sábado, 9 de novembro de 2019

Ativistas criam fundo para compra de apartamento e locação por preços populares em SP, FSP

Imóvel reformado pelo Fica, no centro de SP, é alugado por R$ 633, a metade do valor cobrado por imobiliárias da região

SÃO PAULO
A problemática situação habitacional brasileira é esquadrinhada por vários grupos acadêmicos e instituições que formulam relatórios, teses e muitos dados estatísticos.
Por exemplo, estudos da Fundação João Pinheiro, de Minas Gerais, mostram que o número de imóveis vazios no país (7,9 milhões) é maior que o déficit habitacional (6,3 milhões de residências no Brasil, sendo 640 mil na região metropolitana de São Paulo e 358 mil no município) em dados de 2015.
Há muitas informações sobre a situação atual e, a partir delas, são elaboradas propostas consistentes. Mas o que acontece quando um grupo de ativistas e pesquisadores sobre moradia social passa a ambicionar a compra de imóveis e a prática de aluguéis em condições justas para famílias de baixa renda?
[ x ]
Com este intuito foi criado, em 2015, o Fica: Fundo Imobiliário Comunitário para Aluguel. A instituição sem fins lucrativos adquire apartamentos e os aluga a preços distintos de valores do mercado. Os primeiros quatro anos de existência do Fica foram dedicados a formulação de um modelo organizacional ainda inédito no Brasil.
Movimento 'Fica', em SP, compra e reforma apartamento no centro de SP; após obra, imóvel é alugado para famílias de baixa renda
Movimento Fica compra e reforma apartamento no centro de SP; após obra, imóvel é alugado para famílias de baixa renda - Divulgação
Primeiro foi criada a associação, com CNPJ e conta bancária para captação de recursos. Os 65 associados elegem cinco diretores que se responsabilizam legalmente pela associação durante o mandato de três anos.
Em julho de 2017, o Fica adquiriu seu primeiro apartamento por R$ 162 mil. É uma quitinete de 47 metros quadrados no número 69 da praça Júlio Mesquita, centro de São Paulo. Como tantos imóveis da região, a residência esteve antes desocupada por 10 anos devido a disputas familiares na justiça. A moradia foi reformada, refazendo instalações elétricas e hidráulicas, restaurando esquadrias, piso e nova pintura.
Tendo essa primeira propriedade, os membros da associação passaram a estudar e debater internamente qual é o valor e as condições justas para aluguel.
Diferentemente das flutuações da lei da oferta e procura, o Fica buscou o “preço de custo”. Renato Cymbalista, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da USP, e diretor do Fica, esclarece que o movimento não faz caridade: “nós não temos lucro neste aluguel, mas também não conseguimos subsidiar.”
No valor da locação estão incluídos a conta de condomínio, o seguro do imóvel, uma taxa para futuras manutenções devido ao uso cotidiano do apartamento, além de uma contribuição do inquilino para a operação do Fica e na compra de outros imóveis. O resultado mensal é um aluguel de R$ 633. Outros apartamentos no mesmo prédio são alugados a R$ 1.200.
O contrato entre o proprietário (o Fica) e o morador segue o padrão da lei de inquilinato. A única diferença é que a associação não pede fiador —uma barreira para muitas famílias de baixa renda.
A jornalista Bianca Antunes, coordenadora geral do fundo, destaca que “o Fica consegue neutralizar a especulação imobiliária naquele apartamento.” E prossegue avaliando como uma iniciativa desta pode ter efeitos mais amplos para a região central de São Paulo: “Aquele imóvel não fica sujeito a gentrificação, que tem como mais trágica decorrência a expulsão de moradores em áreas que alugueis se valorizam.”
Por tanto, buscar uma família com raízes já estabelecidas no centro foi uma questão importante na seleção do morador desse apartamento inicial do Fica.
O perfil familiar dos inquilinos foi debatido internamente. Avaliou-se o número ideal de membros tendo a dimensão do espaço da quitinete como parâmetro. Também se firmou a necessidade de mais de uma geração —pais e filhos— entre os moradores. Por fim, a estabilidade empregatícia e financeira era importante para a capacidade de honrar os compromissos do aluguel.
Família em apartamento reformado no centro de SP pelo movimento 'Fica'; valor do aluguel é de R$ 633
Família em apartamento reformado no centro de SP pelo movimento 'Fica'; valor do aluguel é de R$ 633 - Divulgação
O fundo pediu indicação de eventuais moradores para entidades como o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e as Irmãs Missionárias Scalabrinianas, cuja missão tem sede no bairro do Pari. Foram enviados formulários para saber a composição familiar, a renda e o endereço de possíveis interessados.
