sábado, 9 de novembro de 2019

Fernando Haddad Justiça, FSP

Não há paz sem justiça

O edifício jurídico, abalado pelo populismo, vai lentamente sendo reconstruído pelo STF.
Alguns importantes alicerces foram reforçados, mesmo que o solo ainda pareça movediço.
O STF disciplinou os abusos da condução coercitiva, dos quais Lula foi vítima, normatizando as condições da sua aplicação.
Graças ao STF, Lula, como qualquer outro cidadão, passou a dar entrevistas, depois de ter sido impedido de fazê-lo durante o período eleitoral por um ministro da corte, em flagrante contradição com o princípio constitucional da liberdade de imprensa.
Lula, um ex-presidente da República, foi impedido de tomar posse como ministro-chefe da Casa Civil, quando nem sequer era réu, a partir do vazamento ilegal de gravações ilícitas, na tentativa bem-sucedida do "juiz" Moro de manipular o STF e a opinião pública.
O ministro da corte que concedeu a liminar reconheceu que, se tivesse conhecimento da íntegra dos diálogos gravados, talvez tivesse tomado outra decisão.
Apoiadores de Lula em frente ao prédio da PF em Curitiba nesta sexta (8/11) - Rodolfo Buhrer/Reuters
Nesta semana, o STF reconheceu que a prisão de Lula é inconstitucional, isto é, Lula foi privado de participar das eleições, ainda que na condição de cabo eleitoral.
Essa última decisão, contudo, inspira cuidados. O lapidar voto do decano da corte é guia seguro para seguir a trilha da reforma democrática do Estado de Direito.
O artigo 5º da Constituição Federal é cláusula pétrea, mas é possível, como ensinou Celso de Mello, reformar a legislação infraconstitucional. A revisão das regras de prescrição e de admissibilidade de recursos pode aperfeiçoar nosso sistema jurídico, sem que seja preciso testar a higidez dos direitos fundamentais inscritos na Carta de 1988.
Esse entendimento precisa ser pacificado. Tentações autoritárias devem ser afastadas, e cláusulas pétreas, reafirmadas. Não custa lembrar que, no próximo ano, dois dos ministros garantistas serão substituídos por indicação de Bolsonaro, que já adiantou que o critério de escolha será o fervor religioso.
A julgar pelo conceito de meritocracia do atual governo, a situação é preocupante. O escolhido nesta semana para gerir a Secretaria Nacional de Cultura, transferida para o Ministério do Turismo (!), é alguém cujo "maior feito" foi ofender publicamente a grande dama da dramaturgia brasileira, Fernanda Montenegro.
No que diz respeito a Lula, paciente de tantas arbitrariedades, um último gesto de reconhecimento lhe caberia. Lula foi julgado por um "juiz" parcial. O conjunto de evidências é robusto o suficiente para que suas condenações sejam anuladas.
Para que o país tenha um pouco de paz. Porque não há paz sem justiça!
Fernando Haddad
Professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo.

Num túnel do tempo para Havana, FSP Álvaro Costa e SIlva

A turma que hoje odeia Cuba não deve saber quem foi Benny Moré ou Bola de Nieve

Vai pra Cuba! Quando ouço ou leio nas redes sociais a frase, que não esconde o tom de xingamento, logo me lembro de G. Cabrera Infante (1929-2005), o escritor que passou quase 40 anos no exílio, em Londres, e de lá recriou a memória de sua cidade. Oficialmente fundada em 16 de novembro de 1519, La Habana está fazendo 500 anos. O governo do Brasil mandou um presente "muy amigo": obedecendo aos EUA, rompeu a tradição e deixou de condenar o embargo econômico ao pequeno país caribenho.
Quando lhe perguntaram se voltaria para Havana depois da morte de Fidel Castro, Cabrera Infante respondeu: "Claro. Mas não no primeiro avião". Já se acostumara a viver longe, ao lado da mulher, a atriz Miriam Gómez ("minha Cuba portátil"), recriando em seus romances (o maior deles, "Três Tristes Tigres") a cidade perdida.
A Havana de G. Cain, o heterônimo com que assinava suas críticas de cinema, só podia ser a dos anos 1950, pré-revolucionários: sensual, alegre, boêmia, mas também violenta, degradante, injusta. Mais que recordada, talvez fosse uma cidade feita de saudades, sonhos e palavras, que só existisse na cabeça do escritor proibido de voltar. Pouco importa, pois é ela que ficará para os leitores como única.
A música, esta sim, era real. Numa mesma noite, era possível ouvir a Anacaona (orquestra composta só por mulheres); o piano de Bola de Nieve; dançar com Benny Moré ou a Sonora Matancera; aplacar a dor de cotovelo ao som dos boleros de Olga Guillot, Vicentico Valdés e da enorme Fredesvinda García, a Freddy; curtir o feeling de José Antonio Mendez; esbaldar-se com o jazz de Cachao, Bebo Valdés e El Negro Vivar.
O cantor cubano Benny Moré, em 1957 - AFP
E quem é aquele ali na mesa ao lado? Marlon Brando, implorando uma chance para tocar bongô.
A turma do ódio faz ideia de que, um dia, existiu uma Cuba assim? Se quiserem me mandar para lá num túnel do tempo, vou correndo.
Alvaro Costa e Silva
Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".

Depois do Carnaval, Julianna Sofia, FSP


A reforma da Previdência de Jair Bolsonaro, prevista para entrar em vigor na próxima semana, não levou apenas dez meses para ser aprovada e promulgada. Foram 35 meses de ruminação legislativa sobre mudanças nas aposentadorias desde que Michel Temer enviou ao Congresso proposta de emenda constitucional em dezembro de 2016 --cinco meses depois, o caso JBS abortava o plano reformista.
O pacotaço de Paulo Guedes (Economia), com medidas drásticas e profundas para redimensionar o Estado brasileiro, enxugando gastos, cortando benefícios e extinguindo municípios, precisará de tempo no decantador. A docilidade do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, em comprar o kit completo não ilude.
"A proposta é ambiciosa, mas a gente precisa estar empenhado nela. (...) Estou à disposição para ajudar e continuar falando com todos os atores para mostrar que isso aqui [pacote] é a favor do brasileiro mais simples", disse Maia à Folha.
Maia não engoliu o bode na sala da extinção das cidades sem capacidade financeira, enxertado no pacote sem debate prévio. O deputado também não gosta da PEC emergencial do Palácio do Planalto, pois já há uma outra na Câmara de potência fiscal cinco vezes maior. Ele também diverge da equipe econômica ao defender prioridade no debate da reforma tributária.
O pacote, por sua envergadura, não pode prescindir de amplo apoio político para recrutamento dos votos necessários para sua aprovação. 
A autorização para corte de jornada e salário de servidores, suspensão de promoções e proibição de reajustes salariais proposta na PEC da emergência fiscal é goma para colar em Bolsonaro pecha de demonizador do funcionalismo. Não à toa, o presidente fala em aparar arestas e evitar equívocos ao comentar o adiamento no envio da próxima reforma, a administrativa --com mais iniciativas impopulares para servidores.
Não à toa, o próprio Maia já fala em aprovação de boa parte das medidas econômicas só depois do Carnaval.
Julianna Sofia
Jornalista, secretária de Redação da Sucursal de Brasília.