domingo, 6 de outubro de 2013

Demandas sociais ainda têm premissas não cumpridas

04 de outubro de 2013 | 22h 00

Wilson Tosta - O Estado de S. Paulo
Quando milhares de pessoas foram às ruas exigir transporte de massas barato e de qualidade em junho, nos protestos que derreteram a popularidade de prefeitos, governadores e da presidente Dilma Rousseff, reivindicavam um direito inscrito na Constituição há um quarto de século, mas nunca cumprido. Vinte e cinco anos depois de o texto constitucional passar aos municípios a responsabilidade pelo serviço, só 3,8% das cidades tinham Plano Municipal de Transportes, 3,7% possuíam Fundo Municipal para a área e 6,4% das prefeituras contavam com Conselho Municipal para o setor. Mais: uma em cada quatro cidades não tinha nenhuma estrutura para tratar do tema, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O cenário de baixa regulamentação dos transportes, descrito pela Pesquisa Básica de Informações Municipais 2012 do instituto, é apenas parte das promessas da Constituição até hoje não atendidas ou só parcialmente cumpridas no País. O detalhado texto estabelece como direitos sociais "a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados". Torna obrigatório para municípios com mais de 20 mil habitantes a aprovação de Plano Diretor para regular a ocupação do solo, estabelece a Seguridade Social, lança o Sistema Único de Saúde e cria um Plano Nacional de Educação – mas seus resultados são questionados.
"É zero", diz Claudio de Moura e Castro, especialista na área, ao falar da influência da Constituição no avanço da educação. "O Plano Nacional de Educação (estabelecido no texto constitucional) é um Frankenstein, que o governo federal faz para o Estado e o município implantarem. Se tivesse um plano bem feito, por pessoas competentes, poderia ser um bom exercício de contabilidade. Do tipo: se queremos ter tantos formandos na universidade, precisamos que tantos concluam o ensino médio. Mas isso não é feito. O plano são os caras do MEC desesperados para compatibilizar 2 mil demandas." Castro elogia, porém, o dispositivo constitucional que preservou a iniciativa privada no setor. "A esquerda queria que educação fosse uma concessão", diz.
Para o professor Luís Antônio Cunha, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na educação, a Constituição trouxe avanços, ao lado de "persistências arcaicas". Entre os primeiros, ele lista a afirmação do ensino como direito de todos, em qualquer idade, e subjetivo, ou seja, que não precisa ser comprovado. Como retrocesso, o professor lembra a instituição da educação religiosa opcional nas escolas públicas, drenando recursos e tempo que deveriam ser dedicados às matérias tradicionais. "É a única disciplina mencionada. Foi inscrita lá por um acordo de circunstância."
Saúde. Um dos destaques do inovador capítulo da Seguridade Social, a parte dedicada a serviços de saúde da Constituição de 88 estabeleceu, em seu artigo 198, que eles "integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único". Passadas duas décadas e meia, porém, o SUS, embora teoricamente tenha cobertura universal, ainda luta contra problemas como a falta de qualidade, a superlotação de unidades e equipamentos e hospitais precários. Segundo o IBGE, dos quase 100 mil estabelecimentos de saúde do País, pouco mais da metade é pública e mais de 90% são municipais.
O médico Hésio Cordeiro, um dos idealizadores do SUS, diz que a entrada de organizações sociais para administrar desde a atenção básica à alta complexidade "corre o risco de desvirtuar o SUS". "A gestão da saúde deveria ser inteiramente pública, e complementar com convênios com o setor privado apenas naqueles casos em que não existissem os serviços na rede pública", diz Cordeiro. / COLABOROU CLARISSA THOMÉ

Entrevista: ‘Carta foi avanço, mas intolerância persiste’

