domingo, 17 de julho de 2016

Shakespeare em Quixeramobim, OESP


Silencioso e invisível, o espírito de William Shakespeare entrou na velha casa de Antonio Conselheiro, na praça principal de Quixeramobim, sertão do Ceará. Foi recebido por estudantes da escola profissionalizante do ensino médio da cidade. Sentados no chão da casa, num Círculo de Leitura, os alunos leram em voz alta uma tradução de Macbeth ao português. A seguir, assistiram às mais famosas adaptações da tragédia (ao cinema, por Orson Welles, e à ópera, escrita por Verdi). Inspirados pela leitura, encenaram a peça eles próprios no auditório da escola, usando trajes medievais improvisados. Depois, era hora de unir o universo shakesperiano à cultura política do sertão. Como? Contemplaram uma adaptação sertaneja de Macbeth, com roupa e costumes das brigas de clãs. Nessa versão, o rei Duncan seria o prefeito da cidade, mandando até ser assassinado. Os nobres seriam os fazendeiros, e os soldados, os capangas. As feiticeiras surgiriam dos arbustos secos e torcidos da caatinga, em vez de sair da névoa gelada das planícies da Escócia, para gritar suas profecias enganosas, envenenando os pensamentos dos homens ambiciosos.
A invocação de Shakespeare em Quixeramobim – na antiga casa onde nasceu o protagonista da guerra de Canudos, hoje transformada em centro cultural – faz parte de um projeto que leva leituras clássicas a escolas públicas há 16 anos. São os chamados Círculos de Leitura, programa do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, que leva o teatro de Shakespeare e outros clássicos da literatura para discussão por grupos de 10 a 15 alunos, em escolas públicas de 35 municípios do Ceará. O programa, que surgiu na periferia da grande São Paulo, já foi levado a escolas da Bahia, Minas Gerais e Pernambuco, provocando com essas leituras e trocas de ideias reflexões sobre os problemas eternos da humanidade.
Como aprenderam os alunos de Quixeramobim, são questões universais, capazes de aproximar lugares tão distantes. O problema da legitimidade política, que marca todas as tragédias de Shakespeare está presente em conflitos que dividem o Ceará. Acaso os alunos já haviam pensado que as guerras de clãs do Ceará são de um gênero que inspira tragédias há séculos, como as shakesperianas Macbeth, Júlio César e Rei Lear? Os mesmos conflitos permeiam as histórias da Guerra das Rosas, que eclodiu na Inglaterra no século 15, entre os clãs de York e Lancaster. Na Verona de Romeu e Julieta, bem como em outras cidades italianas da Renascença, as brigas entre clãs rivais eram tão brutais e sanguinárias que as autoridades municipais cediam poderes de governo a nobres de outras cidades – um podestá, que em geral governava por apenas seis meses, acompanhado por quatro juízes e 24 cavaleiros que ele trazia. Para preservar sua imparcialidade entre as facções rivais, o podestá era proibido de comer ou beber na companhia de cidadãos locais.

Os alunos sabem que os frágeis municípios do sertão nunca puderam se dar ao luxo de contratar um podestá. Precisavam confiar nas duas forças policiais estaduais, que, à maneira dos clãs, raramente cooperavam entre si. A Polícia Militar deve manter a ordem pública, enquanto a Polícia Civil faz investigações. E a rivalidade entre as duas forças é tão acirrada que os governadores frequentemente nomeiam sua própria versão de um podestá – um delegado da Polícia Federal vindo de fora do Estado, encarregado de manter a ordem e conseguir cooperação entre as polícias.
A violência surgia das secas sucessivas que reduziam os rebanhos. Os donos de terras mobilizavam seus bandos de peões e jagunços em disputas que envolviam rivalidades políticas, roubo de gado, conflitos sobre terras, acesso à água e defesa da honra familiar. Camponeses sem terra andavam sem rumo, pedindo comida, trabalho ou um lugar para morar. No meio dessa confusão, bandidagem e movimentos religiosos milenares emergiram como forças poderosas. Os jovens de hoje já ouviam essas histórias.
