma homenagem à inteligência”. Mas, para Bentley, Shaw não ficava bem na Broadway, porque os atores americanos eram fracos nas falas longas: “Não sabem dizer parágrafos, só frases. Tendem a pôr um ponto nas passagens que foram escritas entre vírgulas”.

O obituário de Bentley no New York Times saiu no dia seguinte à sua morte e é uma aula de resumo biográfico e analítico de sua vida e carreira. Foi assinado por Christopher Lehmann-Haupt, antigo editor de obituário do jornal. No pé do texto, uma informação: Lehmann-Haupt morreu em 2018.

Significa que o artigo já estava pronto antes de 2006, que foi quando Lehmann-Haupt se aposentou no jornal, aos 72 anos. Naquele ano, já Bentley tinha 89 e tudo indicava que partiria antes. É prática comum da imprensa preparar com antecedência obituários de pessoas importantes e em idade avançada. O incomum é que o autor do obituário morra antes do personagem.

Eu devo saber. Em 1995, a Folha me pediu o obituário de Dercy Gonçalves. Ela tinha 90 anos; eu, 47. E não é que Dercy só foi morrer em 2008, aos 104, e, nos três anos anteriores, tive de pular várias fogueiras e quase fui embora primeiro?

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Livros sobre teatro do ensaísta inglês Eric Bentley
Livros sobre teatro do ensaísta inglês Eric Bentley - Heloisa Seixas
Ruy Castro

Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.