segunda-feira, 5 de agosto de 2024

O cérebro da Rebeca é um assombro, Suzana Herculano-Houzel, FSP

 Só para constar, eu já ia sentar para escrever esta coluna sobre prata e bronze quando o zap da minha família fez o telefone vibrar com o spoiler: Rebeca Andrade levou o ouro olímpico no solo. Sem problemas. Spoiler desse calibre é muito bem-vindo, e assim minha segunda-feira começou com a tarefa árdua de ligar a tevê para me inteirar sobre os acontecimentos.

As duas Olimpíadas, de verão e de inverno, são eventos que eu adoro acompanhar pela explosão de habilidades fenomenais. Os danados dos gregos tinham razão lá na Antiguidade e a humanidade fez bem em instituir a versão moderna das Olimpíadas para celebrar, em um evento só seu, o que a persistência humana é capaz de alcançar. É inspirador descobrir do que a nossa espécie é capaz.

Claro que sempre tem um bocó de poltrona para desmerecer o brilho alheio, dizendo que é tudo "desvantagem injusta" devido à biologia que favorece os outros, menos o indivíduo na poltrona, que não se levanta para fazer o mesmo porque, pobrezinho, seus genes não ajudam. Nada disso.

A biologia que deu tronco, braços, pernas e um cérebro para integrar tudo a Rebeca Andrade e a todos esses esportistas que brilham em nossas telas não serviria de nada se não fossem as dezenas de milhares de horas de treino, sem as quais capacidades biológicas não se transformam em habilidades. O processo envolve inclusive a modificação da própria biologia conforme o uso, numa via auto-organizada de mão dupla.

As norte-americanas Simone Biles e Jordan Chiles homenageiam Rebeca Andrade no pódio em Paris - Gabriel Bouys/AFP

É assim que todas as habilidades humanas se desenvolvem. A base necessariamente é a capacidade biológica, de fato: os circuitos que permitem ao cérebro controlar o corpo, notar o novo estado, registrar ação e resultado como causa e consequência e gostar da combinação. Mas, daí em diante, o que acontece é resultado de repetição, repetição, repetição, que permite ao cerebelo começar a antecipar as consequências das ações do cérebro antes mesmo de ele mover um dedo.

É graças à prática que os circuitos do cerebelo têm a oportunidade de, por tentativa e erro, esculpir a si mesmos na forma de modelos internos que dirigem ações cujos resultados sensoriais escapam cada vez menos ao esperado. Só assim se fica de pé: se o cérebro esperasse o resultado de cada passo antes de dar o próximo, não duraríamos mais na vertical do que uma batata sobre dois palitos. Ficamos em pé porque o cerebelo aprendeu a antecipar as ações que mantêm o corpo estável.

Os saltos mortais "apenas" levam o processo ao extremo, mas só se chega a esse extremo de dar pulos, cambalhotas e piruetas e depois cair de volta de pé com muita, muita, muita oportunidade para tentativa e erro –e muita, muita, muita garra para cair e depois levantar e continuar tentando.

Por isso o cérebro da Rebeca é um assombro, merecedor das reverências de Simone Biles e Jordan Chiles no pódio (e das minhas lágrimas, sem pudor algum). Pouquíssimos de nós temos vontade e garra a ponto de dedicar os milhares de horas que preparam o corpo e o cérebro para o desempenho fenomenal. Simone e Jordan entendem perfeitamente.

Nada disso acontece, contudo, se não houver oportunidade primeiro. Que a glória merecidamente alcançada pela Rebeca apesar de todas as dificuldades no caminho traga não só inspiração como também mais oportunidades para os cerebelos de crianças brasileiras.

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Fazer piadas com mulher é como estar entre a cruz e a caldeirinha, Manuela Cantuária, FSP

 Minha avó me ensinou a expressão "entre a cruz e a caldeirinha". É o que se diz quando não há saída para uma situação. Pesquisando a origem da expressão, descobri que se refere ao moribundo que, no leito de morte, tem um crucifixo sobre a cabeceira e uma caldeirinha com água benta aos pés da cama.

Essa expressão costuma me assombrar enquanto escrevo. Isso acontece porque minhas histórias misturam dois ingredientes básicos: o gênero da comédia e o gênero feminino. E fazer piadas com uma personagem mulher é sempre estar entre a cruz e a caldeirinha.

De um lado, há uma pressão conservadora. Se essa personagem for adúltera, golpista, mentirosa ou arrogante, periga o público não gostar dela. Um herói masculino pode ser mulherengo e adorável. Já uma heroína homerenga é inconcebível. Primeiro, porque a palavra homerenga não existe, segundo, porque essa heroína seria considerada uma vilã.