Histórico de pedagogia. Quixeramobim surgiu há cerca de 300 anos como pequeno vilarejo no cruzamento de trilhas de transporte de gado. Hoje é um município em expansão, com 77 mil habitantes. Jegues e motocicletas se cruzam nas ruas calçadas de pedras. Postos de gasolina, motéis, bares e cantinas e lojas de material de construção enchem os dois lados da estrada que dá acesso à cidade. “Não faz muito tempo, o Ceará era conhecido como terra de anões, porque o povo era desnutrido”, lembra o prefeito Cirilo Pimenta. “Agora, seis mil pessoas aqui recebem aposentadorias, 3.500 são empregados públicos e 11 mil famílias recebem da Bolsa-Família.” Praticamente todos os alunos de escolas públicas no Ceará são de famílias de baixa renda, e recebem esse auxílio.
Nos tempos antigos, Quixeramobim foi uma das poucas vilas do sertão com uma escola primária. Em 1845, só 30 escolas de ensino fundamental funcionavam no Ceará, com apenas 1.332 alunos. Um desses alunos em Quixeramobim era Antonio Vicente Mendes Maciel (1830-1897), que depois ficou famoso como o pregador itinerante Antonio Conselheiro, líder de milhares de sertanejos que criaram uma Nova Jerusalém, em Canudos, no sertão da Bahia. Com receio de uma revolta popular, o governo da nova República enviou o exército para massacrar Conselheiro e seus fiéis, em 1897, após três tentativas fracassadas de conquistar Canudos, cuja população cada vez maior de devotos causava falta de mão de obra nas fazendas da Bahia.
Essa história foi contada em Os Sertões, de Euclides da Cunha, engenheiro militar que foi repórter da guerra de Canudos para O Estado de S. Paulo, fazendo de Antonio Conselheiro um herói-mártir da literatura brasileira. Nos anos recentes, Quixeramobim reforçou seu legado histórico, celebrando a epopeia de Conselheiro num festival anual. A casa em que nasceu, em que agora os alunos sentam em roda e leem Shakespeare, foi restaurada e transformada em centro cultural. Numa rua comercial da cidade surge o esqueleto do monumento ao herói local, com as paredes decoradas com baixos relevos ilustrando cenas de Canudos. Disputas políticas locais e falta de verba deixam o memorial de Antonio Conselheiro ainda inacabado.
Até a chegada da crise político-fiscal que hoje atinge o Brasil, Quixeramobim e outras cidades do sertão gozaram de prosperidade sem precedentes, com níveis recorde de emprego, concentrado nas faixas de baixa qualificação. O salário mínimo brasileiro duplicou, em termos reais, desde 1999. Taxas de natalidade mais baixas e a ampliação do ensino público ajudaram a reduzir a desigualdade. As famílias pobres passaram a gastar mais, em smartphones, remédios, produtos de beleza, aparelhos domésticos e motocicletas, graças a uma expansão do crédito no País, que começou a encolher nos últimos meses de 2014.
“A ampliação da educação gerou quase 20% do aumento dos salários para trabalhadores de famílias pobres”, explica Naércio Menezes Filho, analista de políticas sociais. “A maior criação de empregos foi para os que recebiam até dois salários mínimos por mês. Para criar empregos de maior qualificação, precisamos melhorar a qualidade da educação, para que as empresas inovem e dependam menos do governo.” As dúvidas sobre a continuidade do fluxo de dinheiro, nos níveis atuais, do governo federal para as cidades do sertão gera um sentimento de fragilidade nas pessoas.
Violência shakesperiana. Não é à toa que, na Macbeth sertaneja imaginada pelos estudantes, o prefeito da cidadezinha acabe brutalmente assassinado. Na última década, o número de assassinatos a bala no Ceará cresceu quase quatro vezes, com dois terços das vítimas sendo homens jovens entre 15 e 29 anos. O auge de matanças fez do Ceará o segundo estado mais violento do Brasil, com 45 homicídios por 100 mil habitantes, cinco vezes maior que a taxa mundial de homicídios, estimada pela Organização Mundial de Saúde em 8,8 por 100 mil pessoas.