No final, seis famílias foram selecionadas para entrevistas conduzidas por uma psicóloga e uma assistente social. Nas seis conversas, a interlocução se deu com a mulher da família. Ao fim, um fator decisivo foi o grau de melhoria da condição de vida familiar que o novo apartamento significaria.
Composta por casal e três filhos, a família selecionada morava antes em um ambiente pequeno sem abertura de luz e ventilação naturais. A redução dos problemas de respiração de uma das crianças foi um efeito elementar da mudança para a nova moradia em julho deste ano.
Tal experiência-piloto está sendo exposta na Bienal de Arquitetura de Chicago, aberta desde setembro até 5 de janeiro do próximo ano. A instalação elaborada pelo Fica parte da pergunta: “O que é um proprietário ético?” Tendo a mesma pergunta como título, o respectivo livro está sendo lançado no dia 6 de novembro, na sede do IAB-SP.
Além de explicar o modelo desenvolvido, revelam-se outras instituições pelo mundo que detêm propriedades e as destinam segundo princípios alternativos aos valores e oscilações de mercado. Se o Fica é uma associação singular no Brasil, encontram-se iniciativas com princípios semelhantes na Argentina, na Europa e nos Estados Unidos —notoriamente, o Cooper Square Community Land Trust que detém 21 edifícios em áreas valorizadas de Nova York para o aluguel social de 324 apartamentos.
Simultaneamente laboratório de pesquisa habitacional e fundo imobiliário que aproxima reflexão acadêmica das condições reais, o Fica é descrito pela arquiteta Marina Grinover, diretora da associação, como “uma plataforma de debate não para imposições, mas para indagações acerca de mecanismos que tornem mais justo o uso da cidade.”
Cymbalista complementa que a postura da instituição “não é de demandar do Estado. Mas sim oferecer um modelo que pode ser utilizado governamentalmente caso as autoridades queiram.” Portanto, o Fica não descarta parcerias com o poder público.
Um dos próximos passos é o aumento de escala do Fica, isto é, do número de propriedades e de inquilinos beneficiados com aluguéis não abusivos. Atualmente com 107 apoiadores mensais, o fundo tem R$ 135 mil em caixa para a compra do segundo apartamento.

Por que o mantra 'faça o que você ama e você nunca terá que trabalhar um dia na vida' é uma armadilha, FSP

Por que o mantra 'faça o que você ama e você nunca terá que trabalhar um dia na vida' é uma armadilha

Encontrar um propósito de vida no emprego é um mantra contemporâneo. Maria de Fátima Superti Dalla Colletta, de 57 anos, tinha encontrado o seu.
Formada em Enfermagem em 2007, foi trabalhar num lar de idosos em Torrinha (SP), sua cidade natal. Encantou-se de cara com o trabalho de cuidadora. Mas, pouco a pouco, viu-se tragada por funções paralelas.
Com o salário que recebia na época, cerca de R$ 1.000, equipou por conta própria a sala de enfermagem. Montou prontuário para cada interno, acertou o quadro de funcionários, fazia limpeza e comida quando alguma das cozinheiras faltava.
Getty Images/BBC News Brasil
SAO PAULO, SP, BRASIL, 28.01.18 1h O que vai bombar no Carnaval 2018 nas ruas. Denny Azevedo, 34, e Ricardo Don, 31, artistas, no Academicos do Baixo Augusta. (Foto: Marcus Leoni / Folhapress, COTIDIANO)
"Não me sentia explorada, fazia aquilo por amor. Os diretores estavam numa zona de conforto, pois eu resolvia tudo, desde uma torneira espanada, um chuveiro queimado, envolvia amigos e minha própria família no atendimento aos idosos."
Em 2018, Maria de Fátima disse: "Chega." "Fui me esgotando por ficar cada vez mais lá dentro, muitas vezes realizando tarefas que não eram as minhas."
Esse quadro se repete em outras profissões que, aos olhos da sociedade, envolvem cuidado, afeto e paixão pelo ofício.
"Em cozinha, a gente lava coifa, chão, fogão. Cozinha nenhuma –a não ser de hotel, talvez– tem funcionário de limpeza. Então a gente chega às 7h e sai às 2h do dia seguinte, sem ganhar nada por isso, apenas a experiência de ter trabalhado muito."