Do outro lado, há uma pressão progressista. Se essa personagem for insegura, atrapalhada, passional, tomar péssimas decisões, rivalizar com outra mulher ou ser feita de trouxa, periga a crítica não gostar dela. Essa personagem precisa ser empoderada, independente e bem resolvida.

desenho de uma pessoa no leito de hospital tendo uma cruz pendurada na parede e uma calderinha no pé da cama.
Ilustração de Silvis para coluna de Manuela Cantuária de 5 de agosto de 2024 - Silvis/Folhapress

Duplamente encurralada pelo moralismo machista e pelo moralismo feminista, a personagem feminina é impedida de errar, ou seja, de viver sua própria comédia de erros.

Mas nem eu nem minha personagem precisamos sucumbir ao clichê de que uma mulher precisa sempre agradar. Se entendi bem, o objetivo do feminismo é nos libertar, não o contrário. E, para uma mulher, só tem um jeito de combater o mito da perfeição feminina: errando.

Muitos humoristas têm se posicionado sobre o fato de a "militância" e a cultura do cancelamento estarem cerceando nossa liberdade de expressão. Uma afirmação que considero ambígua, já que pode jogar contra nós ou a nosso favor.

Se for usada como justificativa para perpetuar preconceitos contra grupos minorizados, é uma cilada. Se for usada para nos lembrar que o humor é essencialmente amoral, subverte expectativas, ridiculariza ideais, provoca o riso e a reflexão, aí já é outra história.

E precisamos muito de outras histórias, com piadas e personagens mais humanas.

Muro na praia, ‘cópia da natureza’ e pedágio climático: o que é feito contra tragédias ambientais?, OESP

 s mudanças climáticas causam efeitos cada vez mais visíveis, como as enchentes no Rio Grande do Sul ocorridas em maio. Outro exemplo são as ondas de calor: em 17 de março, a sensação térmica no Rio de Janeiro chegou a 62,5°C, recorde histórico local. Quatro meses antes, uma jovem havia morrido após exaustão térmica no show da cantora Taylor Swift na cidade.

Pesquisas recentes mostram que todas as cidades precisam cortar suas emissões de gás carbônico até meados do século para limitar a alta da temperatura global a 1,5 ºC e evitar os piores impactos das mudanças climáticas. Com mais da metade da população mundial em áreas urbanas, elas são o epicentro da mudança de paradigma necessária para conter o aquecimento global e proteger a população de eventos extremos.

Em Buenos Aires, criação de corredores de ônibus e incentivo ao uso de bicicletas desafogaram o trânsito
Em Buenos Aires, criação de corredores de ônibus e incentivo ao uso de bicicletas desafogaram o trânsito • buenosaires.gob.ar

Mas quais medidas as cidades estão adotando para atingir esses objetivos? Esta série de reportagens do Estadão procurou as respostas mais variadas: tem cidade que nomeou um “secretário de calor” ou que estão fazendo muralhas para conter o avanço do mar, outras ainda adotaram o orçamento climático e algumas copiam a natureza para tentar evitar tragédias.



Inspiração para obras contra enchentes pode vir da natureza

● As soluções baseadas na natureza (SbN) são projetos de bioengenharia que buscam enfrentar desafios socioambientais usando princípios e processos inspirados nos ecossistemas naturais. Projetos como jardins de chuva, parques lineares e restauração de encostas são ações preventivas que mimetizam a natureza e ajudam a tornar as cidades menos vulneráveis.

Taba Benedicto/Estadão


“As cidades foram ocupadas de maneira desordenada, sem respeito às bacias hidrográficas. As soluções baseadas na natureza podem atuar nesse cenário, mas a filosofia é trazer uma mudança de mentalidade para evitar que haja o problema.”
Fábio Lofrano,
professor de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Escola Politécnica da USP

Uma dessas soluções são os jardins de chuva ou sistemas de biorretenção. Como o próprio nome indica, são espaços instalados nas ruas para absorver parte das chuvas, diminuindo impactos dos grandes volumes. A água que costuma se acumular no asfalto – o escoamento superficial - permeia o solo e segue para uma rede de drenagem subterrânea. É como se fosse um reservatório para o excesso de água.


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Muralhas para conter o avanço do mar sobre a cidade

● Cidades do litoral brasileiro podem ser inundadas pela água do mar nas próximas décadas se o aumento na temperatura da Terra mantiver o ritmo atual. Essas localidades buscam medidas de prevenção e mitigação de possíveis danos. Os planos de ação vão desde o corte na emissão de gases até a instalação de sistemas de monitoramento a alertas de eventos extremos. O Rio de Janeiro, maior cidade a ser afetada, por exemplo, fez parceria com a Nasa, a agência espacial americana, para monitorar e se antecipar ao avanço do mar.