Cidades grandes com altas taxas de homicídio são sempre mais pobres em ensino, com dificuldades na gestão da escala de seus desafios. A área metropolitana de Juazeiro do Norte (população: 450 mil) é um empório de turismo religioso e de comércio, com alta renda per capita, mas é também um criadouro da violência e escândalos de corrupção, com baixos níveis de aprendizagem nas escolas. O exemplo mais flagrante dessa distorção é Fortaleza, com 2,6 milhões de habitantes e desigualdades extremas de renda pessoal. O desempenho de Fortaleza em educação está entre os 40% mais baixos entre os municípios brasileiros. O número de assassinatos triplicou desde 2004, o que elevou a taxa de homicídios para 79 por 100 mil, quase todos por arma de fogo, a mais alta entre as grandes cidades brasileiras.
Os padrões de violência no sertão são desiguais. Alguns municípios são tranquilos, enquanto outros sofrem com conflitos políticos e gangues. Uma reportagem de Leonêncio Nossa, no Estadão, documentou 1.133 assassinatos políticos no Brasil de 1979 a 2012, a maioria deles (638) no Nordeste, com crescimento em anos recentes e picos durante campanhas eleitorais municipais. Os municípios são as unidades básicas da política, movida a favores e coerção, especialmente em comunidades pobres que pouco produzem além de votos. As autoridades federais e estaduais mostram pouco interesse em controlar a violência nessas cidades, cujos prefeitos desempenham importantes papéis nas redes de alianças políticas. Assim, não há podestá que resolva.
O aumento dos homicídios no Ceará, e no Nordeste em geral, se choca com a tendência que, ao longo dos séculos, reduziu a violência civil nas sociedades complexas. Nos 800 anos passados, os homicídios na Europa Ocidental, por exemplo, caíram de 80 em cada 100 mil habitantes – parecido com El Salvador e na Venezuela de hoje –, para os níveis atuais, mais civilizados, de uma ou duas mortes por 100 mil.
As lições de Shakespeare sobre legitimidade política e violência, debatidas nos Círculos de Leitura, são relevantes ao futuro da educação no Ceará, que depende da melhoria da ordem pública. Embora os governos do Ceará tenham investido na educação, a violência foi negligenciada. A educação e a própria civilização precisam de estabilidade institucional para se desenvolver, ampliando os níveis de confiança e produtividade. Esse é o desafio para os próximos anos.


NORMAN GALL DIRIGE O INSTITUTO FERNAND BRAUDEL DE ECONOMIA MUNDIAL. ESTE ARTIGO É ADAPTADO DE ‘CEARÁ VAI À ESCOLA’, PUBLICADO EMBRAUDEL PAPERS, JORNAL DE PESQUISA E OPINIÃO DO INSTITUTO

Livro defende que o Brasil já iniciou transição para se tornar desenvolvido, FSP


VINICIUS MOTA
03/07/2016  02h00
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RESUMO O livro "Brazil in Transition", que acaba de ser publicado por um professor americano e três brasileiros, conclui que o país se colocou, a partir dos anos 1990, numa rota firme para se tornar desenvolvido. Leitura é fecunda, pois enfatiza de modo sistemático o papel das instituições na história, mas sujeita a caloroso debate.
Para Robert Solow, o americano premiado em 1987 com o Nobel e perfilado entre os economistas mais influentes da segunda metade do século 20, a sua disciplina está para a sociedade assim como a física para a natureza. "Existe um único modelo válido para o mundo. Ele só precisa ser aplicado", escreveu em 1985.
A chamada síntese neoclássica, definida na geração de Paul Samuelson (1915-2009) e legada à de Solow, fez repercutir por décadas nas mais reputadas academias do globo esse modelo de como o mundo funcionaria. A convergência da grande maioria das nações ao padrão de desenvolvimento das mais avançadas seria questão de tempo e de administrar a terapia certa.
A história, de um lado, e o avanço do conhecimento, do outro, enfraqueceram o elegante arcabouço neoclássico. Não é possível atribuir à evolução material das sociedades humanas no tempo um comportamento regular e previsível.
