"Move fast and break things" (mexa-se rápido e quebre coisas), o lema atribuído ao Facebook de Mark Zuckerberg, quem diria, acabou no Minhocão.
Num arroubo de agilidade digno do Vale do Silício, a Prefeitura de São Paulo ligou máquinas e quebrou calçadas sob o elevado João Goulart, apelidado de Minhocão, para ali fazer vagas de estacionamento. O motivo alegado pela administração era coibir o descarte de lixo no local, o mesmo onde há anos moradores de rua puseram barracas e colchões.
"Ali embaixo a gente limpa e o pessoal suja de novo. Os próprios prédios desovam restos de construção [no espaço]. Precisamos de uma política pública para resolver isso", afirmou o vice-prefeito Ricardo Mello Araújo (PL) à coluna Mônica Bergamo na sexta (25). Mello Araújo assumiu a prefeitura durante viagem do titular, Ricardo Nunes (MDB), que terminaria no último dia 1º.
No título, a coluna afirmava que "vice-prefeito de SP vai testar bolsão de carros no Minhocão para afastar população de rua e evitar acúmulo de lixo". Três dias depois, a obra já era realidade. A notícia continuou saindo apenas na coluna, ainda sem repercussão em outras áreas da reportagem: "Vice-prefeito de SP começa a adaptar Minhocão para estacionamento, e vereadores acionam Justiça".
A Folha custou a enviar fotógrafo próprio para documentar o feito e demorou a fazer um mapa dos pontos de intervenção. Moradores de prédios acusados pelo vice-prefeito de despejar lixo no local não foram ouvidos. Moradores de rua, tampouco.
Eram incompreensíveis a demora do jornal (e da concorrência) e a ausência de um material mais robusto sobre a intervenção. No caso da Folha, a gravidade era maior pela proximidade física –a obra acontecia a poucas quadras de sua sede.
O Minhocão, porém, não está circunscrito a essa área. Ele afeta a cidade toda e representa uma discussão urbanística muito mais ampla. O colunista Mauro Calliari lembra que o elevado "mexe com simbolismos. A cicatriz da década de 1970 mira num futuro que nunca chegou e oblitera um pedaço de nossa história. O monstro de concreto eleva os carros e rebaixa as pessoas".
Passado o susto inicial, a cobertura ganhou alguma tração, mas continuou fragmentada. A Folha mostrou que a própria CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) fizera ressalvas à proposta de criar vagas embaixo do Minhocão, depois de noticiar que a intervenção estava sendo planejada "desde 19 de março com participações da Subprefeitura da Sé, Secretaria de Transportes e CET".
A confusão é grande. Ainda há muito a ser respondido e, sobretudo, questionado.
Há a bizarrice política, que o jornal expôs e na qual começou a se aprofundar. "Ao optar pelo bolsão, Araújo diz que não foi preciso conversar com Nunes. ‘O prefeito está a par de tudo, ele chegou a defender a ideia de fazer um jardim, assim como tem outras possibilidades, mas optamos pelo bolsão de estacionamento’, afirma". A aparente desautorização do prefeito fatalmente leva a discussão para 2026.
Mas, em 2025, parece ainda mais bizarra a iniciativa que vê nos carros a solução para impedir o descarte irregular de lixo e afastar a miséria humana. Vai na contramão de tudo o que tem se provado razoável no urbanismo há décadas. Como fica esse aspecto?
A região central de SP também é palco, neste momento, de uma operação de retirada da favela do Moinho, além de ser alvo permanente de projetos de "revitalização" inócuos. Há um quadro bem mais complexo do que fazem parecer as 16 vagas do vice-prefeito.
Nesse ponto, o jornal emperrou e ficou aquém do que poderia entregar. A cobertura de urbanismo soa anestesiada e sincopada, talvez efeito colateral do preconceito no jornalismo contra "buraco de rua", tido como assunto insignificante e destinado a repórteres iniciantes. Entre espasmos e clichês, o assunto se perde e acaba não tratado a fundo.
No caso específico do Minhocão, faltam ainda dados elementares como o custo da obra. Falta também explicar qual terá sido o milagre, numa cidade que mal consegue tapar os famigerados buracos de rua, para que aparecessem recursos e disposição para uma obra viária da noite para o dia. A prefeitura já alegou que não reforma o Minhocão, carente de reparos, porque sua desativação está prevista para 2029.
O vice-prefeito respondeu às críticas ao seu estacionamento com um "pode ver no meu Instagram, a população da região está gostando". O jornal deveria ter levado a sério a ideia. Não de consultar o Instagram do vice-prefeito, mas de ouvir os moradores e outros envolvidos direta ou indiretamente na questão.
Na área de comentários do próprio jornal, a discussão tentou se inflamar. "Quando fizeram as ciclofaixas nos mesmos locais onde os moradores de rua dormem eu não vi todo esse chilique da imprensa e dos ‘ativistas’, a grande virtude dessa obra é mais uma vez revelar a hipocrisia dessa gente", escreveu um leitor. Mas não foi muito além disso.
A sorte é que a Folha tem um Antonio Prata para afirmar que, "se morasse ali, não seria hipócrita. Adoraria a medida". Mas, segue ele, os moradores de rua deslocados pelas vagas para carros "continuarão na rua, em outra rua". É preciso que a cobertura jornalística continue desse ponto também.
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