sábado, 9 de novembro de 2019

Há 81 anos, um brasileiro denunciava a barbárie nazista, FSP

Temístocles da Graça Aranha esteve na Kristallnacht

“Sob o grosseiro pretexto de vingar a morte de um jovem secretário da embaixada alemã em Paris, os nazistas, dando mais uma prova das violências a que são capazes, investiram em massa, na madrugada de 10 (de novembro), contra todas as lojas pertencentes a judeus.
Temístocles da Graça Aranha —o encarregado de negócios do Brasil em Berlim— havia acabado de testemunhar Kristallnacht, a Noite dos Cristais, que completa 81 anos. Seu relato confidencial ao Itamaraty, desde a primeira frase, não deixava dúvidas sobre a gravidade dos acontecimentos —nem sobre a posição de Graça Aranha diante da barbárie nazista.
Pedestres passam por vitrine destruída após ataques da Kristallnacht, em novembro de 1938 - Ann Ronan Picture Library/Photo12/AFP
 
No centro comercial de Kurfürstendamm, o diplomata nascido no Rio viu a depredação das lojas de judeus. “Policiais inertes assistiam ao espetáculo degradante com olhos benévolos e pareciam lastimar não participarem dos saques.” 
Graça Aranha notava, ainda, o triunfo do império da mentira: Goebbels exaltava a reação “espontânea” da multidão, embora claramente se tratasse de uma operação coordenada do Partido Nazista.
Das 12 sinagogas de Berlim, três escaparam dos incêndios —não por piedade, relatou, mas porque o fogo ameaçaria casas vizinhas de nazistas. Bombeiros deixaram arder os templos religiosos, enquanto o “populacho” disputava símbolos judaicos como “troféus heroicos”.
“Milhões de pessoas gozavam bestialmente esse espetáculo único no século 20, numa das mais cultas capitais da Europa, que se ufana em ser um grande centro da inteligência do homem.” O nazismo tentava “sistematicamente destruir” qualquer resistência, explicava. Para Hannah Arendt, a Noite dos Cristais foi o marco inaugural do período totalitário nazista.
Antes, pensava-se que judeus viveriam —ainda que como cidadãos de segunda classe— na Alemanha. Kristallnacht revelou que o objetivo era, afinal, obliterar a presença judaica por onde reinasse o Terceiro Reich.
Havia poucos “israelitas brasileiros” na Alemanha, mas Graça Aranha trabalhou para resguardá-los. Ele teria sido o primeiro chefe de missão em Berlim a solicitar, ao Ministério de Assuntos Estrangeiros, proteção a seus judeus nacionais. Consulados brasileiros no país receberam ordens suas para investigar a situação e cuidar de judeus com nacionalidade do Brasil.
Manuel Bandeira escreveria, anos depois, um poema ao amigo, “Temístocles da Graça Aranha”: A aranha morde. A graça arranha. / E vale o gládio nu de Têmis. / Logo se vê que tu não temes / Temístocles da Graça Aranha.
O bravo encarregado de negócios em Berlim era um feixe de luz na escuridão do Itamaraty dos anos 1930. Brilharia ao lado do embaixador Luiz Martins de Souza Dantas, cujo heroísmo salvou cerca de 800 pessoas —mais da metade, judeus. Mas o racismo e o antissemitismo intoxicavam a chancelaria. 
Para grande parte dos cônsules e embaixadores, havia uma rede judaica de banqueiros, donos de jornais e marxistas a conspirar mundialmente contra a civilização cristã.
Em documentos do Itamaraty, judeus eram descritos como “raça inassimilável” no Brasil.
Tivesse prevalecido essa visão, três avós meus não teriam deixado a Alemanha para encontrar a liberdade no Brasil. O texto que você acabou de ler, bem como seu autor, não existiriam. 
81 anos depois, honrar a memória das vítimas e dos que desafiaram o nazifascismo segue como um dever inescapável.
Roberto Simon
É diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações internacionais pela Unesp.
As opiniões expressas acima não refletem necessariamente a posição do Council of the Americas.

