terça-feira, 7 de agosto de 2018

Pseudociência política é um problema, OESP (não lido)

O que é ciência? Esta é uma pergunta filosófica jovem, porque é recente a própria concepção de ciência como algo autônomo. Por muito tempo, todo conhecimento verdadeiro era parte da filosofia: o tronco seria a metafísica, ou filosofia primeira, e daí sairiam ramos, como a filosofia natural (ou física) e a filosofia política. O importante era dar os porquês e apontar as causas, remontando-as até o primeiro princípio, ou Deus.
Se você fosse um estudioso nascido na Antiguidade ou na Idade Média, provavelmente acreditaria que o universo é uma esfera composta por cinco elementos, e que cada qual ocupa o seu lugar natural. O elemento terra fica abaixo de todos, no núcleo, por ser o mais grave; em seguida vem a água, que fica sobre a terra; depois o ar, que é mais leve do que a água; depois o fogo, que vemos querer subir, com suas chamas apontando para cima; e por fim o éter, que compõe as estrelas que vemos fixas no firmamento. Esta é uma física capaz de dar todos os porquês: por que a pedra cai? Porque é do elemento terra, que quer ficar debaixo do elemento ar. Pela mesma razão a pedra afunda, pois o elemento também é mais pesado do que a água. Se a atirarmos para cima, cometemos um movimento violento, contrário à natureza, e ela logo ruma ao seu local natural, que é abaixo do ar. Já alguns corpos boiam porque são mistos, e o ar dentro de si quer ficar acima da água. Se o corpo misto afundar, é porque tem mais terra do que ar em sua mistura.
Tudo deu errado só no século XVI, quando Galileu apontou sua luneta para a lua e enxergou uma “outra terra”, com montanhas, vales e até lagos. Ora, tais elementos não poderiam estar aí; teriam todos de “cair” no nosso planeta. Mais tarde, Newton abandonaria de vez os elementos, e trabalharia com corpos regidos leis naturais. O planeta terra seria uma espécie de ímã gigante que atrai os corpos que estão sobre si com uma força que ele batizou de gravidade; e, em vez de ser possível explicar por que uma pedra cai depois de a lançarmos para o alto, é possível prever com detalhes o seu movimento, uma vez que se tenham observado regularidades na natureza e inferido leis a partir daí. Foi só com essa reviravolta da modernidade que surgiu essa coisa que hoje, olhando para trás, chamamos de ciência, mas que à época era ainda chamada de filosofia natural.
Tendo a ciência se emancipado da filosofia, esta pôde perguntar que é aquela. E foi em meados do século passado que ocorreu a revolução filosófica que nos interessa.
Para dizer o que é ciência, o mais natural seria insistir no seu caráter experimental, por oposição ao caráter abstrato da matemática. Os filósofos fizeram isto, e no século XX os positivistas lógicos acreditavam que tinham decifrado o método científico. O trabalho de um cientista consistiria em purgar seu vocabulário de palavras que não correspondessem a nada de experimental, só afirmar proposições que fossem passíveis de experimentação e, por fim, verificá-las na experiência. Tudo aquilo que não passasse por tais crivos seria “metafísico”, ou destituído significado, e a ciência seria o conjunto de proposições verdadeiras acerca do mundo.
Eis então que entra em cena Karl Popper. Ele aponta que também a astrologia só se refere a elementos observáveis (os mesmos da astronomia) e também faz proposições passíveis de experimentar (fulano é de Áries; Áries são geniosos). Quanto à verificação, é perfeitamente possível elencar infinitas pessoas nascidas entre 21 de março e 20 de abril que sejam geniosas, e assim confirmar a asserção. Se for enumerando corvos pretos que um cientista prova que todo corvo é preto, então um cientista-astrólogo deverá poder computar Áries geniosos para provar que todo Áries é genioso. É verdade que pode aparecer um Áries que não seja genioso – deparado com isso, o astrólogo contará com explicações para essa contradição, e aludirá ao ascendente. Essa eterna possibilidade de explicar um fato contrário às expectativas sem admitir falhas na teoria, nem alterá-la, é a diferença crucial.
O filósofo Karl Popper.
Segundo Popper, o essencial à ciência é a forma lógica de seus enunciados, que é a seguinte: afirma-se uma lei preditiva que faz uma proibição; e, uma vez que tal evento proibido aconteça, a lei é descartada. Assim, as teorias científicas são científicas porque, sendo preditivas, correm o risco de ser refutadas. Quanto mais arriscada for uma previsão, mais valiosa ela será para a ciência, caso seja corroborada e não refutada. No exemplo dos corvos, o valor científico não reside na contagem de corvos pretos, mas na clara proibição de corvos de outra cor. À aparição de um corvo branco, descarta-se a teoria de que todos sejam pretos, e a ciência avança à medida que a comunidade científica proponha teorias cada vez melhores. Já o astrólogo não faz previsões precisas; e, se algo parecer contradizer uma afirmação sua, ele logo traz explicações vagas para mantê-la de pé.
Popper se correspondeu com Einstein e debateu a física quântica de Heisenberg no calor de descobertas científicas. E suas ideias terminaram por ser aceitas entre cientistas das exatas e biológicas, que logo se esforçaram para mostrar qual tipo de fenômeno poderia tornar falsas as suas teorias, a fim de mostrar que elas são científicas.
Com as ciências humanas, o diálogo não fluiu tão bem. Um alvo de Popper foi o marxismo, que se parece mais com a astrologia do que com a astronomia porque, à falta da capacidade de fazer previsões corretas, sobra a criatividade para dar explicações sem assumir erros. Marx fez uma previsão: a de que, segundo as leis da história, o proletariado depauperado dos países industriais faria uma revolução e tomaria os meios de produção. Mas tal não aconteceu. O país mais industrial que Marx conheceu, a Inglaterra, tornou-se próspero. Já as revoluções inspiradas pelo comunismo principiaram pela agrária Rússia, e se espalharam por países rurais mundo afora. O correto seria abandonar o marxismo. Mas, assim como o astrólogo aponta ascendentes, o teórico marxista se esforça para salvar sua teoria em vez de o abandonar. E os sucessivos fracassos da União Soviética, da China anterior ao capitalismo, da Etiópia, da Coreia do Norte, de Gana e, mais recentemente, da Venezuela, nunca servem para provar que a estatização dos meios de produção produz miséria em vez de riqueza. Nenhuma previsão marxista se confirma. O trabalho do teórico se resume a usar de toda sutileza para explicar como Marx está certo mesmo estando errado.