Formada em gastronomia e em engenharia de alimentos, a confeiteira e consultora Joyce Galvão conta que até hoje vê esse tipo de exploração. "Na Espanha, por exemplo, você pode até trabalhar em um restaurante [premiado com estrelas] Michelin, mas é tudo de graça. Eles te dão comida e moradia. Essa é a troca."
Para Joyce, "em áreas criativas, em que a gente precisa ter visibilidade, trabalhar de graça ou apenas para divulgar o próprio trabalho é constante". Existe uma zona cinzenta na maioria dos trabalhos que fogem ao padrão escritório/carteira assinada, em que tudo é visto como investimento de longo prazo.
O AMOR CEGA
Não se sabe direito como e quando a moda começou –o aforismo "faça o que você ama e você nunca terá que trabalhar um dia sequer na vida", que já foi atribuído a Confúcio, segue vivo no discurso de aceleradores de carreira, empresários e milionários tecnocratas. "FOQVA" (sigla para "faça o que você ama") e suas variações são fórmulas repetidas à exaustão em livros de autoajuda, palestras motivacionais e entre coaches de carreira.
Um de seus profetas foi Steve Jobs (1955-2011), o CEO da Apple que, em 2005, falou nestes termos a um grupo de formandos da Universidade Stanford: "Vocês precisam encontrar o que amam. Isso é importante tanto para a vida profissional quanto para a vida amorosa. (...) E a única forma de fazer um ótimo trabalho é amar o que você faz".
Contudo, a ênfase cultural em fazer o que se gosta, em carreiras de "encanto", facilita a legitimação de práticas abusivas, injustas ou degradantes no mercado de trabalho. Esta é a tese principal de um estudo desenvolvido por pesquisadores da Universidade Duke, na Carolina do Norte (EUA), em parceria com professores de psicologia social da Universidade Estadual de Oklahoma (EUA).
Publicado em abril de 2019 no periódico científico Journal of Personality and Social Psychology, o artigo "Understanding contemporary forms of exploitation: attributions of passion serve to legitimize the poor treatment of workers" (Entendendo formas contemporâneas de exploração: ênfase na paixão serve para legitimar condições precárias de trabalho, em tradução livre) reúne oito experimentos e uma meta-análise (técnica estatística que combina o resultado de dois ou mais estudos).
Segundo seus autores, de forma inédita, o artigo pretende mostrar que, como na vida amorosa, estar encantado por algo –no caso, o trabalho– pode "cegar" as pessoas e levá-las a executar tarefas que não foram contratadas para fazer.
O fato de os próprios gestores considerarem legítima a atribuição de tarefas extras, a partir da presunção de que os funcionários gostam do que fazem, leva, em muitos casos, a piores condições de trabalho.
EXPLORAÇÃO LEGITIMADA
O fenômeno descrito no estudo é chamado de "legitimação da exploração da paixão". Embora a paixão pelo emprego seja positiva, ela concede licença para práticas nocivas de gestão e exploração da mão de obra.
Para os autores, a exploração é definida "a partir do momento em que a gerência, que representa seus próprios objetivos e interesses, bem como os objetivos dos proprietários, exige que alguns funcionários trabalhem excessivamente ou se envolvam em tarefas degradantes sem pagamento adicional ou recompensas tangíveis".
Acervo pessoal/BBC News Brasil
SAO PAULO, SP, BRASIL, 28.01.18 1h O que vai bombar no Carnaval 2018 nas ruas. Denny Azevedo, 34, e Ricardo Don, 31, artistas, no Academicos do Baixo Augusta. (Foto: Marcus Leoni / Folhapress, COTIDIANO)
A confeiteira e engenheira de alimentos Joyce Galvão (à esq.), ao lado do chef espanhol Ferran Adrià, em 2007, criador de um centro de investigação de culinária no qual ela atuou
Fazer hora extra não remunerada, ficar longe da família, trabalhar aos finais de semana sem compensação e até mesmo ouvir insultos e cobranças excessivas são vistos como comportamentos justificáveis entre pessoas que se relacionam de forma apaixonada com o trabalho - ou que a sociedade considera como "trabalho apaixonado".
Injustiças ocorrem quando os trabalhadores não se beneficiam o suficiente dessa entrega excessiva. O benefício, nesse caso, é tido como algo a ser colhido no longo prazo. É como se o funcionário dedicado contasse com uma análise positiva futura, por parte dos empregadores, que destacaria sua dedicação para justificar um aumento de salário ou promoção, além de garantir direitos e segurança laboral.
O "pagamento intangível" desse esforço movido pela paixão é uma promessa que nem sempre se cumpre –o que bagunça a noção de justiça ou mérito entre os funcionários.
