quinta-feira, 10 de abril de 2014

Patrimônio ferroviário demanda diálogo entre arquitetura e urbanismo (pauta)

Especiais

10/04/2014
Por Noêmia Lopes
Agência FAPESP – Operante no Brasil entre 1856 e 1946, a companhia ferroviária São Paulo Railway (SPR), de origem britânica, foi a primeira a vencer a Serra do Mar e ligar o interior ao litoral – acesso que manteve com exclusividade durante 82 anos.
O feito contribuiu de maneira significativa para a modificação do cenário socioeconômico no Estado de São Paulo, uma vez que viabilizou o escoamento da produção cafeeira até o porto e, de lá, para o mercado consumidor externo.
Ao longo de uma via de 139 quilômetros de extensão, de Jundiaí a Santos, a SPR deixou um extenso acervo arquitetônico, com vilas, oficinas, estações, armazéns, pátios, giradores e cabines de sinalização. “Boa parte desse patrimônio está ameaçada pela verticalização, pela especulação imobiliária, pelo desconhecimento de seu valor enquanto bem industrial e mesmo por ações de recuperação equivocadas”, disse o arquiteto Antonio Soukef Junior à Agência FAPESP.
Soukef Junior é autor do recém-lançado livro A Preservação dos Edifícios da São Paulo Railway em Santos e Jundiaí, publicado com apoio da FAPESP e resultado de seu projeto de pós-doutorado, defendido na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), sob a orientação deBeatriz Mugayar Kühl.
Ao estudar o papel e as transformações da SPR no século 20 e caracterizar os complexos arquitetônicos existentes nos extremos e ao longo da ferrovia, Soukef Junior buscou ampliar o inventário de estruturas já conhecidas e contribuir com a formulação de políticas de preservação que levem em conta não apenas as antigas estações de passageiros, mas toda a paisagem industrial que as circunda.
“Parte desse patrimônio está tombada, mas essa proteção não é, por si só, suficiente. É preciso haver diálogo entre as áreas de arquitetura, urbanismo e restauro, utilizando mecanismos como planos diretores, com a participação das equipes de planejamento dos municípios e na busca por projetos integrados”, disse Soukef Junior.
Ao longo dos capítulos, o pesquisador aponta que a própria ação de tombar não raro resultou na retirada de equipamentos e maquinários, inviabilizando reconstituições relacionadas a processos e à organização do trabalho. Desconsiderou-se também o entorno e a relação das construções com os bairros e as cidades.
Ainda que muitos dos elementos analisados estejam modificados de forma irreversível e outros tenham sido alvo de mau uso, vandalismo ou invasões, Soukef Junior apontou que é possível preservar, ao menos em certos trechos, a paisagem industrial legada pela SPR. A condição para tanto é que suas particularidades se tornem mais conhecidas e estudadas.
“É preciso também rever a forma como os projetos arquitetônicos lidam com as preexistências, pois o que se vê, de modo geral, são intervenções que desrespeitam os estratos anteriores, por meio de reconstituições falsas e a inserção de novas estruturas em uma escala que anula as características essenciais dos bens, impedindo sua preservação adequada”, descreveu Soukef Junior nas considerações finais do livro.
Um exemplo recente de mudança de escala ocorreu no conjunto ferroviário de Santos. “Apesar de tombado pelo Condephaat em 2010, houve muita pressão para que o antigo armazém de importação, datado de mais de 120 anos e em perfeito estado de conservação, fosse parcialmente demolido, para que no local fossem construídas torres administrativas de uma grande empresa”, contou.
Além da perda de parcela do galpão, ocorrida em 2011, o pesquisador apontou que a paisagem do local mudou de modo definitivo e abriu precedente para a verticalização de áreas próximas. “O problema não é a transformação”, disse ele. “A inserção de novos elementos pode ser bem-vinda, desde que seja feita com respeito aos estratos preexistentes.”
Há também modificações empreendidas pela própria evolução industrial e tecnológica – por exemplo, as resultantes da substituição da tração a vapor pela eletricidade e, posteriormente, dessa pelo diesel.
“Esse tipo de mudança acarreta alterações operacionais na disposição dos pátios e na utilização dos espaços que nem sempre podem seguir uma unidade arquitetônica desejável. Ainda assim, é possível orientar planos de preservação, contanto que se considerem os materiais e maquinários usados, a influência desses equipamentos no entorno – em vilas, igrejas, áreas comunitárias, etc. – e as transformações sociais e econômicas também implicadas”, afirmou Soukef Junior.
Segundo o pesquisador, apesar da existência de entraves e pressões externas, o Condephaat tem procurado soluções que vão além do tombamento das estações – observando também o contexto no qual elas estão inseridas –, seguindo a linha já adotada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Cabe ao Iphan a guarda de fato de todo o patrimônio ferroviário do país – mais de 50 mil bens, de acordo com Soukef Junior, de pátios a material de arquivo.