Algumas cidades já construíram barreiras artificiais para conter o aumento no nível do mar. Em Santos, a região da Ponta da Praia pode ser inundada como consequência do aumento no aquecimento global a 1,5ºC. Se a temperatura global subir 3ºC praticamente todas as praias e parte da área urbana santista ficariam sob a água. A prefeitura instalou uma barreira de geobags – grandes sacos de material geotêxtil cheios de areia – para evitar que as ressacas avancem sobre a área urbana na Ponta da Praia. No local estão dispostos 49 sacolões, em uma extensão de 275 metros. O processo, iniciado em 2018, será expandido às praias do Embaré e da Aparecida, em parceria com a Autoridade Portuária, que administra o Porto de Santos.

“Algumas ilhas do Oceano Pacífico já estão parcialmente submersas em função do aumento do nível do mar. A contenção exige obras de alto custo, o que deve ser planejado a médio prazo para as regiões costeiras mais críticas em termos da elevação do nível do mar. Isso caracteriza a adaptação às mudanças climáticas, que deverá ser incluída no planejamento das cidades.”
Segen Estefen,
diretor-geral do Instituto Nacional de Pesquisas Oceânicas (Inpo)



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‘Secretário de calor’ para conter as mudanças climáticas

● O que as grandes cidades fazem em comum para tentar conter o aquecimento global e amenizar o efeito das mudanças climáticas? A reportagem perguntou a especialistas quais as medidas mais frequentes. Uma delas, adotada por cidades como Buenos Aires e Cidade do México, é ampliar e melhorar as linhas de ônibus e oferecer ciclovias, para tentar convencer os moradores a se deslocar de bicicleta. Buenos Aires não só criou linhas de BRT que ligam toda a cidade como ampliou as ciclovias. Segundo o site da prefeitura, a capital argentina tem hoje dez linhas de BRT e, de acordo com o Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), 128 quilômetros de corredores.

Solarisys/AdobeStock


“Não só conseguiram implementar linhas de BRT em toda a cidade, como transformaram muitas das viagens feitas na região central e em outras áreas em mobilidade ativa (deslocamentos a pé ou por bicicleta).”
Pablo Lazo,
diretor do WRI Ross Center por Cidades Sustentáveis

Londres, por sua vez, adotou zonas de emissão baixa e ultrabaixa, que abrangem a maior parte da região metropolitana e cobram uma taxa diária de £12,50 (cerca de R$ 85) pela circulação de veículos poluentes. As zonas são válidas 24 horas por dia e 7 dias por semana. Miami criou o cargo de “chief heat officer”, espécie de secretário de calor. Outras seis cidades do mundo já adotaram essa medida. O ocupante desse cargo tem a função de sensibilizar a população sobre riscos de temperaturas altas, identificar as comunidades e bairros mais vulneráveis e melhorar o planejamento e a resposta às ondas quentes.


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Rio adota orçamento climático

● Em novembro do ano passado a prefeitura do Rio de Janeiro aderiu ao orçamento climático, iniciativa apoiada pelo C40 (grupo composto por 96 cidades, que se reuniu para debater e propagar medidas de combate à crise climática). Ao todo, só 12 municípios do mundo adotam esse projeto - o primeiro foi Oslo, e o Rio é o único na América Latina. Todos esses municípios estão comprometidos com duas metas de longo prazo: até 2030, reduzir em 20% a emissão de gases estufa ante 2017, e até 2050 zerar a emissão desses gases. Líder na iniciativa, adotada em 2016, Oslo já deve chegar perto de zerar a emissão desses gases em 2025.

Pedro Kirilos/Estadão


“Os três principais produtores de gases de efeito estufa no Rio são, pela ordem, os resíduos orgânicos, o transporte e a indústria.”
Tainá de Paula,
ex-secretária municipal de Meio Ambiente e Clima do Rio

Entre as medidas, a capital norueguesa eletrificou sua rede de transporte público e ampliou a malha cicloviária. Também tem investido na produção de biogás na usina de Klemetsrud. A ideia tem sido trabalhar com objetivos de curto prazo para os cortes de emissões, de forma a conseguir resultados mais amplos. No Rio, uma das iniciativas é a criação de parques urbanos, como o Rita Lee. Outra, para tentar reduzir as emissões referentes aos resíduos orgânicos, foi criar a Fábrica Verde, centro de reciclagem de diversos materiais inaugurado em abril em um prédio de 6 mil m² na zona norte. Um dos produtos transformados na fábrica é o coco verde, cujo consumo é comum na orla – a unidade tem capacidade para processar até 80 mil quilos do produto por mês.


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Reportagem: Fabio Grellet, Gonçalo Junior, José Maria Tomazela e Juliana Domingos Lima; Editora de infografia: Regina Elisabeth Silva; Editores-assistentes de infografia: Adriano Araujo e William Mariotto; Designer multimídia: Lucas Almeida.

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