domingo, 9 de setembro de 2018

A associação da Embraer com a Boeing, FSP


A associação da Embraer com a Boeing, mediante a criação de uma "joint venture" em que a segunda detém 80% do controle acionário, foi objeto de copioso noticiário orquestrado em tom de propaganda, no qual o negócio aparecia como altamente vantajoso para a Embraer.

Para estrear a propaganda, citava-se a associação da canadense Bombardier com a Airbus, esquecendo que o grupo europeu assumiu não mais do que 50,1% do controle da sociedade e que o objetivo desse acordo é o de ampliar o acesso das duas empresas ao mercado de jatos de médio porte (100 a 200 passageiros). 

Os aviões continuarão a ser produzidos no Canadá (fuselagem e cockpit) e na Irlanda do Norte (asas).
A Embraer foi criada em 1969, por engenheiros oriundos do ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica), que tinha sido criado em 1950, em São José dos Campos.

Essa origem e a proximidade geográfica favoreceram uma estreita cooperação entre pesquisadores e engenheiros das duas instituições, estimulando o desenvolvimento da tecnologia nacional nos campos da ciência dos materiais, eletrônica de instrumentação e controle, mecânica fina e de precisão etc.

Na estruturação desse importante complexo industrial, foi decisiva a participação do Estado, com sua capacidade de investimento e compra de equipamentos e, principalmente, com a sua liberdade para reinvestir parte dos lucros na transferência e adaptação de tecnologias provenientes de países desenvolvidos, assim como na formação de engenheiros, técnicos e operários especializados.

Foi assim que se consolidou no Brasil uma importante indústria de equipamentos eletromecânicos; criaram-se pequenas e médias indústrias e se formaram milhares de engenheiros e técnicos altamente qualificados, não apenas no campo da construção de aeronaves, mas também em diversos segmentos industriais, em áreas como construção mecânica, equipamentos elétricos, mecânica fina e eletrônica de instrumentação e controle.

As indústrias de autopeças e de máquinas-ferramentas, entre outras, progrediram muito no Brasil, graças a tecnologias desenvolvidas no ITA e na Embraer.

O ativo intangível representado pelo know-how acumulado nessa espécie de "Vale do Silício" não foi contemplado na associação com a Boeing --e esta não assume nenhum compromisso de manter no Brasil as atividades de pesquisa/desenvolvimento aqui desenvolvidas.

A Boeing concentra nos Estados Unidos toda a fabricação de seus aviões. É pouco provável que a "joint venture" por ela controlada tenha interesse em contratar serviços com firmas de engenharia brasileiras, muito menos por adquirir componentes fabricados no Brasil, de modo que, de certeza, serão extintas muitas empresas-satélites da Embraer, perdendo-se assim milhares de postos de trabalho qualificado, exatamente como vem acontecendo com as empresas de energia elétrica, que começaram a ser vendidas para grupos estrangeiros durante o governo FHC. E por aí vai-se desindustrializando o Brasil.


Joaquim Francisco de Carvalho
Doutor em energia (USP), ex-chefe do setor industrial do Ministério do Planejamento e ex-diretor industrial da Nuclen (atual Eletronuclear)

Francis, aos 38, Ruy Castro, FSP


Amigos me alertaram no domingo último, 2 de setembro. Paulo Francis estaria fazendo 88 anos. Francis, como se sabe, morreu em Nova York, onde morava, em 1997, aos 66. Foi o jornalista brasileiro mais famoso de sua geração. Que tivesse morrido com 66 anos —de um infarto provocado por um processo que lhe moveu um presidente da Petrobras, que ele chamara de ladrão—, já foi inacreditável. Mas imaginá-lo aos 88, talvez frágil e alquebrado, também seria inconcebível. 
Francis precisava de seu porte imponente, dos ternos da Brooks Brothers, de parecer ainda mais alto do que era para se sentir Paulo Francis. Seu modelo era o crítico de teatro Addison DeWitt, personagem de George Sanders no filme “A Malvada” (1950), de Joseph L. Mankiewicz —e, não por acaso, Francis começou na imprensa pelo teatro. Era, no fundo, um ator, empenhado em aperfeiçoar o papel que mais gostava de representar: o de Paulo Francis. 
Paulo Francis, na Redação da Folha, nos anos 1980
Paulo Francis, na Redação da Folha, nos anos 1980 - Luiz Carlos Murauskas/Folhapress
Ao olhar para a folhinha, lembrei-me de outro 2 de setembro, o de 1968. Francis fazia, então, 38 anos, e convidou amigos ao seu apartamento, na rua Alberto de Campos, em Ipanema. Quem estava lá naquela noite? Enio Silveira e Jorge Zahar, editores. Millôr Fernandes, Sergio Porto, Flavio Rangel, Telmo Martino, Glauber Rocha, José Lino Grünewald. A nova esquerda, com Fernando Gasparian. A velha esquerda, com Otavio Malta. Ex-namoradas: Gilda Grillo, Tuca Magalhães, Thereza Cesario Alvim. Newton Rodrigues, seu chefe no Correio da Manhã; Beki Klabin, sua patroa na revista Diners. O muito rico Marcello Aguinaga. Muitos mais.
Homens e mulheres elegantes bebiam Black Label e champanhe, falavam de política, riam dos militares —ainda se faziam piadas com os militares. Na vitrola, Carmen McRae, José Feliciano, Renata Tebaldi. Serviram-se canapés vindos do novo restaurante Flag. Dali a três meses, Francis seria preso no AI-5.      
Todos os citados já morreram. Sobrei eu, para contar a história.