O pressuposto que levaria ao máximo rendimento na economia –o indivíduo racional e plenamente informado em busca do interesse próprio– é muito raro nas condições reais, percebeu Ronald Coase (1910-2013) em seus trabalhos sobre o funcionamento das empresas.
Coase, Nobel de 1991, concluiu que há custos implícitos no comércio que se originam fora do ambiente de produção. Esses custos, denominados "de transação" ou externalidades, sempre dificultam a atividade econômica, num gradiente que pode inviabilizá-la.
Coube a Douglass North (1920-2015), Nobel de 1993, enfatizar a crítica mortal do insight de Coase ao pressuposto neoclássico e extrapolar esse achado para os campos da história econômica e do desenvolvimento comparado. Custos de transação são manifestações da eterna luta das comunidades humanas contra a ignorância, a incerteza e a opacidade do futuro.
Porque os homens estão imersos num labirinto de relações cujo mapa não enxergam, eles erguem arquiteturas diversas na tentativa de domar os monstros da incerteza e da violência, de regularizar na medida do possível o curso dos acontecimentos e de mitigar sua brutalidade potencial. As arquiteturas são as instituições: regras explícitas e tácitas de como o jogo social funciona, bem como os meios para sua efetivação. Tais regras se manifestam na economia sobretudo como custos de transação.
liberdade As instituições, continua Douglass North, limitam por definição a liberdade de escolha dos indivíduos. Elas podem fazê-lo de modo a favorecer mais ou menos a eficiência e a prosperidade de um povo. Evoluem e mudam com o tempo, mas não necessariamente para arranjos mais produtivos.
Apenas um minoritário conjunto de nações, nos 10 mil anos de história da civilização, logrou estabelecer, e muito recentemente, uma estrutura de estímulos flexível o suficiente para permitir uma moderada, mas constante e secular, evolução da prosperidade.
Essas são as "sociedades de acesso aberto", para usar o termo de North, ou as "inclusivas", na definição de Daron Acemoglu e James Robinson. Elas comungam entre si traços como o império abstrato da lei sobre todos, o livre acesso ao empreendedorismo, a proteção do direito à propriedade, a ampla participação política e democrática, a responsabilização de autoridades, o número elevado de organizações públicas e privadas e um volume relativamente alto de arrecadação e despesa governamentais, especialmente no nível subnacional.
A grande maioria das comunidades, entretanto, definiu arranjos que produzem grande variabilidade da renda no curto prazo, mas, quando muito, semiestagnação no decurso dos séculos. São os "Estados naturais", termo que North e colegas deslocaram do léxico hobbesiano, ou as "sociedades extrativistas" de Acemoglu e Robinson.
Nesses arranjos mais comuns, a incerteza e a violência são reduzidas por meio de um pacto restrito entre elites dominantes. A coalizão ela mesma está bastante vulnerável a choques internos e externos, o que açula a instabilidade.
Coase, North e outros desbravadores do campo nos últimos 20 anos, como a estrela de Harvard Dani Rodrik, restituíram um conjunto de disciplinas, das humanidades e das ciências mais duras, à base do conhecimento econômico ortodoxo, aquele discutido nas melhores escolas e nas principais publicações acadêmicas. Por essa via, uma nova teoria do desenvolvimento está em sedimentação.
Se faltava aplicar esse instrumental, de modo sistêmico, ao problemático desenvolvimento brasileiro, a lacuna acaba de ser preenchida com "Brazil in Transition: Beliefs, Leadership, and Institutional Change" [Princeton University Press, 280 págs., US$ 39,50, e-book Kindle, R$ 90,59] (Brasil em transição: crenças, liderança e mudança institucional), parceria entre o pesquisador americano Lee Alston (Universidade Indiana) e os professores brasileiros Marcus Melo (Universidade Federal de Pernambuco), Bernardo Mueller (Universidade de Brasília) e Carlos Pereira (FGV-RJ).