Segundo o estudo, essa exploração ocorre a partir de dois mecanismos mediadores. O primeiro deles é o que supõe que trabalhadores apaixonados pelo trabalho teriam se voluntariado para determinada tarefa, se tivessem tido a chance. O segundo se dá a partir da crença de que, para esses funcionários, o próprio trabalho é sua recompensa.
MUITO AMOR ENVOLVIDO?
Nem sempre os trabalhadores estão conscientes disso. Como a atividade que executam envolve afeto, o sujeito não consegue enxergá-la como exploração.
"Este movimento sociocultural contemporâneo, que entende o trabalho não como um ofício, mas como uma atividade apaixonada da qual as pessoas obtêm gozo e sentido, pode ironicamente levar as pessoas a enxergar práticas gerenciais questionáveis como justas e legítimas", afirmam os autores do estudo.
Pessoas entusiasmadas com o trabalho são mais pró-ativas, mas também podem sofrer mais de esgotamento (burnout), além de apresentar menor flexibilidade em relação aos seus propósitos dentro daquela função.
"Um bom número de sociólogos e jornalistas têm percebido o aumento de maus-tratos entre empregados apaixonados pelo trabalho, funcionários esses que admitem, eles próprios, que a paixão justifica o abuso. Na Coreia do Sul, jovens trabalhadores desiludidos cunharam o termo 'salário de apaixonado', ou 'pagamento de apaixonado', para se referir, de forma jocosa, à expectativa de que deveriam trabalhar sem ganhos substantivos porque seu entusiasmo é a própria recompensa."
A pesquisa ainda aponta para a legitimação da exploração por um caminho inverso –quando os observadores atribuem "paixão" e "dedicação" ao trabalhador que está na realidade sendo explorado.
Como nem sempre o sucesso acompanha os esforçados, estereótipos sociais como "pobre, mas feliz", ou "rico, mas infeliz" reforçam o status quo - para muitos, especialmente em uma sociedade individualista como a americana, o sistema social é justo quando a desvantagem material (pobreza) é neutralizada pelo aparente bem-estar. Os autores chamam esse mecanismo de "justificação compensatória".
Getty Images/BBC News Brasil
SAO PAULO, SP, BRASIL, 28.01.18 1h O que vai bombar no Carnaval 2018 nas ruas. Denny Azevedo, 34, e Ricardo Don, 31, artistas, no Academicos do Baixo Augusta. (Foto: Marcus Leoni / Folhapress, COTIDIANO)
Fazer hora extra não remunerada, ficar longe da família e até mesmo ouvir insultos e cobranças excessivas são vistos como comportamentos justificáveis entre pessoas que se relacionam de forma apaixonada com o trabalho
COMO A PESQUISA FOI FEITA
Os oito experimentos iniciais entrevistaram 2.400 pessoas, entre elas estudantes, donas de casa e administradores de empresas, sobre como determinadas profissões e profissionais são percebidos, a partir de situações hipotéticas. A meta-análise cruzou os dados obtidos nos experimentos.
No Estudo 1, por exemplo, os participantes tinham de identificar, entre 80 profissões, quais envolviam mais "paixão". Áreas criativas e de trabalho social –artistas, ecólogos, assistentes sociais, psicólogos, atores, veterinários– foram apontadas como as que atraem mais gente apaixonada pelo ofício.
Em seguida, tinham de responder quão bem ganhava, na média, um profissional dentro de cada categoria, e quais funções, entre as 80, tinham maior status.
A hipótese dos pesquisadores, de que condições de exploração são vistas como mais legítimas em profissões associadas à dedicação apaixonada (ou ao amor pela profissão), foi confirmada em todos os cenários descritos.
Como previsto, essa relação era mediada pela expectativa de que esses funcionários aceitariam trabalhar de forma voluntária, se pudessem.
"Nossa pesquisa sugere que podemos participar de forma involuntária da legitimação de uma forma de exploração trabalhista sutil e insidiosa. Certamente, não estamos dizendo com isso que as pessoas devam desistir de buscar o que gostam no trabalho (ou na vida). Há inúmeros trabalhos que deixam claro que a paixão é muitas vezes um benefício. Nosso objetivo é inspirar maior atenção social e científica às formas de exploração que podem passar despercebidas na sociedade contemporânea."
Um possível caminho é identificar, entre funções, cargos e profissões que envolvem entusiasmo e paixão, quais empregadores tendem a explorar os funcionários.