 


Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Salvação da lavoura, Editorial FSP



A pior praga a afligir o agronegócio brasileiro tem raiz ideológica: a polarização entre ambientalistas e ruralistas. Ela envenena o debate público e enseja que os pontos de vista mais atrasados prevaleçam.
O Brasil ocupa posição única no cenário mundial. É o segundo maior exportador de grãos. Com tecnologia própria, expandiu a produção ao ritmo de 4,1% ao ano, desde a década de 1970, com alta menor da área plantada (1,2% por ano).
O setor agropecuário representa hoje 4,5% do Produto Interno Bruto, mas a cadeia produtiva movimenta cerca de 20% do PIB. E isso com apenas 4,9% de sua receita bruta advindos diretamente de recursos públicos, pouco mais da metade do apoio estatal nos Estados Unidos e menos de um quarto do verificado na União Europeia.
Algumas paisagens do país sofreram e sofrem devastação, é fato, com o avanço da fronteira —como a mata atlântica, dizimada no século 20, e o cerrado, atualmente o bioma mais pressionado.
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Poucas nações com tal peso agrícola, no entanto, contam com 68% de vegetação nativa. Ou, então, com 18% do território protegido em unidades de conservação e 13% em terras indígenas.
De uma perspectiva racional, não há motivo para deixar de perseguir a vocação agrícola nem para dilapidar mais o patrimônio de biodiversidade. Sobram argumentos econômicos, ambientais e pragmáticos para conciliar tais objetivos.
A cobertura vegetal assegura a reposição de recursos naturais, como água para irrigação, energia hidrelétrica e abastecimento humano. Além disso, sua destruição e a agropecuária a ela associada constituem a principal fonte de emissões de carbono (gases do efeito estufa) da economia brasileira (73% do total em 2016).
Por fim, cresce em todos os mercados a demanda por alimentos, fibras e biocombustíveis que não sejam produzidos em áreas de desmatamento recente.
Aumentar a produtividade da pecuária para liberar espaços de cultivo, recuperar pastagens degradadas, eliminar o desmate ilegal e restaurar florestas são, portanto, uma oportunidade única para o Brasil manter-se na liderança agrícola ao mesmo tempo em que cumpre as metas de redução de emissões definidas no Acordo de Paris.
Para tanto, mostra-se crucial tornar o agronegócio mais produtivo e sustentável, evitando estigmatizá-lo como destruidor de florestas. Sem prejuízo de punir com rigor quem devasta áreas que a lei manda preservar, cumpre combater os vários obstáculos que ainda se interpõem à atividade.
A prioridade reside em dissolver o caos fundiário que ainda prevalece em boa parte do território, notadamente na Amazônia.
Além de sanear os registros coalhados de títulos de origem duvidosa e de superposições, há que integrar e informatizar todos os cadastros de terras do país.
Cumpre enfrentar, igualmente, a insegurança jurídica criada pela lentidão decisória de órgãos como Incra, Anvisa, Ibama e Funai. Não tem cabimento consumir uma década inteira para autorizar um novo agrotóxico, por exemplo.
Se faltam recursos para investir em infraestrutura, nesta dura estiagem orçamentária, não é menos certo que compete ao governo federal formular planos de médio e longo prazos, com apoio de recursos privados, para desfazer o pesadelo logístico em que se converteu o escoamento da produção.
A fim de efetivar a contrapartida ambiental prometida na mudança do Código Florestal, importa pôr fim aos sucessivos adiamentos do Cadastro Ambiental Rural (CAR). Há que proceder, enfim, à generalização dos Programas de Regularização Ambiental (PRA), etapa subsequente em que produtores faltosos têm de saldar dívidas com a preservação.
Como nas últimas quatro décadas, a tecnologia será aliada importante para conferir dinamismo ao setor agropecuário. O caso de sucesso da Embrapa precisa ser seguido e multiplicado.
O desafio modernizador abrange do emprego ampliado de sistemas de informação geográfica para monitorar a perda de cobertura vegetal (não só na Amazônia) e ordenar o uso da terra (zoneamento ecológico-econômico) até o desenvolvimento de cultivares, práticas e variedades animais adequados para cada bioma e zona agrícola.
Não se trata de destinar mais recursos ao setor, que já conta com tratamento tributário favorecido e cerca de R$ 200 bilhões anuais no Plano Safra. E, sim, de utilizar o crédito subsidiado para promover soluções, como a agricultura de baixo carbono, e de recusá-lo a quem descumpre normas legais.
Por seu peso na economia nacional, o agronegócio detém inegável influência política, mas não parece que ela venha sendo mobilizada no Congresso para avançar uma agenda programática à altura da modernidade do campo.
Retrocessos como os observados nas questões ambiental, fundiária e indígena interessam a muito poucos, e certamente não aos que levaram o setor à liderança global.

Como conciliar produção agrícola e conservação ambiental
  • Priorizar regularização fundiária, com integração de cadastros rurais; concluir Cadastro Ambiental Rural (CAR)
  • Elevar eficiência de órgãos controladores (Anvisa, Ibama, Incra, Funai)
  • Elaborar zoneamento ecológico-econômico do território
  • Recuperar pastagens, aumentar produtividade da pecuária, zerar desmatamento ilegal e recompor florestas para cumprir metas do Acordo de Paris
  • Buscar recursos privados para superar gargalos logísticos (estradas, rodovias, hidrovias e portos)