O primeiro choque ao atravessar o livro é entre a sua conclusão principal, de um lado, e o "timing" de seu lançamento, do outro. Foi pensado para abranger o período de meio século entre 1964 e 2014, foi finalizado em meados de 2015 e chega ao público no que parece ser o ponto mais baixo da pior crise econômica do Brasil como o conhecemos (urbano e populoso).
O contraste não poderia ser maior em relação à mensagem otimista do livro: a de que o Brasil iniciou, em meados dos anos 1990, uma transição decisiva para tornar-se nação desenvolvida, ou uma sociedade de acesso aberto.
Não bastasse a dificuldade de enfrentar a prova adversa da renda per capita –cuja evolução isoladamente não corrobora a tese–, os autores ainda terão de se deparar com o profundo pessimismo, com a dose cavalar de incertezas políticas e com o alargamento de horizontes para a recuperação que a derrocada econômica ajudou a produzir.
Para complicar, o pressuposto da narrativa é o de que o Brasil encontrou o seu caminho para a prosperidade quando a rede de forças políticas dominante, embalada pelo sentimento popular, chacoalhada por choques diversos e conduzida por lideranças algo visionárias, aderiu a um modelo de crenças calcado no amálgama entre inclusão social e responsabilidade fiscal. Aderiu e modificou as instituições nesse sentido.
A hipótese suporta bem a passagem dos anos Fernando Henrique Cardoso para o primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Se a ideologia do PT prenunciava tentativa de arrancar uma série de estacas que, sob Collor, Itamar e FHC, aprofundaram o controle da finança pública e a abertura da economia, nenhuma reviravolta ocorreu –seja porque os petistas não ousaram tanto, seja porque a reação social não permitiu.
Já a aspiração do partido de acelerar a inclusão social e a redução da pobreza pôde ser exercida com desenvoltura, pois se harmonizava com as crenças dominantes e com os estímulos por elas favorecidos.
A segunda administração Lula e, principalmente, a aventura Dilma Rousseff, balançam a confiança do leitor na higidez do argumento de "Brazil in Transition".
Como 20 anos de hegemonia da crença na inclusão social fiscalmente responsável e de enraizamento de suas balizas institucionais puderam abrir espaço para subversão tão vasta e desafiadora do modelo, no sentido do desenvolvimentismo inflacionário e predatório que os autores afirmam ter sido superado com o fim da ditadura, em meados dos anos 1980?
Há bons argumentos de defesa no livro. Uma parte está entrincheirada na ideia de que a trajetória de transição para um padrão mais aberto de sociedade é sempre acidentada e sujeita a reversões.
RISCOS
O termo utilizado é "inclusão dissipativa" para descrever as brechas que o processo oferece a atores ainda bem posicionados em busca de proteção contra os riscos de empobrecimento e perda de poder implícitos na abertura.
Será, no entanto, que os custos de transação, para usar a linguagem de Ronald Coase, estariam superando os benefícios da inclusão no Brasil? Estaríamos mesmo diante de um caso de inclusão dissipativa? Ou, ao contrário, de dissipação inclusiva? Isso apenas com o tempo vai se esclarecer.
A resposta mais eficaz de "Brazil in Transition", porém, está na própria dieta da crise econômica e política. Se houve uma série de agravos contra os pilares do sistema de crenças e instituições dominante, houve reações igualmente duras desse arcabouço, no sentido de tentar restituir o jogo para dentro das fronteiras delimitadas.
A copiosa corrupção de colarinho branco e no empresariado conectado ao Estado produziu, como reação, o julgamento do Mensalão, o caso do Petrolão e seus filhotes. Todos vão pender como uma espada oculta sobre o mundo do poder durante décadas a fio.
A cavalgada populista e inflacionária de Dilma Rousseff, que rompeu os limites da responsabilidade fiscal e abusou da tolerância popular e social às mentiras de campanha, acabou punida com o impeachment. Que presidente vai se atrever a repetir a dose?
A inflexão desenvolvimentista já havia sido estancada e revertida, como tendência, antes mesmo da queda da presidente e por ela mesma, no seu curto segundo mandato. A correção de rota, para a retomada da abertura, acelerou-se com a equipe econômica nomeada por Michel Temer.
