terça-feira, 8 de agosto de 2023

Ruy Castro =- Frente a frente com os heróis, FSP

 Há dias, escrevi sobre meu amigo Jorge Cravo, Cravinho, que se dirigiu a Tony Bennett na rua, em Nova York, em 1986, e Tony, ao saber que ele era brasileiro, começou a falar de João Gilberto. Cravinho, modesto, não lhe contou que era amigo de João Gilberto desde 1949 em Salvador, e que passavam a noite ouvindo discos de cantores americanos de sua já fabulosa coleção. Leitores se encantaram com ele e quiseram saber mais.

Cravinho era de uma rica família baiana e louco por música. Aos 20 anos, em 1947, foi estudar nos EUA e fez de tudo menos estudar. Circulou por Nova York com Dick Farney, Lucio Alves e os Anjos do Inferno, que também estavam lá. Foi a tantos shows de Frank Sinatra, Nat King Cole, Billy Eckstine, Louis Armstrong e Duke Ellington que perdeu a conta. Eles atendiam os fãs, davam fotos autografadas. E houve sua história com Billie Holiday.

Ao fim de um show de Billie, ele casualmente a viu sair do teatro. Seguiu-a pela rua 52 e, quando ela entrou num botequim, entrou também e sentou-se ao seu lado no balcão. Apresentou-se, cumprimentou-a pelo show e perguntou se ela não gostaria de cantar no Brasil. Billie disse que sim. Ele lhe falou de contatos e trocaram seus endereços em NY e Salvador. Meses depois, ela lhe escreveu dizendo que não poderia viajar tão cedo, por causa de compromissos. Cravinho lamentou e guardou a carta dentro de um disco de Billie.

Outra façanha de Cravinho foi ir à Copa do Mundo de 1958, na distante Suécia. Visitava a concentração todos os dias e batia papo com Didi, Pelé, Garrincha, Bellini. E, na volta ao Brasil via Paris, o destino fez com que ele assistisse à gravação do LP "Vaughan & Violins", de Sarah Vaughan ---de dentro do estúdio! Há fotos.

Ah, sim, a carta de Billie. Pouco antes de morrer, em 2015, Cravinho vendeu seus discos para os americanos. Esqueceu-se e lá se foi a carta dentro do disco.

O fã Cravinho na concentração do Brasil na Copa do Mundo de 1958, na Suécia, com Didi e Pelé (no alto) e Garrincha (acima)
O fã Cravinho na concentração do Brasil na Copa do Mundo de 1958, na Suécia, com Didi e Pelé (no alto) e Garrincha (acima) - Heloisa Seixas

Hélio Schwartsman - Tráfego, FSP

 Em seus primórdios, a internet foi imaginada como um espaço de liberdade, que daria voz e informação às massas, radicalizando a democracia. Não é que tudo tenha dado errado. As pessoas têm hoje muito mais canais para fazer-se ouvir, e qualquer um com um celular dispõe de mais informações do que as que o presidente dos EUA podia acessar 50 anos atrás. Há esforços colaborativos, como a Wikipedia, que funcionam. Mas acho que nem Leibniz descreveria o universo das redes sociais como o melhor dos mundos possíveis. Ao contrário, é quase consensual que as redes intensificaram alguns dos piores instintos humanos e são parcialmente responsáveis por uma deterioração da democracia.

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 6 de agosto de 2023, mostra uma multidão de costas, todos empunhando seus celulares ativos para o alto e, ao fundo, ondas de posts contraditórios, seguidos de emojis correspondentes: #amo #odeio #fora #viva.Crédito: Annette Schwartsman
A ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman , publicada na versão impressa da Folha de S.Paulo neste domingo (6 de agosto de 2023) - Annette Schwartsman

"Traffic", de Ben Smith, mostra como a internet evoluiu de um território virgem e esparsamente povoado para um Velho Oeste, com muita gente e poucas regras. Smith é um observador privilegiado, porque participou de tudo, primeiro no site Politico, depois no BuzzFeed. Ele centra sua narrativa no fenômeno da viralização e na oposição entre dois pioneiros, Nick Denton, do Gawker, e Jonah Peretti, do HuffPost e do BuzzFeed. Enquanto o primeiro apostava em fofocas e em expor autoridades, o segundo tinha uma abordagem mais agnóstica, investindo em tudo que viralizasse, como a polêmica do vestido que mudava de cor segundo o observador.

Smith também vai aos aspectos mais propriamente políticos da internet, que é quando nos apresenta a figuras controversas como Andrew Breitbart e Steve Bannon.

