domingo, 4 de fevereiro de 2024

Muniz Sodré - Desinformação não é mais palavra-chave: o tempo é de pós-informação, FSP

 Agora que boato, rumor e fake news, cartas viciadas do jogo político, ganharam status oficial de ameaça às eleições, vale reexaminar o estatuto do falso. Ponto de partida é a suspeita de jornalistas americanos de que a investigação aprofundada sobre fake news possa contribuir para fortalecê-las, na medida em que a busca da refutação não vá além da própria internet, seu berço. Resumo da suspeita: como pode a mentira desmentir-se?

No século 17, o moralista francês La Bruyère descomplicava a questão: "O contrário das notícias que correm costuma ser a verdade" ("le contraire des bruits qui courent, c´est souvent la vérité"). Tempo depois, a lógica pediu a palavra. O inglês Conan Doyle pôs na boca de seu Sherlock Holmes que "quando se elimina o impossível, o que fica, por mais improvável, é a verdade."

Com La Bruyère, notícia era ruído, longe da verossimilhança que a imprensa moderna elevaria a regra profissional. Factoide e boato foram logicamente descartáveis, mas sem abominação moral. A famosa e falsa narrativa radiofônica de invasão alienígena, eticamente condenável, não impediu Orson Welles de despontar para a glória.

Ilustração fotográfica mostra a palavra fake news - Sebastien Bozon/AFP

A questão atual, complexa como digerir um elefante, não se resolve por fact-checking, um mata-formigas. Falsificam-se as próprias checagens. Problema mesmo é a naturalização do fluxo artificial, em que mentiras e deep-fake são linguagem de outra realidade, superposta ao real-histórico. Na rede, a substância do que se diz não pertence à consciência psicológica, mas à potência lógica da máquina, que a ultrapassa. Verdade é de menos, basta a aderência tátil do sujeito.

O que vigora na empiria científica, assim como no senso comum ilustrado, é a verdade positivista dos fatos. De certo modo, entretanto, a rede refaz o mundinho de La Bruyère, onde bastaria colocar-se a contrário dos rumores para encontrar um evento moralmente plausível.

Hoje, é insuportável a desigual realidade externa, da qual se tenta fugir. Os fatos exaurem a consciência comum, fazendo da mentira droga de escape. Verdade é fumaça offline, cara ao espírito liberal, mas reclame hipócrita na politicagem eleitoral.

Desinformação não é mais palavra-chave: o tempo é de pós-informação, o mais puro e obsceno controle social. Não há limites para a inteligência artificial generativa. Já é banal desconstruir a coerência factual pela fragmentação dos acontecimentos, redefinindo notícia como uma fogueira emocional que cada adicto está livre para alimentar na mídia social com seu pedaço de lenha moral.

Saber que informação online é o caos do sentido ao menos relativiza o falatório, em favor de contramedidas cívicas. Na real, Moraes cobra a regulamentação das redes, Lula derruba as grades da praça.

Ruy Castro Rita Lee, a romântica de Cuba, FSP

 Em coluna recente, "Quem ‘traiu’ o quê e com quê" (15/1), falei de compositores consagrados por um ritmo de música —digamos, Rita Lee, a rainha do rock— que às vezes o "traíam" com outro ritmo. E dei como exemplo que "Mania de Você", marca registrada de Rita, era um bolero. Leitores estranharam e um deles escreveu: "Incrível, nunca tinha pensado nisso!".

E se eu lhe dissesse que não apenas "Mania de Você", mas "Caso Sério" e "Baila Comigo", outros sucessos de Rita, também são boleros? A letra de "Caso Sério" até cita a orquestra Românticos de Cuba, cujos discos de boleros animaram milhares de festinhas de apartamento nos anos 1960. Ninguém sabia então que os Românticos de Cuba não existiam —eram a Orquestra Tabajara, de Severino Araújo, sob pseudônimo.