As conclusões do livro, como se nota, despertarão caloroso debate, mas a sua contribuição mais duradoura terá sido, sem dúvida, a de estabelecer o marco procedimental de uma nova teoria do desenvolvimento no e para o Brasil.
Dificilmente daqui em diante vai-se abordar esse tema, nas rodas mais sérias de debate e pesquisa, sem mencionar o papel crucial das crenças, das lideranças, das oportunidades (às vezes aleatoriamente oferecidas pela história, mas nem sempre aproveitadas), das expectativas frustradas ou satisfeitas sobre as ações e das regras do jogo, modeladas e remodeladas pelo entrechoque dos homens no ambiente opaco do tempo.
A história econômica e política do Brasil urbano, populoso e democrático passa a ter uma leitura e, sobretudo, uma maneira de leitura das mais fecundas.
Nota: A Folha promove debate sobre o livro "Brazil in Transition" no auditório do jornal na terça (5), às 19h. Os autores serão entrevistados por Zeina Latif, economista-chefe da XP Investimentos, Celso Rocha de Barros, colunista da Folha, Marcos Lisboa, presidente do Instituto Insper, e Sergio Fausto, superintendente executivo da Fundação Fernando Henrique Cardoso. O evento é gratuito e as inscrições devem ser feitas pelo site eventos.folha.uol.com.br.
VINICIUS MOTA, 42, é secretário de Redação da Folha

Economista Eduardo Giannetti lança 'Trópicos Utópicos', OESP


‘Trópicos Utópicos’, do economista Eduardo Giannetti, fala da utopia mobilizadora da alma brasileira, avessa ao culto do bezerro de ouro
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Antonio Gonçalves Filho,
O Estado de S.Paulo
26 Junho 2016 | 06h00
Foto: GABRIELA BILO | ESTADAO CONTEUDO

Antônio Gonçalves Filho
O professor e economista mineiro Eduardo Giannetti, 59 anos, após publicar sete livros – dois deles premiados com o Jabuti –, chega ao oitavo com uma mensagem otimista para a nação, a de que existe, sim, uma utopia mobilizadora da alma brasileira capaz de confirmar a profecia do escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942) – a do Brasil como o país do futuro. Seu livro, Trópicos Utópicos, que será lançado amanhã, 27, às 19h, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (Av. Paulista, 2.073), é bem diferente da última obra literária de Giannetti, A Ilusão da Alma (2010), estreia do autor na ficção, até porque, desta vez, trata-se de uma obra ensaística.
A Ilusão da Alma é um romance sobre a paixão pelo saber, em que um professor solitário fica ainda mais esquivo após a retirada de um tumor cerebral. Já Trópicos Utópicos é um livro para levantar os ânimos, uma reunião de 124 micro ensaios sobre os três mitos da modernidade – ciência, tecnologia e crescimento econômico – e os impasses advindos da crença desmedida neles. Para finalizar, a quarta parte do livro apresenta um esboço da utopia de Giannetti.
Na contramão dos estudos que analisaram a identidade do Brasil com base em nossas raízes – e, portanto, retrospectivos –, Giannetti propõe um exercício prospectivo. Só para lembrar: Fellini, o cineasta autor de A Doce Vida, dizia que o verdadeiro realista é o visionário. Giannetti, economista, apresenta suas credenciais, transitando no mundo do PIB com a mesma facilidade com que pisa no território da filosofia e da antropologia.
O desafio a que se propôs foi descobrir como o Brasil pode confrontar os mitos da modernidade e apresentar ao mundo dos “poderosos civilizados” um modelo alternativo de vida, uma existência de justa medida, em que a razão apolínea possa conviver pacificamente com a paixão dionisíaca dos nativos e africanos que contribuíram para a formação cultural do povo brasileiro.
Surpreende que um professor com uma biblioteca tão organizada, em que até mesmo um estranho pode localizar em cinco segundos onde está Diderot, Nietzsche ou Schopenhauer, volte-se para as culturas pré-modernas. Caberia a natureza nesse mundo erudito? A resposta está no próprio processo de elaboração do livro, escrito em Minas, onde nasceu o autor, que testemunhou em Tiradentes o renascimento de uma área verde que julgava condenada, na serra de São José, impressionante vitória contra a degradação ambiental graças à ação da comunidade local.
