Rafael Mafei Rabelo Queiroz
06 Outubro 2016 | 08h23
por RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ*
O STF resolveu comemorar o aniversário da Constituição decidindo pela possibilidade de prisão após o segundo grau, mesmo pendentes recursos ao STF e STJ.
Falando em abstrato, não acho que seja, em si mesmo, atentatório à presunção de inocência um sistema em que a pena seja executada após a condenação em segundo grau. Há muitos países que assim fazem sem que as qualidades das suas justiças sejam contestadas.
Há, porém, duas particularidades no caso brasileiro.
A primeira: entre as diversas maneiras de regrar o equilíbrio entre presunção de inocência e início do cumprimento das penas, nossa Constituição, a aniversariante, optou pela mais protetiva para o acusado: diz, expressamente, que é necessário o trânsito em julgado. Não precisava ter dito, mas disse. Os recursos ao STJ e STF, como recursos que são, impedem o trânsito e, nos termos da letra fria da Constituição, o início do cumprimento da pena. Não basta a condenação em segundo grau.
A segunda: desde sempre, o entendimento prevalecente dado pelo STF a esse dispositivo constitucional afirmava exatamente isso que está escrito no parágrafo acima: recursos ao STF e STJ impedem o trânsito e, assim, o início do cumprimento da pena. Também aqui o STF poderia, desde o princípio, ter decidido de outra maneira, qualificando a natureza jurídica dos recursos aos tribunais superiores. Mas não o fez, embora provocado milhares de vezes há décadas, notadamente após a Lei 8.038 de 1990.
É relevante lembrar que, durante a presidência de Cezar Peluso, tentou-se fazer andar uma emenda constitucional, apoiada por ele, para transformar os recursos a tribunais superiores em ações rescisórias autônomas (PEC 15/2011). O objetivo era justamente compatibilizar a execução após a segunda instância com o dispositivo que só permite a execução da pena após o trânsito em julgado. O texto da PEC está disponível no portal do Senado e pode ser lido aqui.
O projeto, que está parado, era o reconhecimento do próprio tribunal de que essa mudança precisava de uma reforma constitucional. Na falta dela, o STF resolveu ter uma epifania jurídica ontem: o que sempre esteve certo “descobriu-se” errado.
O STF pode mudar sua posição? Pode, claro. Mas para isso precisa apontar por que as decisões anteriores estavam certas durante anos, mas estão erradas a partir de agora, sem que tenha havido qualquer alteração relevante no texto da lei ou nos fatos a que se aplicam – chamamos de “teoria do erro” os parâmetros que permitem identificar esses casos.
Esses “erros” devem limitar-se a situações restritíssimas e muito bem explicadas. Entendimentos jurisprudências, especialmente dos tribunais superiores, devem ser estáveis. Não podem ser alterados com a invocação de platitudes com as ditas ontem no plenário.
Mais do que a presunção de inocência, a concessão desse poder aos tribunais agride a segurança jurídica que os entendimentos jurisprudenciais nos devem fornecer. (Pergunte a um tributarista o que ele acha da volatilidade da jurisprudência do STJ para entender por que estabilidade é uma virtude.) Juízes e tribunais descompromissados com seus entendimentos históricos, que se permitem mudar de posição sob a justificativa de que “a sociedade quer” ou “bem da sociedade civilizada exige”, são menos controláveis quanto aos verdadeiros motivos de suas decisões. Por essa porta passam os reclamos da “sociedade de bem” quanto ao cumprimento de penas, mas passam também aquelas liminares inexplicáveis das quais a mesma sociedade benemérita desconfia.
As “demandas de justiça da sociedade brasileira”, esse ente mitológico tão invocado ontem no plenário, são um recurso tópico que o tribunal invoca quando lhe convém. Não nos deixemos tapear. Fossem elas genuinamente efetivas como determinantes decisórias, o STF teria de se comprometer com o fim dos 60 dias de férias para juízes, que todos os seus membros defendem. E o que dirá a mesma sociedade de bem em relação à extensão, por liminar que já dura mais de dois anos, do auxílio moradia a todos os magistrados do país, independentemente de regulamentação do CNJ? A cassação dessa decisão monocrática representaria também a prevalência da justiça sobre a chicana, tomando emprestado um bordão que vi sair da boca de alguns juízes após a decisão de ontem?
Conta outra STF.
O julgamento de ontem foi um clássico exemplo do rabo abanando o cachorro: o tribunal curvou a interpretação da Constituição para todo o Poder Judiciário brasileiro às conveniências de um conjunto restrito de causas, de que a Lava Jato é o maior exemplo.
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* É professor da Faculdade de Direito da USP e, de uns tempos para cá, tem dificuldade em convencer os seus alunos de que a Constituição não é apenas um estado de espírito.
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