domingo, 6 de fevereiro de 2011

Você é bom, mau ou feio?

JOSÉ DE SOUZA MARTINS
Em 2005, o consulado americano em São Paulo adotou uma classificação moral dos postulantes a vistos temporários de trabalho nos EUA: bons, maus e feios. Essa informação está em documentos revelados pelo WikiLeaks e divulgados pela Folha de S. Paulo. "Bons" seriam os jovens de classe média, com bom nível de escolaridade, que vão para trabalhar em hotéis, cassinos, estações de esqui, para ganhar dinheiro e aprimorar o conhecimento da língua inglesa. Não raro, gente que aqui se recusaria a varrer a calçada da própria casa e lá se dispõe até mesmo a lavar privada.
"Maus" seriam os que maliciosamente já tem conexões nos EUA, parentes ou amigos que lá vivem ilegalmente, que para lá vão para se tornarem novos ilegais, vão para ficar. Não diz o cônsul, que vão para trabalhar em serviços que os próprios americanos recusam.
Tampouco diz o cônsul que inventou a classificação, com base no filme Três Homens em Conflito, que a ilegalidade laboral não é propriamente nociva à economia e à sociedade americanas: faz parte de um sistema de rebaixamento e barateamento da força de trabalho em certas ocupações. Sem os ilegais, muitas famílias ficariam sem a empregada doméstica barata.
"Feios" são os descuidados, pobres e desesperados. No fundo, o rejeito humano criado pelos desenraizamentos decorrentes da globalização da economia, pela extinção de empregos e profissões no país nativo, pelo desenvolvimento econômico socialmente excludente, pela morte social precoce dos que ficam sem alternativa de inserção na economia moderna. São os órfãos de um desenvolvimento econômico regulado pelo ritmo e pelas demandas dos países que polarizam a economia globalizada, que, continuamente, tornam obsoletos amplos setores da economia dos países de ritmo mais lento de desenvolvimento. Basta fazer uma excursão pela região metropolitana de São Paulo, sobretudo ao longo das ferrovias, para ver uma sucessão de ruínas de antigas indústrias, que há 60 anos fervilhavam de trabalhadores, no que era praticamente um regime de pleno emprego. Tudo vazio e em silêncio.
A classificação adotada pelo consulado é debochada e cruel. É verdade que se trata de uma classificação para uso interno, que não chega ao conhecimento de suas vítimas. Revela o parâmetro oculto de julgamento de pessoas avaliadas face a face no guichê de obtenção de vistos, que dali saem convencidas de que a rejeição assinala um defeito que é seu e não da sociedade para a qual pretendem ir.
Em duas ocasiões tive a oportunidade de presenciar o modo como, no consulado americano, é feita a triagem de quem pode ou não pode viajar para aquele país, até mesmo como simples turistas. Numa certa época, no preenchimento do formulário de pedido de visto, o interessado devia declarar cor e confissão política. Qualquer um sabia que os funcionários consulares queriam saber se o candidato à viagem era negro e/ou comunista.
Uma família de mulatos claros, de classe média, bem vestidos, pai, mãe e dois filhos adolescentes, empacou diante da pergunta da cor. Um dos adolescentes perguntou ao pai "de que cor nós somos, papai?". Como ainda não havia, no Brasil, a discriminação instituída pelas cotas raciais, aquela família não recebera o benefício do carimbo na testa para definição de sua raça. O pai vacilou, pensou um pouco e sentenciou: "Morenos! Escreve aí que você é moreno". Não sei se conseguiram o visto para viajar a um país em que quem escapa de branco é negro. Quando chegou a vez de uma jovem bem-vestida, mulata, o cônsul, negro retinto, fez-lhe várias perguntas sobre seu trabalho. Era artista, explicou ela. Rindo ostensivamente, disse-lhe ele, em inglês, que não ia dar-lhe o visto. E despachou-a.
Mas os brancos também têm a sua cota. Um pequeno grupo de moças que, pela conversa, eram amigas e trabalhavam na mesma empresa, havia feito severa economia durante um ano inteiro para comprar a passagem e visitar a Disney World. Ao saber qual era seu emprego e salário, recusou-lhes o cônsul o visto solicitado apenas para ir ver o Mickey Mouse, o Pato Donald e o Pateta. Até hoje não entendi por que a Disney World, montada na Flórida especificamente para atrair os latino-americanos que gostam de ouvir pato, rato e cachorro falarem inglês, não proclama a independência, não cria um Estado livre associado, como Porto Rico, e não estabelece o próprio sistema consular, emitindo seus próprios vistos. Sem contar que o sistema americano, pelo que se vê, é completamente falho: os terroristas envolvidos no ataque do 11 de Setembro, pela nomenclatura adotada em São Paulo, seriam classificados como "bons". Obtiveram facilmente o visto para ingressar nos Estados Unidos e fazer o que fizeram.
O problema não é exclusivamente americano. Outros países adotam cautelas mais ou menos cômicas para selecionar desejáveis e indesejáveis. Vivem uma contradição, pois são países que dependem e muito do dinheiro dos turistas, caso da Espanha. E dependem, também, do trabalho barato e ilegal de bons, maus e feios.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS, PROFESSOR EMÉRITO DA USP, É AUTOR DE A SOCIABILIDADE DO HOMEM SIMPLES (CONTEXTO)

