segunda-feira, 12 de maio de 2025

O tabuleiro da sucessão - MEIO

 Por Rodrigo Toniol*

A imagem ficou gravada na memória coletiva. Sob uma chuva fina, Francisco atravessa sozinho a imensa Praça de São Pedro. Era março de 2020, o mundo mergulhava na incerteza da pandemia. O papa detém-se diante do Cristo de San Marcello al Corso, ícone do século 15 que sobreviveu a incêndios e pragas. Na solidão tarde, não apenas rezou. Com o gesto silencioso e cuidadosamente coreografado, com câmeras posicionadas e cenário pensado para gerar uma das imagens mais emblemáticas daquele tempo, Francisco oferece uma chave de leitura para entender o modo como também coreografaria, com precisão, a sucessão papal. A preparação em vida, os termos da disputa cardinalícia e o perfil do eleito selecionaram os eixos dessa construção meticulosa.

Quando Francisco assumiu o pontificado, em março de 2013, a Igreja Católica atravessou uma de suas mais graves crises institucionais desde o Concílio Vaticano II. A renúncia de Bento XVI, anunciada semanas antes, revelada publicamente as excessivas acumuladas na cúria romana. O colégio cardinalício, pela primeira vez em séculos, precisou organizar um conclave na presença de um papa emérito, o que rompeu uma tradição de continuidade quase ininterrupta. O escândalo internacional envolvendo casos de abusos sexuais, a crise de repetição moral, os conflitos internos sobre a gestão financeira e o vazamento de documentos sigilosos (conhecidos como Vatileaks ) evidenciaram o esgotamento de um modelo de governo eclesial. A cena de dois papas vivos — um mérito recolhido no mosteiro Mater Ecclesiae e outro ativo em San Pietro — tornou-se uma imagem-síntese do impasse institucional e da necessidade de compensar o modo de exercer a autoridade papal.

O papado de Francisco, iniciado em 2013 e encerrado 12 anos depois, está marcado por um paradoxo central. Foi o pontificado de um reformador que não reformou sua Igreja. Apesar dos avanços no campo da transparência financeira e da tentativa de limitar a influência de setores católicos ultraconservadores na cúria, Francisco não conseguiu superar resistências em temas sensíveis como o reconhecimento pastoral de pessoas homossexuais. A Igreja Católica, fiel ao seu ritmo milenar, mudou para continuar igual.

Contudo, esse balanço seria incompleto sem considerar o alcance externo de sua atuação. O papa argentino foi um player global . Francisco soube explorar como pouco a centralidade simbólica do papado em um cenário global marcado pela limitação das democracias liberais e pela ascensão de governos autoritários. Denunciou a desigualdade como forma de violência social, condenou a destruição ambiental e se opôs frontalmente à indiferença diante do sofrimento de migrantes e refugiados. Num contexto em que o mínimo humanista — como afirmar a necessidade de acolher quem foge da guerra ou da fome — tornou-se uma exceção incômoda, Francisco manteve-se como referência ética.

Entre os muitos gestos concretos que definem seu estilo pastoral de simplicidade, destacou-se a atenção contínua às periferias globais. Lavou os pés de refugiados , acolheu migrantes na Praça de São Pedro e fez inúmeras ligações diretas para comunidades atingidas por crises. Durante a guerra em Gaza, telefonou repetidamente para a paróquia local em busca de notícias e oferecendo solidariedade pastoral.

As peças

Sua estratégia também passou pela redefinição da geografia do poder dentro da Igreja. Nomeou um número inédito de cardeais vindos da Ásia, África e América Latina, alterando de forma sutil, mas eficaz, o perfil do colégio cardinalício que, entre outras coisas, elegeria seu sucessor. Embora não tenha promovido uma reforma doutrinária, essa abertura indicou uma aposta no longo prazo: deslocar o eixo simbólico da Igreja para fora da Europa.

Foi com a consciência de um enxadrista que Francisco dedicou parte específica de seus últimos anos a preparar as condições para a escolha de seu sucessor. Mais do que antecipar um nome, o que seria impossível em uma Igreja que preserva o mistério e a autonomia do conclave, o papa argentino buscou moldar o perfil coletivo do colégio que teria essa responsabilidade. Seu esforço não foi de ruptura, mas de deslocamento gradual das forças internas. Em 12 anos de pontificado, Francisco poderia indicar cerca de 80% dos cardeais participantes .

