O colunista escreve às quartas
Infelizmente, a atitude intelectual de Rodrigo Constantino é desonesta, procedendo por reduções e simplificações grosseiras
O mundo já é muito complexo e turvo para os que se propõem a compreendê-lo honestamente. Por compreensão honesta designo fundamentalmente a atitude intelectual que tem como princípio examinar quaisquer argumentos sem o preconceito ideológico que costuma obscurecer a construção coletiva do diagnóstico da realidade. Todos têm, de modo consciente ou não, posições ideológicas prévias, mas essas devem ser sempre submetidas ao teste da realidade; são pontos de partida, não pontos de chegada. Infelizmente, a atitude intelectual de Rodrigo Constantino — como demonstrou Jean Wyllys, com a clareza devida, em artigo recente — é desonesta, procedendo por reduções, simplificações grosseiras, maniqueísmos sistemáticos, diversos procedimentos que agem no sentido de obscurecer o trabalho público e coletivo da compreensão da realidade (sem falar no abuso da dimensão imaginária das polêmicas — recorrendo sempre a argumentos ad hominem e ridicularizando pessoas famosas, a fim de produzir uma espécie de sensacionalismo intelectual).
Ao contrário, vou propor aqui uma leitura honesta do que considero, até onde li, seus argumentos principais na defesa da pertinência da expressão “esquerda caviar”, com tudo o que ela carrega de desqualificação. Vou fazê-lo porque julgo que por meio dessa expressão pode-se compreender melhor quais os sentidos e as possibilidades efetivas da esquerda no mundo atual.
O argumento principal de Constantino é o que a expressão sugere de cara: haveria uma contradição entre ser de esquerda e usufruir das benesses propiciadas pelo capitalismo às classes sociais mais altas. Admitida essa contradição, segue-se logicamente que os ricos autodeclarados de esquerda são hipócritas, apenas adotando o semblant de uma retórica socialmente valorizada — e que a sua diferença para os ricos de direita está tão somente em que esses últimos não capitulam a coerção social da hipocrisia.
Comecemos então por nos perguntar: o que é ser de esquerda? Sem dúvida, ser de esquerda significa primordialmente considerar a redução das desigualdades econômicas e sociais um objetivo fundamental. Isso, entretanto, não implica necessariamente adotar uma perspectiva anticapitalista utópica, seja nos moldes da experiência efetiva da esquerda no século XX ou de algum modelo a se inventar. Concordo com T. J. Clark, para quem, em vez disso, é preciso que a esquerda contemporânea faça profundamente a experiência da sua derrota, das catástrofes intoleráveis por ela produzidas, e se esvazie de sua dimensão utópica, engajando-se antes numa política moderada, operando no interior do capitalismo, “por pequenos passos”, “propostas concretas” agindo no sentido de produzir igualdade em diversos âmbitos.
Provavelmente a experiência de esquerda mais bem-sucedida no mundo hoje é a dos países nórdicos, capazes de dirigir o capitalismo por meio de um Estado pequeno, porém eficaz no sentido de promover equilíbrio social, conciliando assim os princípios do mercado e da seguridade social, da individualidade e do coletivo, em suma, da liberdade e da igualdade (como mostrou ampla matéria da revista “The Economist”, recentemente). Ser de esquerda não implica portanto um anticapitalismo sistêmico e revolucionário — concordo ainda com T. J. Clark quando escreve que, nas condições atuais, a esquerda moderada é que é revolucionária —, cuja prova pessoal de coerência seria uma espécie de franciscanismo, de resto inútil. Mas sim engajar-se, seja por qual via for, na luta pela promoção da igualdade de direitos (conforme fazem, cada um a seu modo, as pessoas desqualificadas por Constantino como símbolos da “esquerda caviar”: Wagner Moura, Regina Casé e Gregorio Duvivier, entre outros).
É oportuno desconstruir outra suposta contradição. Segundo Constantino, os membros da “esquerda caviar” costumam criticar instituições, notadamente a polícia, mas recorrer a elas quando necessário. Deveria ser escusado lembrar que a crítica é um princípio democrático de aperfeiçoamento, e não um instrumento de negação absoluta. Quando pessoas de esquerda criticam a polícia, não estão a defender sua extinção, ingênua ou irresponsavelmente; antes repudiam a sua ação hierarquizante, logo antidemocrática.
O que nos leva a um último aspecto da expressão. Ao negar a possibilidade de cidadãos de classe média e alta serem de esquerda, é nada menos que a mediação social da solidariedade o que se está anulando. Parece ser impossível para Constantino assimilar a ideia de que há pessoas dispostas a defender causas igualitárias mesmo em detrimento de suas vantagens pessoais. Mas, pasme, é precisamente isso o que, como princípio, define a esquerda.
Nenhum comentário:
Postar um comentário