É uma pena que o trabalho de Popper seja mais lembrado na filosofia da ciência do que na política. Em parte, porque política também é objeto de ciência; e, em parte, porque à vigência dos totalitarismos do nazismo e do comunismo, esse austríaco de origem judaica nunca cedeu a modas intelectuais e foi defensor constante da democracia.
Ele tem muito a ensinar a nós, brasileiros. As concepções da política e da ciência de Popper estão interligadas. Para ele, o homem é o único animal que não precisa da força bruta para eliminar um concorrente e progredir, pois pode fazer isso apenas com ideias. Ou seja, com a razão eliminamos as ideias do oponente, em vez da pessoa física do oponente. Violência e razão são dois motores antagônicos de ação política: ou escolhemos guiar a sociedade por uma, ou por outra. Assim, uma vez que escolhamos na política a razão, a sonhada Revolução está fora de questão – dado que é violenta. Mas, assim como podemos descartar ideias em vez de aniquilar pessoas, revoluções devem acontecer no âmbito intelectual (como a revolução copernicana), e impulsionar reformas sociais. A sociedade precisa de liberdade, estabilidade e paz para desenvolver atividades intelectuais. Só nesse ambiente as pessoas expressem os seus pensamentos. Por outro lado, tendo-a, a sociedade evolui a passos calmos. Uma vez que se imponha censura plena, esse desenvolvimento morre, e uma sociedade pode colapsar, regredir ou estagnar. Democracia e ciência, portanto, andam lado a lado, uma fazendo bem à outra.
Dado que as ciências sociais também são ciência, também têm que criar teorias preditivas passíveis de serem contraditadas. E sua principal tarefa, segundo Popper, consiste em “identificar as repercussões não desejadas de ações humanas intencionais.” Isto tanto deixa clara a sua utilidade, como a distingue de invectivas morais mais dignas de religião do que de ciência. Não é objeto da ciência social revelar-se benévola para com os pobres enquanto censura os ricos, nem proclamar karmas históricos: é conhecer o funcionamento da sociedade e ser capaz de fazer previsões precisas. Uma vez que se disponha de conhecimento, aí sim tem-se condições para traçar políticas eficazes para alcançar finalidades nobres.
Esse sistema de mútua propulsão entre sociedade democrática e ciência tem uma falha, porém: permite a defesa da violência. É o chamado paradoxo da tolerância, pois a tolerância para com a intolerância engendra a intolerância. A solução de Popper é parecida com a que adotamos com o racismo, e consiste em criminalizar a defesa da violência – a qual sempre vem acompanhada do descrédito da razão. Deve-se sempre combater tais ideias na esfera pública, mas estruturas de seita são-lhe imunes. Intolerantes “podem proibir os seus seguidores de ouvir argumentos racionais, porque isto é ilusório, e ensinar-lhes a responder a argumentos com o uso dos “punhos ou pistolas.” Aí, sim, criminaliza-se um movimento intolerante. Ele renuncia à razão, não cabe no debate de ideias e só pode pretender o poder pela via da força, da Revolução.
Infelizmente, elogiar a democracia no Brasil é muito fácil; tão fácil, que até os intolerantes amam fazê-lo. Basta dizer que “democracia” significa “povo no poder”, para em seguida dizer “o povo sou eu”, determinar quem é “povo” de verdade e indicar dentro do Estado os inimigos do povo. Isto é velho, e por isso Popper já se preocupava em não cair em armadilhas verbais. Diz ele: “Só há dois tipos de instituições governamentais: as que possibilitam a mudança de governo sem derramamento de sangue, e as que não. Mas se o governo não pode ser mudado sem derramamento de sangue, não pode, na maioria dos casos, ser removido de jeito nenhum. Não precisamos disputar palavras, nem tais pseudoproblemas, como o do significado verdadeiro ou essencial da palavra ‘democracia’. Podem escolher o nome que preferirem para os dois tipos de governo. Eu, pessoalmente, prefiro chamar o tipo de governo que pode ser removido sem violência de ‘democracia’, e o outro de ‘tirania’.”
Pois bem. No Brasil esperamos as eleições de outubro, e não há a mais remota hipótese de o governo continuar o mesmo. Não obstante, intelectuais e associações científicas insistem que vivemos em um estado de exceção, ao mesmo tempo que… esperam sair de uma ditadura e ingressar na normalidade democrática através do voto. É claro que muitos profetizaram que as eleições não ocorreriam. Mas também é claro que não irão rever suas posições, pois são pseudocientistas. Uma vez declarado que as elites brasileiras, inimigas do povo, são neoliberais, odeiam pobres e por isso golpearam a democracia, não há evento concebível para desmentir a tese. Ao contrário, todo evento novo ou é enquadrado de qualquer jeito nos moldes dessa teoria, ou é ignorado. Assim como fazem os astrólogos.
Seria um grave problema se recursos públicos fossem privatizados por uma agenda criacionista. Não bastasse a impropriedade do destino de recursos públicos, com isto também se paralisariam avanços nas ciências biológicas. Que tal seria desenvolver vacinas rejeitando a evolução, ou instalar satélites de meteorologia acreditando em terra plana? Perderíamos todos. Pois é isso que ocorre no campo da política: quanto mais as universidades públicas abrem “cursos de golpe” Brasil afora, e quanto mais partidarizadas ficam entidades como a SBPC e associações de pós-graduações, mais somos convencidos a fazer o exato oposto do que pretendem: parar de financiá-las. Embora saibamos que as universidades não são só isso, tais manifestações tornam patente que há algo muito errado com elas. É grave para o Brasil ter o lugar da ciência política ocupado por uma pseudociência divisiva e intolerante, e ainda financiá-la com dinheiro público. Tal situação obriga a repensar os atuais modelos de autonomia universitária e de financiamento público.
Bruna Frascolla é doutora em Filosofia pela UFBA, atualmente pesquisadora colaboradora da Unicamp, tradutora dos Diálogos sobre a religião natural, de David Hume (Edufba, 2016).