Brasil aceita os desafios

Alberto Tamer - O Estado de S.Paulo
Ventos favoráveis na economia americana sinalizam que tempos melhores estão para vir. O desemprego caiu para 9%, o consumo interno aumenta um pouco, o risco de deflação diminui. Alguns já admitem que o PIB dos Estados Unidos pode crescer até 4%, se não mais, se o cenário atual se mantiver no primeiro semestre. Será bom para a economia mundial pois os EUA representam quase 25% do PIB global. Se não crescerem, o mundo não cresce. Continuará sendo salvo pelos emergentes, que já dão sinais de terem chegado ao limite. China e Índia, ainda crescem, mas o Brasil se vê forçado a desacelerar. Ou seja, os países desenvolvidos, que representam quase 59% do PIB mundial, precisam voltar a crescer de forma sustentável para que a recessão seja definitivamente superada. Não se pode contar ainda este ano com a União Europeia. A Alemanha voltou a crescer, mas se sustenta no forte aumento das exportações para seus parceiros regionais.
Bernanke estava certo? Pelo menos até agora, sim. Diante dos últimos indicadores americanos, volta-se a criticar a política monetária expansionista do presidente do Fed, Ben Bernanke. Ele desvaloriza o dólar, pressiona os preços das commodities, estimula as exportações, mas prejudica os outros. Bernanke defendeu sua política no Congresso de críticas dos republicanos e de outros países, como o Brasil. A economia está se reanimando, disse ele, mas vai continuar precisando de estímulos. Juro em 0% e injeção de dólares, direta ou indireta, mesmo porque a inflação está controlada. A única pressão é o petróleo. O desemprego recuou, mas é o maior desde 1930 e o mercado imobiliário continua retraído. Mesmo com mais exportações, a balança comercial tem um déficit de US$ 643 bilhões e a contas correntes de US$ 460 bilhões.
De novo as commodities. Mesmo neste cenário mais ameno nos EUA, persiste o clamor contra o aumento dos preços das commodities. Só em janeiro mais 3,4%. A França e a Alemanha querem que os países do G-20 aprovem o controle de cotações e sugerem a formação de estoques internacionais de alimentos. Só que esses estoques já existem. Mais ainda, apesar dos problemas climáticos, as safras mundiais devem superar a do ano passado. Podem ser recorde. Não é apenas o aumento do consumo que pressiona os preços, mas as operações financeiras no mercado de commodities. Há outro fato que poucos comentam. É a alta do petróleo, com o barril beirando US$ 100.
Brasil, nada a reclamar. Aqui, não temos nada a temer ou reclamar. O Brasil produz não só commodities agrícolas e minerais de ferro e alumínio, mas petróleo também. É o único que tem possibilidade quase ilimitada para crescer. Em poucos anos estará extraindo 2 milhões de b/d das reservas que devem passar de 50 bilhões de barris.
Outro fato marcante, ao contrário dos EUA, Europa e Japão, o Brasil tem um mercado interno vigoroso que a absorve grande parte da produção nacional. Não depende tanto dos outros para continuar crescendo.
O desafio de Bernanke. Em seu depoimento no Congresso, afirmou que é injusto atribuir o excesso de demanda ao mercados emergentes. "Esses países estão tirando milhões de pessoas da pobreza que passaram a se alimentar melhor." Esse recado não é para o Brasil que já está fazendo tudo isso sem tentar conter o consumo de alimentos que produz. Enfrenta, isto sim, a agressiva política da exportação chinesa, com a qual não sabe ainda como lidar. Para o Brasil, o importante é que EUA e China, seus maiores parceiros comerciais, continuem crescendo e importando.
A equipe econômica e do BC podem enfrentar e resolver o resto. Sem otimismo excarcerado,- a coluna não é otimista é realista e se baseia nos fundamento da economia - estamos indo bem, senhores, muito bem neste desafio. E há espaço para melhorar ainda mais. Muito mesmo. 

Infraestrutura é desafio para garantir competitividade

Renée Pereira - O Estado de S.Paulo
Com apenas 7% da área dedicada à lavoura, o Brasil é o produtor com maior potencial de suprir a demanda mundial por alimentos nas próximas décadas. Para isso, entretanto, alguns desafios precisam ser superados. Além da questão tributária e cambial, as deficiências na infraestrutura são apontadas como um dos fatores que neutralizam as vantagens naturais do País.
Quase 60% da produção agrícola é transportada, das fazendas até os portos, por caminhões que enfrentam milhares de quilômetros (km) de estradas esburacadas e, muitas vezes, sem asfalto. Hoje apenas 10% da rede rodoviária do País é asfaltada. A ferrovia tem apenas 28 mil de extensão e não chega até grandes polos produtores, como é o caso do Mato Grosso. Nos portos, o sistema é caro e deficiente. A carga fica horas - e até dias - aguardando armazenada nos caminhões para serem embarcadas nos navios. A falta de armazéns é outra carência do País. Calcula-se que o déficit de armazenagem de grãos seja de 43 milhões de toneladas.
"Temos de melhorar os custos Brasil para investir mais e exportar mais", avalia o presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB), Cesário Ramalho da Silva. Segundo ele, não faltam problemas para reduzir a competitividade do agronegócio. "Temos 100 números de dificuldades, como burocracia, contestações ideológicas, insegurança jurídica, questões ambientais, etc."
A grande preocupação é que as novas fronteiras agrícolas ainda não têm infraestrutura adequada para escoar a produção, a exemplo do Piauí e do Oeste da Bahia. O governo conta com três ferrovias - a Norte Sul, Transnordestina e Oeste Leste - para resolver os problemas de falta de transporte.