A estratégia foi conduzida em três movimentos principais. O primeiro consistiu em internacionalizar o colégio cardinalício como nunca antes. O segundo, em ampliar a presença de religiosos de ordens, historicamente minoritários nas estruturas de poder do Vaticano. O terceiro, em privilegiar a nomeação de cardeais mais jovens, capazes de permanecer como ativos ativos por muitos anos.

internacionalização do colégio cardinalício foi o eixo mais visível desse redesenho institucional. Ao longo de 12 anos, Francisco nomeou 108 dos 135 cardeais participantes, o equivalente a cerca de oitenta por cento do colégio. A composição final do conclave de 2025 reuniu cardeais de 71 países, tornando-se a mais diversa da história da Igreja. Não se tratou apenas de ampliar geografias, mas de alterar o modo como se configuraram as formas de autoridade e as alianças dentro da instituição. A hegemonia europeia cedeu espaço a um mosaico global, em que nenhuma região tinha o controle absoluto, mas todas passaram a ter peso e poder de veto.

Essa transformação processou uma mudança na própria pergunta que tradicionalmente antecede os conclaves. Em vez de “quem será o próximo papa?”, o cenário de 2025 impôs outra formulação: “quais geografias da Igreja disputarão sua legitimidade simbólica e institucional?”. O que se revelou foi menos a ascensão de indivíduos e mais um rearranjo estrutural iniciado por Francisco.

A Ásia se destacou como o bloco mais coeso, resultado de décadas de prática pastoral em contextos de pluralismo religioso e de um episcopado habituado ao diálogo inter-religioso. A Federação das Conferências Episcopais Asiáticas consolidou uma cultura de colegialidade, e nomes como o do cardeal Luis Antonio Tagle, das Filipinas, expressaram esse perfil de Igreja mediadora e discreta, afinada ao estilo promovido por Francisco. O continente africano apresentou um crescimento impressionante em número de fiéis e vocações, além de se afirmar como interlocutor importante entre blocos, ainda que com divergências internacionais.

Já na Europa, embora numericamente, perdeu a condição de julgado natural da eleição. Italianos, alemães, franceses e poloneses apresentaram agendas pouco convergentes e capacidade limitada de articulações em bloco. A América Latina, em tese a maior força demográfica do catolicismo, chegou ao conclave fragmentada: o Brasil sem uma liderança articuladora, a Argentina isolada e o México dividido entre lealdades locais e vínculos com Roma. O resultado final dessa configuração foi a imposição de pactos amplos para qualquer escolha. A Igreja, mais do que nunca, expressou-se como um corpo global.

As chances

O segundo movimento estratégico de Francisco foi ampliar a presença de membros de ordens religiosas no colégio cardinalício, algo sem paralelo na história recente da Igreja. No conclave de 2025, um quarto dos cardeais participantes pertenciam a congregações religiosas. Capuchinhos, salesianos, dominicanos, agostinianos, jesuítas, franciscanos e outros passaram a compor, de maneira decisiva, o corpo eleitoral do sucessor de Francisco. Essa mudança não foi acidental. Ela responde a uma concepção de Igreja em que a autoridade se ancora mais na vivência comunitária e na missão do que na ocupação de cargas administrativas.

A diferença de formação e experiência entre religiosos de ordens e clérigos diocesanos ajuda a entender essa escolha. Padres religiosos vivem sob votos de pobreza, castidade e obediência, seguem regras próprias e respondem aos superiores eleitos. Sua prática pastoral se define pela itinerância, pelo serviço e pelo contato direto com as comunidades locais. Já os diocesanos, vinculados de forma permanente a uma igreja local, ocupam funções indiretas, voltadas à gestão territorial e à administração de estruturas fixas.

Ao inserir esse grupo ampliado no centro do processo sucessório, Francisco diversificou as trajetórias e modos de pensar a liderança na Igreja. Os critérios de escolha parecem menos direcionados à projeção institucional e mais ao reconhecimento de experiências vividas em situações de pastoral fronteiriça. Os religiosos são, por formação, menos inclinados a alinhar-se a blocos ou correntes fixas e mais habituados a deliberar em pequenos círculos de consulta e reflexão coletiva. Esse perfil atenuou, em parte, a lógica polarizada que há anos marca as disputas internas do catolicismo.

Ao fazer da vida religiosa uma matriz legítima de liderança, situada uma mudança de longo prazo na gramática interna da autoridade eclesial. Essa foi uma de suas formas mais discretas e, ao mesmo tempo, mais eficazes de influência sobre o futuro da Igreja. Se o elemento ampliação da presença de religiosos consolidou uma diversificação de perfis, o terceiro movimento caiu sobre um menos visível, mas decisivo: a gestão do fator etário.

Ao nomear um número elevado de cardeais em faixas etárias mais baixas, o papa argentino buscou garantir que sua influência pudesse passar não apenas este conclave, mas possivelmente o seguinte, caso o eleito fosse um cardeal mais velho, não indicado por ele. A juventude relativa do colégio cardinalício de 2025, em comparação com os conclaves anteriores, não foi casual. Ela traduziu a intenção de criar um corpo eleitoral capaz de sustentar, por mais tempo, algumas das prioridades de sua visão pastoral.