Estados perdem R$ 278 bi com recessão, OESP

Se o aumento da folha de pagamentos dos Estados deflagrou uma crise fiscal em parte deles, a queda na arrecadação com tributos decorrente da recessão escancarou essa situação – o que será um dos maiores desafios para os governadores que assumirem em 2019. A recessão custou R$ 278 bilhões para os Estados entre 2015 e 2017, segundo cálculos do economista Raul Velloso, especialista em contas públicas.

Raul Velloso
O economista Raul Velloso  Foto: Sandro Nascimento/Alep
O montante seria suficiente para construir 1.070 hospitais semelhantes ao que o Sírio-Libanês está erguendo em Brasília, com 144 leitos em 30 mil metros quadrados. “Os Estados contariam com R$ 278 bilhões a mais se não tivesse ocorrido a recessão. Daria para pagar o aumento com a Previdência, mas também serviria para mascarar o problema das contas públicas”, afirmou Velloso. 
Os R$ 278 bilhões equivalem à quantia extra que os Estados teriam tido de receita tributária se tivessem mantido, durante a recessão, a média de crescimento registrada na arrecadação entre 2002 e 2014, período que também inclui episódios de crise. “Muitos (dos futuros governadores) vão encontrar caixas quebrados e fila de pessoas com quantias a receber. Mesmo que haja melhora na arrecadação neste ano, será difícil, pois há um acúmulo de outros três anos de crise”, disse ele.