“A biodiversidade da nossa geografia e a sociodiversidade da nossa história” são, segundo ele, “os principais trunfos brasileiros de uma civilização em crise”. É preciso, diz Giannetti, que o Brasil abandone a ideia de não poder ser original e sempre mimetizar o modelo estrangeiro, a começar pelo culto irracional do PIB como métrica do sucesso – “O Brasil, aliás, se arruinou por causa dessa métrica”, arremata. Para isso, recomenda que “seja preservada a chama da vitalidade iorubá filtrada pela ternura portuguesa”, não dispensando a disposição tupi “para a alegria e o folguedo”. Evocação do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade? Sim, admite o professor, acrescentando à genealogia dos “canibais” modernos que mais o influenciaram os antropólogos Darcy Ribeiro, Eduardo Viveiros de Castro e Antonio Risério.
Giannetti concedeu esta entrevista justamente no dia em queA Utopia, de Thomas More, completou exatos 500 anos, livro inspirador de socialistas utópicos como Proudhon. “O que ele propõe é que nos dediquemos mais à utopia prospectiva, algo que os ingleses no Renascimento fizeram muito bem, de Francis Bacon ao próprio More”, avalia. “Nos EUA, durante a Grande Depressão, nasceu a utopia do sonho americano, mas, no Brasil, tivemos Oswald de Andrade, o mais ousados dos utopistas”, diz, referindo-se ao desdobramento do manifesto canibal do agitador paulista, que propôs deglutir a herança cultural europeia.
O legado de Oswald foi além do tropicalismo na música, no teatro e nas artes visuais, ao resgatar uma língua não catequizada e o valor das culturas ameríndias, embora tivesse pouco ou nenhum contato com ela, como ressalva o próprio Giannetti. Em todo caso, o Novo Mundo, segundo o economista, foi “palco da mais colossal e ousada experiência transcultural na história universal”. A violência do conquistador foi brutal, tanto na América ibérica como anglo-saxônica, mas o autor observa que ela é distinta, na medida em que os portugueses “já tinham um contato de oito séculos com pessoas de pele escura”. Os jesuítas, além disso, mostraram maior empatia com os indígenas que os puritanos protestantes ingleses, conclui. “Não sem razão, a despeito de toda a violência, os portugueses aderiram aos valores da cultura negra, a tal ponto que os deuses africanos sobreviveram aqui, e não nos EUA”.
Esse é outro ponto que coloca Giannetti em choque com seus contemporâneos. Assim como Wittgenstein implicou com James Frazer ao criticar sua análise dos rituais primitivos, Giannetti implica com a defesa intransigente do cientista Richard Dawkins de uma interpretação exclusivamente científica do mundo, expurgando Deus (ou deuses) dessa história. “Wittgenstein, aliás, costumava dizer que, mesmo que todas as questões científicas fossem respondidas, a ciência não responde a questões morais ou explica a morte”, lembra. “Não gosto de Dawkins, pois ele transforma a ciência na mais obtusa das religiões”, justifica. “E ele não é um caso isolado num mundo dominado pelo cientificismo raso”, acrescenta.

Giannetti revela ter “alergia” à religião como instituição, mas, entre Darwin e Deus, fica com os dois – o naturalista britânico, lembra, levava a sério questões espirituais. Quando vai para Minas, o autor parece que fica mais perto do Criador, ou, pelo menos, do que considera ser a paz celestial de que falava Valéry num texto de 1935, em que já alertava para o desaparecimento do ócio interno – e bem distante do lazer cronometrado. A degradação da sensibilidade do homem moderno é o que mais preocupa Giannetti, ao criticar a “lógica competitiva e calculista do mundo do trabalho”. Estamos, segundo ele, perdendo “alguma coisa muito valiosa da dimensão da vida, aquilo que Rousseau chamava de disposição lúdica e amável, que os povos europeus não têm mais e que intriga todos os viajantes que chegam aos trópicos”.