"É imoral um trabalho que te explora sem qualquer desculpa pra isso, é imoral e errado. Mas vale um conselho: entrar nessa ciente do que pode acontecer é agir sem inteligência. Se você conhece alguém que tem se dado bem no emprego, que ama o que faz e não se sente explorado, é provável que essa pessoa tenha sido muito meticulosa nas escolhas que fez", contou à BBC Brasil Troy H. Campbell, professor assistente na Faculdade de Administração Lundquist da Universidade do Oregon e um dos autores do artigo.
Campbell reconhece que nem sempre é fácil trocar um emprego tóxico por outro melhor. Mas, uma hora ou outra, isso vai acontecer: pessoas talentosas e esforçadas caem fora de um ambiente que legitima a exploração da paixão assim que podem.
QUESTÃO DE CLASSE E DESEMPREGO
Em 2014, Miya Tokumitsu, autora de "Do what you love: and other lies about success and happiness" (Faça o que ama: e outras mentiras sobre sucesso e felicidade, em tradução livre), publicou um artigo na revista Slate que viralizou nas redes sociais.
"Em nome do amor" destrói a falácia sobre trabalho e vocação. "O problema do 'faça o que você ama' é que ele não leva à salvação, mas à desvalorização do trabalho real. (...) E, mais importante, à desumanização da grande maioria dos trabalhadores", afirmou.
Em um mundo que exclui e segrega, de crescente precarização dos direitos trabalhistas e a uberização de tudo, o "faça-o-que-você-ama" nos mantém focados em nós mesmos, nos distrai das condições de trabalho dos outros, enquanto valida nossas próprias escolhas e nos descompromete de obrigações para com todos que trabalham, independentemente se amam ou não suas profissões. "É o aperto de mão secreto entre os privilegiados, e uma visão de mundo que dissimula seu elitismo como nobre auto-aperfeiçoamento."
Acervo pessoal/BBC News Brasil
SAO PAULO, SP, BRASIL, 28.01.18 1h O que vai bombar no Carnaval 2018 nas ruas. Denny Azevedo, 34, e Ricardo Don, 31, artistas, no Academicos do Baixo Augusta. (Foto: Marcus Leoni / Folhapress, COTIDIANO)
Joyce Galvão, durante o tempo em que atuou na Fundació Alicia, na Catalunha, um centro de investigação de culinária
"A visão de Jobs, bem século 21, pede que nos voltemos para dentro. Ela nos absolve de qualquer responsabilidade ou reconhecimento pelo mundo à nossa volta", afirma a escritora.
Para Suzana da Rosa Tolfo, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e especialista em relações de trabalho, a ideologia de que trabalhar duro e manter a persistência levarão à riqueza, à felicidade e à satisfação no trabalho são parte da psicologia positiva. Mas poder escolher trabalho, emprego e profissão, ou seja, poder ter uma identidade profissional, encontram uma realidade diferente no caso brasileiro.
"No país, as possibilidades de escolhas de carreira são bastante afetadas pelas contingências do mercado de trabalho restrito, das limitações para se estudar e se desenvolver competências. Em grande parte, os trabalhadores que realizam atividades cuja qualificação é pouca exigida se acostumam às limitações, que autores podem chamar de exploração, como Alan Wertheimer."
Nesse sentido, a lógica por parte desses trabalhadores é que não faz sentido trabalhar com todo o afinco se, muitas vezes, os gestores das organizações escolhem formas de pagar o mínimo possível a seus empregados e remover os benefícios conquistados.
Ela cita pesquisas do núcleo de estudos de que faz parte, que estuda processos psicossociais e de saúde nas organizações e no trabalho. Os trabalhos indicam que, mesmo que o emprego seja fonte de identidade, formador de vínculos e considerado relevante socialmente, as pessoas podem desenvolver quadros de adoecimento. Muitas vezes, o presenteísmo e a resiliência serão as principais estratégias de defesa e de enfrentamento para manter-se trabalhando.
"Miya Tokumitsu ironizava quando dizia que, afinal de contas, se você realmente ama o que faz, preocupações sobre salário, assistência médica e previdência social podem ficar em segundo plano", analisa Tolfo.
Tal qual a experiência de Joyce Galvão na Espanha, atividades que levam ao desenvolvimento de competências precisam ser aceitas sob qualquer forma, como estágios não remunerados abundantes e trabalhos freelance, para citar alguns dos referidos por Tokumitsu.
"Em países periféricos como o Brasil, no qual há precarização do trabalho, as condições de saúde e de segurança e os riscos psicossociais no trabalho desafiam o trabalhador a manter a saúde mental e o amor ao trabalho de forma saudável", diz Tolfo.