Estados com maior índice de industrialização estão entre os que sofreram mais com a queda das receitas, já que a crise começou nesse setor, explica o economista Fabio Klein, da Tendências Consultoria. “No Rio de Janeiro, caiu até a receita nominal (sem descontar a inflação), o que é muito raro”, afirmou.
Fortemente impactado pela retração da indústria do petróleo, o Estado fluminense deixou de arrecadar R$ 27,9 bilhões – o equivalente a 62% da receita tributária do Estado em 2017 –, de acordo com o levantamento de Velloso. “Foram dois efeitos negativos: uma folha de pagamentos que chega a 70% do orçamento anual e uma queda acentuada de receita. Isso nos levou à calamidade financeira”, afirmou o secretário da Fazenda do Estado, Luiz Cláudio Gomes. Antes de fechar com o governo federal um pacote de resgate financeiro, o Rio ficou 18 meses com algum tipo de atraso no pagamento de seus servidores.
Outro dos Estados que estão em situação fiscal delicada – após Rio, Rio Grande do Sul e Minas Gerais –, o Rio Grande do Norte deixou de arrecadar R$ 2,9 bilhões entre 2015 e 2017. O montante seria suficiente para bancar cerca de 50% dos salários e aposentadorias do Estado em 2016. Hoje, a falta de recursos é tanta que o governo ainda não pagou o décimo terceiro salário do ano passado de vários servidores.
“Gratificações a que tínhamos direito também acabaram sendo cortadas”, disse a servidora pública Patrícia Maria de Araújo, que atua como assistente de saúde no Hospital Regional de São Paulo do Potengi, a 80 quilômetros de Natal. Servidora há quase três décadas, ela afirmou que nunca viveu uma situação financeira como a atual. “Já fizemos cotas entre os servidores para que outros que moram mais distante do hospital conseguissem chegar ao trabalho.” 
A crise fiscal potiguar tem tido ainda reflexos dramáticos na vida da população. No último ano, o número de assassinatos aumentou 20,5%, chegando a 2.405 casos. Diante da falta de dinheiro, delegacias foram unificadas e concursos para novos policiais estão parados. Na Polícia Civil, o déficit do efetivo chega a 78% e o processo de abertura de concurso público se arrasta há cinco anos. Não há, por exemplo, um sistema que integre os computadores das diferentes delegacias. “Se você prende alguém, não tem como saber se essa pessoa já responde a algum inquérito”, disse o presidente do Sindicato dos Policiais Civis do Estado(Sinpol-RN), Nilton Arruda.
O secretário estadual da Tributação, André Horta, afirmou que a queda de arrecadação vem em grande da crise da Petrobrás. “Os Estados em que a empresa tem atuação forte ficaram em situação difícil.” Sobre os problemas de desmantelamento do Estado, porém, Horta afirmou que todos os serviços apresentaram melhora, inclusive o da segurança.

Mudanças de hábitos também pesam na conta

Além dos efeitos da recessão econômica, os governadores que serão eleitos neste ano terão de lidar também mudanças de hábitos do consumidor. Com a substituição das chamadas telefônicas por ligações feitas pela internet ou por troca de mensagens de texto, com aplicativos como o WhatsApp, os Estados perderam uma fonte de receita importante. Os serviços de telecomunicações, que representavam 11% do total de ICMS do País em 2010, hoje correspondem a 7,3%, de acordo com dados da consultoria Teleco.
Nem o aumento da alíquota incidente sobre esses serviços em vários Estados tem sido suficiente para reverter a tendência de queda. Em 2016, ano seguinte ao recuo na arrecadação real (considerando a inflação), entraram em vigor reajustes no ICMS do setor em 12 Estados. Com esses aumentos, a alíquota média do País válida para o setor de telecomunicação passou de 26,8% para 27,9%. No mesmo período, entretanto, a arrecadação caiu 6%.

“A base tributária dos Estados enfraqueceu. A arrecadação vinculada a serviços como telefonia móvel e vendas de CDs e DVDs vêm caindo”, disse a economista Vilma Pinto, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da FGV.
Nas Secretarias de Fazenda dos Estados, a preocupação com o tema é crescente. O assessor de política tributária da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, André Grotti, afirmou que, ao lado da recessão, a queda da arrecadação em setores de preços administrados é o maior problema de receita tributária para os governadores.
“Telecomunicações vêm encolhendo por conta de serviços como WhatsApp e combustível também está em queda”, disse. 