A variável etária se tornou, assim, um fator estratégico do processo sucessório. Se a eleição de um papa muito jovem, como foi o caso de João Paulo II aos 58 anos, parecia atraente, tampouco se imaginava um retorno a pontificados breves, marcados pela fragilidade da idade avançada. O colégio se orientou a buscar um perfil intermediário. A faixa considerada mais adequada concentrou-se nos nascidos entre 1951 e 1960, combinação compensada para garantir estabilidade, continuidade institucional e, ao mesmo tempo, evitar um papado demasiadamente longo.

Mais do que a escolha de nomes específicos, o que essa composição indicou foi uma forma peculiar de intervenção de Francisco: moldar o contexto mais do que o resultado final. O tabuleiro foi montado com precisão, mas a jogada estratégica ainda dependia da dinâmica própria do conclave.

O relógio de xadrez

Antes mesmo de iniciar formalmente o processo de escolha, o colégio cardinalício deu o primeiro sinal de que o caminho até o novo pontificado exigia prudência. A decisão de adiar o início do conclave para o dia 7 de maio, dois dias além do previsto, não foi apenas uma formalidade litúrgica. Refletiu uma leitura precisa do cenário. Diante de um corpo eleitoral mais amplo e diverso do que em qualquer outra eleição anterior, ganhar tempo significativo criar margem para escuta, reduzir esforçado e ampliar a chance de um entendimento mínimo entre blocos.

Em um colégio marcado pela pluralidade geográfica, cultural e teológica, o adiamento buscou evitar que a falta de consenso produzisse um conclave longo e desgastante. O gesto traduziu, paradoxalmente, uma tentativa de acelerar a convergência. A heterogeneidade, promovida pela própria reconfiguração promovida global por Francisco, impunha como primeiro desafio a necessidade de estabelecer pontes antes de qualquer votação

O adiamento do início do conclave também antecipou a complexidade do jogo que seria disputado. A leitura mais comum na imprensa internacional, reduziu o processo a um debate entre “progressistas” e “conservadores”, mostrou-se rapidamente prático. Esse enquadramento, familiar à lógica da política secular, oferece uma chave simplificadora, mas pouco útil para descrever as transferências internas da Igreja. A dinâmica que se desenhou na Capela Sistina não reproduziu os binarismos da cultura política ocidental.

As divisões reais emergiram menos como disputas ideológicas e mais como debates eclesiológicos. O centro das divergências não esteve em categorias como esquerda ou direita, mas em visões distintas sobre como a Igreja deve organizar sua autoridade, sua presença no mundo e a relação entre doutrina e prática pastoral.

Três linhas de tensão atravessaram o processo. A primeira girou em torno da ideia de sinodalidade, entendida como proposta de uma Igreja menos centralizada em Roma e mais atenta às vozes locais. Para muitos cardeais, especialmente da Ásia e da África, a sinodalidade se apresenta como um caminho para tornar a ação pastoral mais conectada com as realidades concretas. Outros, com maior vínculo à tradição curial, temeram que essa lógica fragilizasse a unidade institucional.

A segunda tensão concentra-se na natureza da autoridade eclesial. A constituição Praedicate Evangelium , promulgada em 2022, buscou descentralizar a estrutura vaticana e ampliar a participação de leigos e conferências episcopais. Esse movimento, porém, trouxe leituras ambíguas. Para alguns, indicado para uma modernização necessária da gestão eclesial. Para outros, correu o risco de transformar o papel pastoral do episcopado em uma função predominantemente administrativa.

Por fim, a terceira fricção se expressou na relação entre fidelidade doutrinal e abertura pastoral. Francisco havia reposicionado essa questão no centro do debate com textos como Amoris Laetitia (sobre a família ) e Fiducia Supplicans (sobre a vitória de casais em situações irregulares). O desafio colocado ao colégio foi o de conciliar, sem contradição, a preservação do ensino moral da Igreja com a necessidade pastoral de acolhimento em situações irregulares ou de vulnerabilidade social. Nessas encruzilhadas, os alinhamentos atravessaram blocos geográficos e culturais. A eleição não se deu entre dois projetos antagônicos, mas entre interpretações distintas sobre como sustentar a identidade católica em um mundo em transformação acelerada.

O vencedor

O conclave de 2025 foi a apoteose de uma estratégia há muito construída. Durante doze anos, Francisco moldou o colégio cardinalício para configurar uma Igreja menos centrada na Europa, mais plural, com presença inédita de religiosos de ordens e inclusão calculada de cardeais mais jovens. O resultado não foi a imposição de um nome, mas a construção de um equilíbrio cuidadosamente arquitetado entre tradição e inovação, unidade e diversidade, autoridade e escuta.