Demétrio Magnoli Ruínas da história, FSP

Trinta anos após queda do muro, ameaça totalitária externa deu lugar à degradação interna

Trinta anos, parece ontem, mas nada é igual e, como diria Walter Benjamin interpretando o Angelus Novus de Paul Klee, "uma catástrofe única acumula incansavelmente ruínas de história, que se dispersam aos nossos pés".
As loucas esperanças do 9 de novembro de 1989, dia da queda do Muro de Berlim, estilhaçaram-se contra os muros invisíveis da multifacética crise europeia, da ascensão de Donald Trump, da restauração da "Grande Rússia", da ressurgência do fantasma do extremismo na Alemanha.
Europa de 1989 extraiu da queda do Muro as políticas de avanço rumo à União Monetária e de expansão para o leste. A primeira desaguou numa catástrofe fiscal que quase destruiu a moeda comum. A conjugação da crise do euro, iniciada em 2010, com a crise dos refugiados, deflagrada em 2015 pela guerra síria, montou o cenário da emergência da direita nacionalista. Nem a Alemanha ficou imune à desestabilização dos sistemas políticos nacionais.
A ruptura do equilíbrio decorreu da ousada decisão de Angela Merkel, que abriu as portas do país a quase 1 milhão de refugiados, num gesto histórico de proteção dos direitos humanos.
As reações xenófobas deram origem ao Pegida, um movimento neonazista, e propiciaram o crescimento da Alternativa para a Alemanha (AfD), um partido nacionalista que alcançou o terceiro lugar nas eleições federais de 2017. Os alicerces sociais dos dois encontram-se na antiga Alemanha Oriental.
O sucesso da expansão da União Europeia (UE) para o antigo bloco soviético mede-se pela forte elevação dos níveis de vida na República Tcheca, na Eslováquia, na Polônia e na Hungria. Mas, triste ironia: hoje, paradoxalmente, os governos populistas de três desses quatro países voltam-se contra os valores da UE que proporcionaram suas transições rumo à economia de mercado.
Da AfD alemã à Reunião Nacional francesa, do húngaro Viktor Orbán ao italiano Matteo Salvini, e deles aos fanáticos do Brexit, estende-se a sombra de uma "Internacional dos nacionalistas". Três décadas depois da grande festa em Berlim, a ameaça totalitária externa deu lugar à degradação interna: o retorno triunfante dos arautos da "nação de sangue".
À frente de uma cambaleante URSS, Mikhail Gorbatchov negociou com as potências ocidentais a dissolução do Pacto de Varsóvia. O líder russo Boris Ieltsin engajou-se em radicais reformas econômicas de mercado e acenou à cooperação com a Europa Ocidental e a Otan.
Contudo, um quarto de século depois, sob o regime grão-russo de Vladimir Putin, a Rússia anexou a Crimeia, mantém um enclave separatista na Ucrânia e moderniza suas forças armadas. Na raiz da reviravolta está o maior erro geopolítico cometido pelo Ocidente no outono do século 20.
No intercâmbio de 1990 entre EUA e URSS, o americano George H. Bush comprometeu-se a não incorporar à Aliança Atlântica os países do antigo bloco soviético. A promessa foi traída menos de dez anos depois.
Durante aquela década, o PIB russo declinou em cerca de 40%. A ideia de um "segundo Plano Marshall", destinado à transição russa, foi deixada de lado. No lugar da economia de mercado, a Rússia ergueu um capitalismo de Estado e reverteu a um sistema autoritário. A "Grande Rússia" de Putin tem uma economia de dimensões similares às da Espanha, mas arsenais nucleares capazes de impulsionar uma "segunda Guerra Fria".
De Truman a Kennedy, e dele a Reagan: o Muro de Berlim desabou graças às políticas internacionalistas conduzidas por presidentes americanos, democratas e republicanos, ao longo de quatro décadas. O consenso bipartidário foi rompido com o triunfo de Trump, um admirador de Putin que hostiliza a UE, estimula o Brexit e estreita laços com a "Internacional dos nacionalistas".
O anjo da história volta seus olhos para o passado e identifica, nesses 30 anos, uma "catástrofe única" que continua a se amontoar.
Demétrio Magnoli
Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.