Do lado do combustível, a explicação é que os consumidores migraram para o álcool, mais barato que a gasolina e que tem alíquota tributária menor. / COLABOROU RICARDO ARAÚJO, ESPECIAL PARA O ESTADO

Questões de ordem: Discussão sobre aborto tem bruxas, lésbicas e ovos de tartaruga, Marcelo Coelho - FSP


Marcelo Coelho
Depois dos médicos e técnicos em saúde ouvidos no Supremo Tribunal Federal (STF) na sexta-feira (3), nesta segunda (6) foi a vez das lideranças religiosas e dos especialistas em direito nas discussões sobre aborto convocadas pela ministra Rosa Weber.

As ministras Rosa Weber (esq.) e Cármen Lúcia - Lúcio Távora/UOL
Dois representantes da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) abriram a sessão. Magro, calvo, com roupa eclesiástica preta, bem à moda antiga, dom Ricardo Hoepers adotou uma linha mais amorosa do que faria prever sua aparência.
Querem nos caracterizar como fanáticos e fundamentalistas, disse. Mas é de ciência que se trata: a vida começa na concepção. A morte de mulheres pelo aborto é lamentável, mas "minha homenagem", afirmou, "é para as crianças que morrem com suas mães".
No fim, dom Ricardo lembrou o Hino Nacional: nossa pátria é "mãe gentil", e espera ver "o sorriso" das crianças que nascem.
O segundo padre católico, José Eduardo de Oliveira e Silva, foi mais ameaçador. Criticou a própria audiência do STF. Como a maioria dos convidados era a favor do aborto, estaria sendo desrespeitado "o princípio do contraditório".
Deveria ser rejeitada de pronto a ação do PSOL, questionando a constitucionalidade das leis que proíbem o aborto. No pedido encaminhado ao STF, faltava provar "a existência de controvérsia estabelecida sobre o assunto". O STF estava usurpando o poder do Congresso. Oliveira e Silva concluiu: "Um teatro está sendo armado aqui".
Teatro ou não, os aplausos da plateia não faltaram ao longo do dia. Ninguém suscitou tanto entusiasmo quanto a pastora luterana Lusmarina Campos, que foi quem mais se aprofundou em referências à Bíblia.
A surpresa é que ela era a favor da descriminalização do aborto. O Velho e o Novo Testamento o admitem, disse a teóloga. Na verdade, o texto sagrado sofreu séculos de "apropriação machista".
Mulheres, disse a pastora, foram "demonizadas como bruxas" e acusadas de "trazer o pecado ao mundo".
Gerar vida nova, continuou Lusmarina, não é obedecer a um "mandamento da natureza": é necessário que seja uma decisão refletida.
Ela lembrou palavras de Lutero: a religião não pode amontoar "medo sobre medo", "dor sobre dor", "aflição sobre aflição", categorizando como assassina uma mulher fragilizada.
Foram inversas as teses de Janaína Paschoal, falando como professora de direito penal da USP. Nenhuma mulher é presa por aborto no Brasil, insistiu. A lei produz constrangimentos e medos, claro, mas não podemos dar a observadores estrangeiros "a ideia de que estamos na Idade Média."
Para a célebre defensora do impeachment, o Partido Socialismo e Liberdade seguia a conhecida tendência de falar em nome de "negras, mulheres pobres, lésbicas" sem tê-las de fato consultado. "Conheço muitas lésbicas", disse Janaína, "cujo sonho é ter filhos..."
Os raciocínios iam ficando bizarros. Se o aborto for legalizado, especulava Janaína, é provável que "os homens se tornem ainda mais irresponsáveis". Pois abandonarão, como nunca, as mulheres a quem engravidaram...
Para a maior parte dos religiosos, entretanto, o argumento não variava: o embrião já é um ser novo. Não é um órgão, ou uma "cutícula", uma "unha", que a mulher possa tirar do próprio corpo. 
Presente aos debates, o senador Magno Malta (PR-ES) teve outra comparação. Nossas leis de proteção ao ambiente, disse ele, defendem ovos de tartarugas marinhas. Ou de "ararinhas azuis", como disse um clérigo. Como não cuidar do "ovo humano"? 
Imagens de um embriãozinho, e de seu coração, foram projetadas. "Isso agora é um bicho? Uma coisa? Pronta para ser morta e jogada no lixo?" Era o argumento do articuladíssimo representante do estado de Sergipe, José Paulo Leão Veloso Silva.
Faltaram imagens de hemorragia fatal causada por talo de mamona no útero.
Marcelo Coelho