04 de outubro de 2013 | 22h 00

Mariléia Inoue, socióloga e historiadora - O Estado de S. Paulo
Para a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é preciso assegurar o respeito à diversidade religiosa.
Qual a importância da Constituição de 1988 para a questão religiosa?
A Constituição foi um avanço por ser feita em resposta aos movimentos sociais da época. Até então, o Brasil era um País essencialmente católico. A Carta avançou e previu liberdade de culto, inclusive em assegurar o direito de não se ter religião.
Tais direitos estão garantidos no cotidiano?
A lei não está maturada. A intolerância religiosa ainda existe. As pessoas ainda não conseguem lidar bem com a diversidade religiosa. Elas ainda têm a impressão de que podem interferir no foro íntimo. E ninguém pode, nem o Estado.
Como avalia o embate entre direitos homossexuais e dogmas religiosos?
Casos como o debate entre o movimento gay e o deputado Marco Feliciano demonstram o descompasso entre esses universos. O que a legislação traz é suficiente (para assegurar os direitos de todos), mas ela não se efetiva por causa de entraves sociais.
Cabe ao poder público liderar tal processo?
Temos um Estado de Direito ainda em construção. O fato de o Estado não ser totalmente laico contribui para aquele descompasso porque faz haver essa confusão entre o que é público e privado. / L.V.


Artigo: Um Guia para as mudanças do Brasil


Dilma Rousseff: 'É uma Constituição ambiciosa em direitos e deveres. E nessa ambição reside sua perenidade. É um roteiro para um Brasil mais inclusivo e desenvolvido'

04 de outubro de 2013 | 22h 00

Dilma Rousseff - Presidente da República
A História recente do Brasil pode ser contada em uma única frase: "Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição". Sintética como um poema haicai, ampla como um sonho, o artigo 1.º, parágrafo 1.º, da nossa Constituição carrega em si séculos de lutas por um país mais democrático, justo e de oportunidades para todos.
A Constituição que expressa a submissão à vontade do povo em sua primeira frase nasceu 25 anos atrás em um dos momentos mais vibrantes da nossa história. Discussões reprimidas por décadas de autoritarismo e violência do Estado afloraram em dois anos de uma Constituinte multifacetária, igual a da nossa sociedade.
Hoje é comum ouvir a crítica de que nossa Constituição é por demais detalhista, mas esse exagero é explicado pelas circunstâncias. Saímos de um momento de represamento das liberdades individuais para um momento único no qual todos os setores da setores da sociedade se empenharam em debater o que se tornaria lei na nossa Carta Magna. Graças ao trabalho de homens e mulheres dignos, gigantes como Ulysses Guimarães, a Constituição foi fruto de um pacto político de inúmeras forças. O texto final é o mais avançado em termos de direitos sociais e de liberdades individuais da nossa história.
É uma Constituição ambiciosa em direitos e deveres. E nessa justa ambição reside a sua perenidade. Assim como os meus antecessores e, tenho certeza, assim como os meus sucessores, considero a Carta de 1988 um guia que aponta a direção para onde o País deve seguir. Um roteiro para um Brasil mais inclusivo, mais democrático e mais desenvolvido.
Programas de inclusão como o Brasil Sem Miséria/Bolsa Família, de afirmação como o ProUni, de universalização como o Luz e o Água para Todos e de melhoria dos serviços de saúde como o Mais Médicos têm suas sementes no artigo 3.º dos Princípios Fundamentais: "Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: Erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".
E o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa e o Pronatec são programas que almejam cumprir o princípio constitucional de que a educação é "direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".
Os programas de inclusão social, o Sistema Único de Saúde, a liberdade de imprensa, a impessoalidade do serviço público são todas conquistas de 1988. Pela primeira vez na história o meio ambiente ganhou um capítulo específico, no qual o poder público e a coletividade receberam "o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".
Em seu histórico discurso na promulgação das Constituição, Ulysses Guimarães disse que "esperamos a Constituição como o vigia espera a aurora". Cada presidente pós-Constituição foi, a seu jeito, o guardião dessa aurora. Uma aurora de um país sedento por mais cidadania, mais democracia, mais inclusão social. Disse o doutor Ulysses no seu discurso: "A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança". Uma mudança que construímos todos nós, brasileiras e brasileiros, todos os dias. 