A SPR, de Jundiaí a Santos
Durante os estudos de pós-doutorado, Soukef Junior visitou e fotografou as edificações ferroviárias da SPR e seus entornos. A essas imagens ele somou materiais gráficos e documentais levantados em acervos de Santos, São Paulo e Jundiaí, compondo um acervo de fotos, mapas, relatórios, livros e revistas.
Em Jundiaí, outrora um entroncamento que deu à cidade vocação operária, o pesquisador constatou que o conjunto ferroviário mantém muito de sua configuração preservada. De modo geral, os imóveis existentes, embora desgastados, estão íntegros e com relações espaciais preservadas.
Isso se deve ao fato de as construções estarem dentro da própria área de pátio, onde atualmente circulam as composições da MRS-Logística e da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). O mesmo ocorre em direção à capital, em complexos como os de Caieiras e Franco da Rocha.
“Porém, a maior parte desse patrimônio encontra-se sem função e é constantemente ameaçada por atos de vandalismo ou invasões”, alertou Soukef Junior.
Outro local visitado e estudado foi a região da Lapa, em São Paulo, onde no passado a presença dos trilhos atraiu oficinas de manutenção e fábricas. “Hoje, trata-se de uma paisagem bastante modificada e constantemente ameaçada pela verticalização e pela especulação imobiliária”, disse.
Seguindo em direção ao litoral, Paranapiacaba, distrito de Santo André, ainda guarda importantes traços da arquitetura inglesa. Para vencer o terreno íngreme e adverso imposto pela Serra do Mar – quase 800 metros verticais em menos de 10 quilômetros de trilhos – foi necessário instalar maquinários especiais e criar habitações permanentes para os funcionários que trabalhavam na manutenção.
“Praticamente toda a produção cafeeira destinada à exportação passava por lá, o que exigia prontidão 24 horas para enfrentar eventuais problemas técnicos ou acidentes como desmoronamentos”, afirmou Soukef Junior.
De acordo com o pesquisador, Paranapiacaba é um dos pontos da SPR que até hoje revela em detalhes o padrão arquitetônico imprimido pela companhia ao longo de seus 90 anos de operação. “Documentos sobre construções e reformas revelam um grande rigor em relação aos materiais e procedimentos utilizados, tudo para preservar a estética trazida e implantada originalmente pelos ingleses.”
Por fim, em Santos, onde o complexo ferroviário ocupou uma extensa área próxima ao porto, hoje inserida no centro histórico, as tentativas de revitalização e proteção não foram suficientes, segundo Soukef Junior, para barrar a deterioração ou mesmo o desmanche dos imóveis. “Infelizmente, antes mesmo de que fossem feitas avaliações adequadas sobre a importância histórica e cultural do patrimônio ali reunido.”
Pesquisas anteriores
Soukef Junior contou que a SPR já foi tema de estudos variados, mas que, em geral, a ênfase das investigações recai sobre a importância da companhia no século 19.
Ao traçar um panorama que se estende ao longo do século 20 e chega aos dias de hoje – em particular no capítulo A trajetória da São Paulo Railway –, o pesquisador discorre sobre temas como a remodelação ocorrida na virada entre os séculos 19 e 20 (quando a atual estação da Luz, em São Paulo, foi construída e inaugurada); a crise dos transportes na década de 1920, ocasionada por um acúmulo de materiais estocados em armazéns; e o relacionamento da SPR com o setor governamental e com outras empresas – a Companhia Docas, no caso de Santos, e a Companhia Paulista, no caso de Jundiaí.
“A SPR foi uma empresa muito criticada. Havia muita disputa com empresários paulistas de perfil mais nacionalista, que queriam fretes menores para o envio de mercadorias até o porto e pediam a encampação da SPR pelo governo.”
Antes do pós-doutorado centrado na São Paulo Railway, Soukef Junior analisou, nos estudos de mestrado, o complexo ferroviário de Mairinque, uma antiga vila ferroviária da companhia Estrada de Ferro Sorocabana. Fundada em 1892 e então chamada Mayrink, tinha como objetivo ser o início de uma linha de acesso a Santos, alternativa à SPR – ligação só efetivada em 1938.
Já a tese de doutorado do pesquisador abordou a região de Bauru, importante entroncamento ferroviário no passado, com a atuação da Companhia Paulista, da Estrada de Ferro Sorocabana e da Estrada de Ferro Noroeste.
“Todos esses estudos partiram de certa forma da ironia que existe entre as ferrovias serem muitas vezes vistas como entraves ao desenvolvimento das cidades que elas mesmas ajudaram a fundar e ampliar”, resumiu o pesquisador.
Soukef Junior ainda é autor de Estação Júlio PrestesCem Anos LuzSorocabana: Uma Saga Ferroviária,Leopoldina Railway Company: 150 anos de Ferrovia no Brasil, entre outros.
A Preservação dos Edifícios da São Paulo Railway em Santos e Jundiaí
Autor: Antonio Soukef Junior
Editora: Annablume
Lançamento: março de 2014
Preço: R$ 31,50
Páginas: 150
Mais informações: www.annablume.com.br.

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