Foi assim que, em 8 de maio de 2025, o cardeal agostiniano Robert Prevost se tornou Papa Leão XIV. O pertencimento à Ordem de Santo Agostinho ajuda a compreender certos traços do seu percurso e estilo pastoral. Trata-se de uma ordem marcada pela ênfase na vida comunitária, na autoridade colegiada e na formação intelectual contínua. Agostinianos são formados em contextos de escuta e deliberação compartilhada, pouco afetados a centralismos. A longa experiência de Prevost como superior da ordem e como missão no Peru sugere uma liderança moldada mais pela escuta e pela gestão colegiada do que por disciplinas carismáticas ou gestos de autoridade solitária. Nascido em 1955, chegou ao papado aos 69 anos, onze anos mais velho que João Paulo II quando eleito e nove anos mais jovem que Bento XVI.

A idade de Leão XIV foi, em si, uma declaração de força. Ao optar por um papa ainda jovem para os padrões vaticanos, os cardeais sinalizaram um gesto de confiança em sua própria decisão. Escolher alguém que possa durar é afirmado, com clareza, que não se trata de um pontificado de transição, mas de consolidações. A escolha revelou o desejo de um colégio que busca prolongar sua influência para além de uma única sucessão.

Americano de nascimento, mas formado e pastoralmente identificado com a América Latina, Leão XIV rompeu expectativas. Tornou-se o primeiro papa norte-americano da história, mas, ao surgir na Praça de São Pedro, falou em espanhol, não em inglês.

Sua trajetória combina dois atributos centrais para o novo ciclo: longa experiência pastoral em contextos periféricos e sólida capacidade de articulação institucional. Missionário no Peru por três décadas, bispo em Chiclayo e delegado apostólico em dioceses em crise, Prevost construiu sua audiência pela escuta paciente e pela reorganização discreta de estruturas locais. Nomeado cardeal em 2023 e prefeito do Dicastério para os Bispos, foi preparado discretamente para este momento.

O nome escolhido reforça o gesto. Ao adotar Leão XIV, conecta-se ao legado de Leão XIII, autor da Rerum Novarum (1891), que lançou as bases da doutrina social da Igreja para o século 20. Essa doutrina sistematizou a posição católica diante das questões do trabalho, da justiça social e da propriedade privada, marcando a entrada da Igreja nos debates sobre a modernidade econômica e política. Como Leão XIII, o novo papa parece indicar que sua intenção guiará a Igreja na travessia definitiva para o século 21, confirmando as urgências e contradições do tempo presente. Como Leão XIII, Leão XIV não pretende romper com a tradição, mas buscar uma presença eclesial capaz de habitar as transformações sociais sem se dissolver nelas.

Leão XIV carrega, porém, particularmente próprio. Não corresponde ao perfil europeu que parte da Cúria esperava, nem à expectativa de um papa originário da periferia global. Americano de nascimento, optou pela cidadania peruana e construiu sua trajetória pastoral na América Latina. Seu estilo mais reservado e menos gestual o diferencial de Francisco. É conhecido por posições firmes em relação à chamada “ideologia de gênero” e adota maior cautela frente ao reconhecimento de famílias homoafetivas. Assim se expressa a complexidade da Igreja Católica, resistente a ser capturada por leituras simplificadoras do progressismo ou conservadorismo.

A biografia de Prevost também não escapou de controvérsias. Ainda como bispo e superior religioso, fizeram críticas públicas sobre a sua atuação em casos de abusos sexuais, incluindo acusações de acobertamento e omissão. Esses episódios, que geraram reações dentro e fora da Igreja, agora se tornam parte do terreno instável que terá de atualizar como papa.

Resta saber se Papa Leão XIV será capaz de, em algum momento, discordar do bispo Prevost que foi.

A eleição de Leão XIV encerra um ciclo e inaugura outro, sem ruptura, mas não sem desafios. A Igreja Católica inicia este novo pontificado ainda atravessado por incertezas: redefinir sua presença global em tempos de crise da democracia, restaurar uma renovação institucional abalada por escândalos e sustentar a forte tensão entre tradição e adaptação pastoral. Francisco preparou o tabuleiro, escolheu as peças, passou o básico para um dos que preparou e cerrou sua partida. Agora cabe ao Leão XIV fazer seus primeiros movimentos.


*Rodrigo Toniol é antropólogo, professor da UFRJ e colunista da Folha. É autor dos livros 'Espiritualidade Incorporada' (Zouk, 2022) e 'Uma Encruzilhada Modernista', entre outros.



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