No papel, lei assegura direitos às minorias

No entanto, especialistas e grupos sociais avaliam que a isonomia garantida na Constituição ainda não se traduz no cotidiano

04 de outubro de 2013 | 22h 00

Lilian Venturini e Valmar Hupsel Filho - O Estado de S. Paulo
O caráter universalista da Constituição de 1988, com o princípio de que “todos são iguais perante a lei”, significou importante avanço na garantia dos direitos dos brasileiros, em especial às chamadas “minorias”. Após 25 anos, porém, especialistas e representantes de grupos sociais avaliam que a isonomia assegurada pela Carta ainda não se traduz de forma efetiva no cotidiano.
Para o professor de Direito Constitucional da USP, Rubens Decak, o diferencial da Constituição foi a forma mais abrangente com que foram observados os direitos, até mesmo aqueles que já eram previstos antes dela. “Basta ver o artigo 5.º da Constituição. Estão ali de maneira que abre a possibilidade de serem reconhecidos cada vez mais e melhor. Este é um salto diferencial tremendo”, diz.
Foi a forma como o texto foi construído, na opinião de Decak, que permitiu que a Carta reconhecesse a garantia de todos os direitos – políticos, sociais, trabalhistas – previstos no momento de sua promulgação, como a igualdade entre homens e mulheres. A Constituição, segundo ele, abriu a possibilidade para que demandas que se tornaram mais explícitas na sociedade nos anos seguintes fossem atendidas, a exemplo de garantia de direitos civis para casais do mesmo sexo. Essa reivindicação, no entanto, veio através da constitucionalidade decidida pelo Supremo Tribunal Federal, já que o Congresso nunca aprovou lei nesse sentido.
Além de assegurar garantias às mulheres, aos homossexuais e aos negros, os artigos da Carta serviram de inspiração para outras legislações. Segundo o constitucionalista Dimitri Dimoulis, professor da Direito GV, podem ser mencionados como consequência os Códigos de Defesa do Consumidor, do Idoso, da Criança e do Adolescente.
Apesar de enumerar dezenas de políticas públicas e leis elaboradas em resposta à Carta, como a Lei Maria da Penha e a revisão do Código Civil, a socióloga Guacira Oliveira pondera o longo tempo que parte delas levaram até saírem do papel. “O poder público ainda deve muito para garantir a igualdade que a Constituição nos assegurou”, afirma Guacira, que militava em movimentos feministas que apresentaram sugestões e demandas à Assembleia Constituinte na década de 80 e hoje faz parte do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea). A socióloga lembra da chamada PEC dos Trabalhadores Domésticos, que assegurou à categoria garantias iguais a de outros profissionais, mas foi aprovada somente neste ano.
Dimitri Dimoulis concorda com essa avaliação e destaca a dificuldade maior com que certos segmentos tenham seus direitos assegurados. Para o professor, a comunidade indígena está entre os grupos mais desprotegidos atualmente. Apesar de a Carta de 88 ter sido relevante por reconhecer o direito à terra e à preservação da cultura indígena, Dimoulis avalia que o texto vem encontrando dificuldades em ser colocado em prática.
“Antes da Constituição, os índios era ignorados. Houve inegáveis avanços, mas eles não se efetivaram por completo”, afirma Cléber Busatto, superintendente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). “São muito fortes os ataques de setores econômicos que têm interesse no acesso e exploração de territórios indígenas, incluindo áreas já demarcadas.”
Guacira Oliveira vê com preocupação o atual cenário dos direitos humanos. Para ela, a influência de setores econômicos e religiosos no sistema político podem interferir na elaboração de ações públicas e nas decisões dos agentes políticos. Como exemplo, lembra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) em discussão no Congresso que quer transferir para o Legislativo a autonomia para demarcação de terras indígenas e de quilombolas, hoje sob responsabilidade do governo federal.
“A gente está num momento político em que os retrocessos ameaçam mais do que antes (do período da Constituinte). A agenda da igualdade está muito ameaçada”, afirma a socióloga.