Há pouco mais de dois anos, Enzo, hoje com quatro anos, vivia no hospital, uma internação depois da outra, sempre por complicações respiratórias. A mãe, Mariana da Silva Moura, 35, conta ter ouvido de médicos, mais de uma vez, a mesma pergunta: "o quarto em que ele dorme é bem ventilado?". Não era.
Mariana, o marido e os três filhos –duas meninas mais velhas do que Enzo– moraram durante quase seis anos em uma ocupação na região central de São Paulo, no bairro Campos Elíseos. O espaço, antes destinado a um comércio, ficava sobre o sistema de escoamento de esgoto do prédio e só tinha uma janela, que era voltada para o interior do residencial.
"Eu tenho muito a agradecer por ter conseguido morar lá, mas era complicado. Já teve chuva que a caixa de esgoto transbordou dentro do quarto. Era tudo espremido, úmido. Nós estávamos sempre procurando, mas o aluguel é muito caro", diz.
Em 2019, a família de Mariana foi selecionada por um projeto que tenta democratizar o acesso à moradia por meio de compra ou comodato de casas e apartamentos em situação de abandono ou que favoreçam uma negociação.
Os aluguéis, voltados a famílias de baixa renda vivendo em cortiços, ficam entre 30% e 50% mais baratos do que os praticados pelo mercado. O imóvel em que Mariana vive tem 47 metros quadrados e foi cedido ao Fundo Fica por meio de comodato. Uma reforma foi bancada com o dinheiro de doações.
"Mudou totalmente nossa vida, em muita coisa. Tem segurança para o meu marido, que sai cedo para o trabalho, o espaço, o conforto. Sem contar a felicidade das minhas meninas, que agora têm o cantinho delas", diz Mariana.
O filho, Enzo, também já não demanda tantas idas ao hospital. "Antes ele vivia mais em casa e no hospital do que na creche."
A família paga R$ 343 pelo aluguel e outros R$ 467 pelo condomínio. Para se ter uma ideia do contraste: o aluguel de um apartamento de 48 metros quadrados na mesma rua em que a família vive pode chegar a R$ 2.300, segundo um agregador de anúncios imobiliários.
"O mercado de moradia, o mundo dos cortiços, é muito perverso. A pessoa está sempre no limite. O que nós queremos é desintermediar esses aluguéis e torná-los acessíveis", diz o diretor do Fica, Renato Cymbalista, para quem o modelo de propriedade não especulativa e com finalidade social precisa ser difundido no Brasil.
Em novembro, terão novos endereços três famílias selecionadas em um novo braço de atuação do Fundo Fica, batizado de Compartilha.
No lugar do financiamento via doações –que podem ser de diversos valores–, nesse segmento o fundo propôs a captação por meio de investidores que receberão retorno de 4% ao ano durante dez anos.
Esse percentual, diz Cymbalista, virá do pagamento dos aluguéis e garantirá que os investidores não percam dinheiro –ainda que, em muitos momentos, esse retorno fique abaixo da inflação.
As cotas foram de R$ 10 mil e o investimento será garantido pelo próprio imóvel –se algo der errado, ele é vendido e os valores serão devolvidos. Ao todo, R$ 325 mil foram captados.
Somados aos R$ 150 mil que o fundo colocou como investidor (dinheiro vindo de doações), os valores permitiram a compra dessa casa, localizada no Bom Retiro, e o levantamento de parte do dinheiro a ser usado em uma próxima casa.
Roberto Fontes, coordenador do Compartilha, diz que a seleção dos núcleos familiares que viverão no Bom Retiro está em fase final. Os três quartos da casa serão ocupados por famílias de até quatro pessoas –grupos chefiados por mulheres foram priorizados na escolha.
"Nos cortiços, essas pessoas ficam expostas à violência, há muita insegurança, com consquências na saúde. Para o projeto, elas não precisam de fiador, não precisam de comprovante de renda", diz.
Os gestores envolvidos com o projeto destacam também a segurança jurídica dos aluguéis por meio do Fica e do Compartilha. Todos os moradores têm contratos de locação cobertos pela lei do inquilinato, proteção inexistente em cortiços e pensões.
Hoje, o alcance do projeto ainda é limitado. Com o desenho do Compartilha, de investimento social, a expectativa do Fica é conseguir aumentar o número de famílias atendidas. Ainda assim, nos próximos quatro anos, o projeto terá chegado a 50 famílias.
Renato Cymbalista diz esperar que o fundo atraia a atenção do poder público para que iniciativas como o Compartilha possam ser incluídas na elaboração de políticas públicas.
Para ganhar escala, é necessário que haja dinheiro, principalmente, mas o Estado pode atuar desde a solução de burocracias e a regularização de imóveis, até privilegiar o acesso em leilões de espaços desocupados.
Muitos dos imóveis da região central têm propriedade múltipla e as negociações só podem ser fechadas se toda a papelada estiver em dia. São meses até que todas as certidões estejam prontas.
"Esperamos que a gente possa ser levado a sério na elaboração de políticas. Há uma quantidade enorme de pessoas que precisam de moradias, mas cuja renda não chega a ser suficiente. Moradia regular precisa ser uma prioridade", afirma Cymbalista.
Não se sabe quantos são, hoje, os cortiços em São Paulo. Em 2002, a Seade (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados) estimava 160 mil famílias vivendo em 24 mil moradias multifamiliares na zona central da capital paulista.
O programa de atuação em cortiços do governo de São Paulo descreve essas habitações como "subdivididas em cômodos alugados informalmente, situados em áreas urbanas dotadas de infraestrutura completa, e que apresentam condições físicas precárias, uso coletivo das instalações sanitárias e sobreposição de funções sem qualquer privacidade."
Em 2017, a prefeitura de São Paulo chegou a reservar orçamento para um censo dessas moradias, mas a pesquisa não andou.