O surpreendente talvez seja descobrir que a estrela de um gênero tão rebelde e contestador como o rock, como acreditam os seus praticantes, tenha aderido a um ritmo considerado careta e cafona, e que, nos anos 1970 e 1980, já se julgava morto. Mas não estava, e não foi só Rita. Também eram boleros outros clássicos daquele tempo, como "Dois Pra Lá, Dois Pra Cá", de João Bosco e Aldir Blanc, "Meu Bem, Meu Mal", de Caetano Veloso, "Começar de Novo" e "Bilhete", ambos de Ivan Lins e Victor Martins, "Até Quem Sabe" e "Simples Carinho", de João Donato, "Anos Dourados", de Tom Jobim e Chico Buarque, "Bye bye, Brasil", de Roberto Menescal e também Chico, e "Folhetim" e "Sob Medida", só de Chico.

E quem vai acreditar que a demolidora versão de Eumir Deodato para "Also Sprach Zarathustra", de Richard Strauss, tema do filme "2001: Uma Odisséia no Espaço" e 2º lugar para Eumir na parada da Billboard em 1973, era, graças a ele, um... baião?

Você perguntará se é preciso conhecer o ritmo para apreciar a música. Claro que não, mas, se peço um sorvete no balcão, quero saber se é de creme ou de chocolate.

Hélio Schwartsman Judeus contam?, FSP

 Instado por um amigo, li "Jews Don´t Count" (judeus não contam), de David Baddiel. O livro, de 2021, é interessante, mas foi escrito e publicado na hora errada. Boa parte dos esforços do autor se destinam a flagrar casos de antissemitismo, que se tornaram muito mais frequentes e escancarados depois do ataque terrorista do Hamas de 7/10/23 e da subsequente guerra em Gaza, que vai deixando um número obsceno de civis palestinos mortos.

Nos EUA, tivemos a novela em torno de Harvard. Por aqui, houve a defesa que o petista José Genoino fez de um boicote a empresas de judeus. O suprassumo do antissemitismo é responsabilizar todos os judeus pelas ações de Israel. "Mutatis mutandis", seria como punir todos os brasileiros pelos ditos e feitos de Bolsonaro.

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 4 de fevereiro de 2024, mostra uma pessoa sentada segurando um lápis eletrônico e atrás de uma mesa, com um tablet sobre a mesma, cuja tela não mostra nenhuma imagem. Cobrindo sua cabeça se vê um rabiscado escuro mostrando sua confusão mental, essa emaranhado de traços se mescla com algumas imagens emblemáticas: uma estrela de Davi amarela, a bandeira do estado de Israel, uma Menorá, um judeu ortodoxo, o rosto do primeiro ministro de Israel Benjamin Netanyahu e a figura de um soldado do exército israelense armado com uma metralhadora.
A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 4 de fevereiro de 2024, na coluna de Hélio Schwartsman - Annette Schwartsman

Sem tantos casos gritantes, Baddiel teve de buscar manifestações mais sutis. Gostei particularmente de sua investida sobre o universo do "casting’. Tente, nos dias de hoje, escalar um ator branco para representar personagem negro, ou um cis para fazer um trans, ou um não gay para viver um homossexual. A reação de indignação será imediata. Já pôr um ator não judeu para fazer papel de personagem judeu é não apenas aceitável como frequente.

Baddiel diz –e esse é um ponto que poderia ter desenvolvido mais— que seus comentários se restringem à relação dos chamados progressistas com os judeus. É a esquerda que, em sua opinião, vem se tornando cada vez mais antissemita. Em outros meios, encontraremos outros preconceitos. Em aeroportos e na mídia "mainstream", por exemplo, árabes e islâmicos é que tendem a ser o objeto de desconfiança.
Foi divertido ler "Jews..." (Baddiel é comediante), mas receio que ele não responda à pergunta fundamental. Como, em poucas décadas, judeus passaram, na visão dos ditos progressistas, de protótipo da minoria perseguida a odioso grupo opressor? Tenho algumas intuições, mas nada perto de uma resposta.

helio@uol.com.br