Cinco de outubro de 1966: há 50 anos foi lançada a pedra fundamental do câmpus da Universidade Estadual de Campinas. Foi concebida por dois médicos: o governador Ademar de Barros e, em especial, Zeferino Vaz. A Unicamp tornou-se a terceira filha universitária do Estado de São Paulo. Tendo galgado de forma rápida o posto de uma das mais importantes instituições de ensino superior do Brasil, ela chega ao cinquentenário com desafios enormes e conquistas impressionantes.
Leandro Karnal
09 Outubro 2016 | 02h00
O conceito de universidade completou mil anos no Ocidente cristão. Bolonha (Itália), no século 11, foi a primeira instituição europeia de ensino superior. Havia similares mais antigas no mundo islâmico e oriental.
Universidades sempre foram parte (nunca o todo) da produção e transmissão do conhecimento. William Shakespeare nunca sentou no banco de uma. Espinosa viveu entre lentes no seu sótão batavo. Oswald de Andrade não conseguiu ser aprovado em concurso para o quadro docente universitário. O mercado, as empresas, os gênios isolados, os artistas autônomos, as instituições religiosas e obscuros bares acolhem, com generosidade, outras cotas da incansável inventividade humana.
Vou atenuar a iconoclastia do parágrafo anterior: nomes fundamentais do pensamento, como Tomás de Aquino e Einstein, engendraram parte das suas ideias dentro de grandes instituições de ensino superior. Se houve muitos gênios extramuros, também devemos ressaltar que o grosso da transmissão da técnica que possibilita a existência de engenheiros, médicos, químicos e historiadores é, hoje, quase exclusivamente universitária.
Sou filho da universidade e inserido num mundo específico, o das Humanas. Somos uma tribo exótica, que desperta certo interesse e alguma rejeição. Exemplifico: estive em determinado concurso para professores numa instituição federal de São Paulo. Por uma série de fatores, o presidente da banca era um médico. Os outros colegas julgadores eram historiadores. Diante da nossa prolongada discussão sobre um conceito na prova de uma candidata, o presidente exclamou, impaciente: - Se eu demorasse tanto tempo para decidir algo, meus pacientes já teriam morrido! Expliquei ao renomado doutor: - A nossa felicidade é que somos historiadores, todos os nossos pacientes já estão mortos. Ele riu. Éramos estranhos, mas bem-humorados...
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Saiamos do meu igarapé de devaneio e voltemos ao rio principal. Existe, hoje, como parte de um momento muito específico, um anti-intelectualismo crescente. Ele sempre existiu em ditaduras como o nazismo ou na Revolução Cultural Chinesa: uma desconfiança do caráter perigoso e pouco prático do pensamento especulativo. O anti-intelectualismo é uma mistura de irracionalidade e autoritarismo. Não se trata apenas de reconhecer o que já afirmei (a universidade não é a única a produzir conhecimento), mas de uma negativa de que ela seja útil ou focada no conhecimento.
O símbolo do ódio à reflexão é a queima pública de livros. As fogueiras ocorreram tanto na China imperial como na socialista. A mais famosa cena foi a 10 de maio de 1933, quando os nazistas queimaram milhares de livros ditos “semitas” como os de Freud ou Thomas Mann. Começava, então, a cumprir-se a profecia de Heinrich Heine: onde se queimam livros, ainda se queimarão pessoas. Coisa de ditaduras? Nem sempre: no país das melhores universidades do mundo, os discursos de Donald Trump são a encarnação do anti-intelectualismo.
Por vezes, trata-se unicamente de ressentimento. Combate-se o que não se possui ou o que não se entende. Ataca-se por, no fundo, desejar ardentemente. Há muitas raposas a declarar as uvas distantes e inaptas ao consumo.
Identifico algo além de raposas ressentidas. Há uma onda de repulsa em relação aos questionamentos de paradigmas tradicionais. Existe uma vontade de associar o debate a uma guerra a valores pretensamente imutáveis e sagrados.
O anti-intelectualismo não é uma nova razão ou um combate aos argumentos racionais. Ele é uma forma de estar no mundo e recusa à ciência como o “estado atual dos nossos erros”, na acepção do universitário Einstein. Opõe a opinião à pesquisa, o saber desencarnado e individual ao árduo processo de verificar hipóteses e aprofundar temas. Formar um médico ou um filósofo implica anos de leituras, reflexões, práticas, debates. O universo da cada saber é vasto e ainda demanda o conhecimento de línguas e um esforço titânico para captar, compreender, associar, relacionar e aplicar os conceitos essenciais.
Como eu disse desde o começo, há saberes igualmente sólidos que não dependem da universidade, mas esses e aqueles dependem de esforço sistemático e longo. Não estou opondo o saber universitário ao conhecimento autônomo ou um erudito a um popular; mas o saber ao não-saber; a reflexão crítica e sistemática a uma espécie de “achismo” nascido de egos densos no ressentimento e rasos na reflexão.
Um dia, numa formatura na Unicamp, dividi com o professor Octavio Ianni o posto de paraninfo. Lá ouvi o cientista social dizer que a liberdade era a condição fundamental para pensar e que a universidade pública era um espaço privilegiado para isso. Por sugestão minha, a biblioteca do IFCH tem o nome do professor Ianni. Que os próximos 50 anos da Unicamp encontrem muitos professores como ele. Um bom domingo a todos vocês!
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