Tudo é posto com um bom nível de detalhe. Talvez até demais para os que, como eu, não ligam muito para essa cena. Mas, ao apontar para as árvores, ele revela algo da floresta. E, nessa escala, passamos hoje por momentos de radicalização que aqueles que viveram na sequência da revolução tipográfica no século 15 já experimentaram. A diferença é que lá os efeitos levaram séculos para aparecer; agora são meses e anos.

Vera Iaconelli - A psicanálise, essa bobagem, FSP (definitivo)

 Os cientistas de fins do século 19 se orgulhavam da correção de seus métodos. Cada vez mais regidos pela razão e pelas evidências, suas pesquisas buscavam se afastar da intuição e das superstições próprias dos períodos anteriores. Freud, jovem neurologista à época, era um entusiasta dos ideais iluministas, os quais nunca abandonou.

Mas no meio do caminho da ciência havia uma pedra chamada histeria. Conhecido desde a Antiguidade, o quadro já tinha recebido interpretações que iam da circulação do útero dentro do corpo feminino à influência dos demônios. A primeira hipótese batizou o fenômeno: hystera, em grego, significa útero. Sugiro o livro "Histeria", de Silvia Alonso e do saudoso Mário Fuks (Casa do Psicólogo, 2005).

Gosto de um exemplo: o paciente apresenta uma paralisia total de um braço, que se encontra como um peso morto, insensível ao calor, à perfuração, sem qualquer reflexo, mas que "volta à vida" sem nenhuma explicação. Situação exasperante para um neurologista, que não tem como entender a lógica entre essa paralisia e o que se sabe sobre o sistema nervoso.

Embora esteja presente em homens, foram as mulheres que levaram a fama de histéricas, enlouquecendo os doutores que não sabiam como abordar sintomas tão insólitos quanto inconstantes. Sugiro o filme "Augustine" (Alice Winocour, 2012), no qual vemos um Charcot atônito e incansável tentando dar conta da incompreensível demanda de suas pacientes.

Jean Martin Charcot (1825-1893)
Jean Martin Charcot (1825-1893) - Wikimedia Commons

Daí a coragem de Freud em se perguntar a que lógica responderia esse e outros sintomas histéricos que não a da ciência conhecida até então. A maior façanha de Freud foi sustentar com sua genialidade o desconcerto diante do não saber. Breuer, o primeiro a tratar um caso de histeria com relativo sucesso, largou sua paciente Bertha Pappenheim falando sozinha quando os afetos da jovem ficaram densos demais. Sugiro "Estudos sobre a Histeria" de Breuer e Freud (Companhia das Letras, 2016).

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Dizemos que as histéricas fundaram a psicanálise na medida em que Freud teve a decência de escutá-las em vez de desacreditar seu sofrimento. Nesse processo, ele descobriu as leis do inconsciente, suas formas de expressão, seu tratamento e um campo de pesquisa centenário que modificou a forma como pensamos a nós mesmos e a cultura].

Dando um salto no tempo, vimos Lacan levar às últimas consequências a ética da escuta e do cuidado proposta por Freud. Para ele, o destino final do método iniciado pelo vienense não seria a erradicação do sintoma em si, mas o reconhecimento da alienação pelo próprio sujeito. Alienação que o sintoma denuncia e mantém, ou seja, aquilo que não queremos saber em nós, mas que carrega nosso desejo e nossas identificações mais primárias.

O fim de uma análise não é o fim dos sintomas, tampouco é o fim do desamparo inerente à nossa existência. Ela é o reconhecimento radical desse desamparo. E é a assunção de um jeito menos sofrido de lidar com ele. O fim de uma análise aponta para algo que nos irmana, pois não temos como ignorar que somos um entre outros humanos, igualmente desamparados. Sugiro "Maneiras de Transformar o Mundo", de Vladimir Safatle (Autêntica, 2020), uma das mais acuradas descrições desse momento final e de seus efeitos políticos.

Nossos divãs estão repletos de médicos que sabem que a cura não é feita só de protocolos e que tanto a adesão ao tratamento quanto seus resultados são atravessados pela subjetividade dos profissionais e dos pacientes. Sugiro o livro "A Ordem Médica", de Jean Clavreul (Brasiliense, 1980).

O tema da cientificidade da psicanálise é antigo e fascinante, mas nem tudo está à altura dessa discussão. Sugiro, por fim, o livro de Paulo Beer "Psicanálise e Ciência: um debate necessário" (Blucher, 2017).