segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

João Pereira Coutinho - É possível rejeitar uma obra de arte de uma artista negra sem ser por racismo, FSP

 Numa outra vida, que hoje me parece irremediavelmente distante, formei-me em história da arte. Não me arrependi. Pelo contrário: continua sendo uma paixão, mas não uma profissão.

O problema, creio, estava no excesso de política que começou a rondar a disciplina. Não sou um prosélito do esteticismo. Não acredito na arte pela arte. E sei bem que a política sempre fez parte do pacote.

Não falo de casos óbvios, como os quadros "papistas" de Rafael, a produção pré e pós-revolucionária de Jacques-Louis David ou as denúncias de Picasso sobre a guerra civil espanhola.

Visitantes observam o quadro 'Guernica' (1937), obra do espanhol Pablo Picasso sobre a guerra civil espanhola - Reprodução

Mesmo casos aparentemente "limpos" —lembro um, que sempre me comove: o "Navio Negreiro", de J. M. W. Turner— refletem a sensibilidade moral de um tempo.

No caso de Turner, não é possível olhar para a composição e fechar o debate numa análise formal. Quando vemos os escravos mortos ou doentes sendo jogados no mar, ainda com as correntes, convém perceber que Turner estava a participar dos movimentos abolicionistas britânicos com uma das mais poderosas
denúncias desse horror moral que foi o tráfico negreiro.

Quando falo da "politização" da arte, eu falo de outra coisa: a noção de que a arte só existe para cumprir um programa ideológico que, para além de extra-artístico, secundariza a dimensão estética da obra. É uma espécie de esteticismo ao contrário, em que a arte pela arte é substituída pela pura ideologia.

Em ditaduras, isso é bastante comum —do realismo soviético até a denúncia da "arte degenerada" pelos nazistas, exemplos não faltam.

Mais estranho é achar isso normal em tempos de liberdade: ou a arte cumpre uma agenda específica, ou deve ser ignorada. E quem não concorda com essa doxa é racista/homofóbico/transfóbico/misógino (pode escolher).

Um caso recente, que abalou o mundo das artes em Portugal, ilustra o meu ponto. A artista portuguesa Grada Kilomba, com uma obra sobre o racismo, não foi escolhida para representar o país na Bienal de Veneza de 2022. Motivo?

Segundo Djamila Ribeiro, nesta Folha, por causa de uma "branquitude ressentida" que não tolera "os questionamentos de seus privilégios que vêm historicamente decidindo quem pode ou não falar".

No caso de Grada Kilomba, isso se explica pelo fato de um membro do júri, ao contrário dos restantes três jurados, não ter atribuído uma pontuação elevada à artista, desvalorizando o seu projeto e impedindo a sua escolha oficial.

Por outras palavras: não escolher Kilomba é ser racista. E também misógino, como se leu em Portugal em artigos de uma violência delirante.

Não faço comentários sobre a arte de Kilomba, que conheço mal, muito menos sobre o projeto apresentado a concurso, "A Ferida", que não conheço de todo.

Meu ponto é outro: ainda é possível rejeitar uma obra de arte de uma artista negra (e mulher) sem sermos
lançados para a fogueira do racismo (e da misoginia)?

Depende dos argumentos usados, claro, razão pela qual fui ler a fundamentação do crítico Nuno Crespo, o
alegado racista da situação.

Para minha surpresa, ali temos um jurado que reconhece Kilomba como uma "brilhante escritora e pensadora" e a sua equipe como dotada de "reconhecido mérito" e "relevância nacional e internacional".

Ilustração representando o busto de mulher de tranças entre linhas tracejadas negras
Ilustração publicada em 3 de janeiro - Angelo Abu

Porém, e em relação ao projeto apresentado (que era o que contava), o crítico manifesta reservas analíticas e de gosto (falta "singularidade" e "consistência", "não é inovador" etc.) que em nenhum
momento resvalam para o racismo ou para a misoginia.

Há 25 anos, quando deixei o mundo da arte para trás, o ambiente já era tóxico. Mas ainda não existia, concedo, o terrorismo emocional de hoje: a ideia perigosa de que só existe uma "linha justa" que o crítico ou o artista têm de seguir fielmente, sob pena de fuzilamento moral.

Dizer que esse ambiente é puro veneno para a reflexão e para a criação artística seria um eufemismo. Como seria um eufemismo acrescentar que o silêncio covarde ou cúmplice de muitos críticos e artistas
com tais inquisições será, a prazo, o fim de todos eles.

Felizmente, o debate que a não escolha de Grada Kilomba gerou em Portugal permitiu escutar outras vozes, que não se deixaram intimidar pela gritaria reinante.

É um sinal de esperança.

Pecuaristas fazem churrasco em agências do Bradesco em protesto após vídeo contra carne, FSP

 Douglas Gavras

Rogério Florentino
CURITIBA e CUIABÁ

Pecuaristas de ao menos cinco estados fazem na manhã desta segunda-feira (3) churrascos nas portas de agências do Bradesco, em protesto contra um vídeo em que influenciadoras recomendaram um dia sem carne e associam a prática a um aplicativo do banco que calcula pegadas de carbono.

O material circulou nas redes sociais há duas semanas e o Bradesco informou que tirou o vídeo do ar no último dia 23. Nele, três influenciadoras dão dicas de como o consumidor pode ter hábitos mais sustentáveis e reduzir sua pegada de carbono.

A primeira dica dada por elas é aderir ao movimento conhecido como "Segunda sem Carne", em que as pessoas optam por consumir pratos vegetarianos.

"A criação de gado contribui para a emissão dos gases de efeito estufa, então, que tal se a gente reduzir o nosso consumo de carne e escolher um prato vegetariano na segunda-feira?", diz uma delas.

O conteúdo irritou os ruralistas, despertando críticas de políticos que defendem pautas ligadas ao agronegócio, empresários do setor e entidades.

Sindicatos rurais organizaram por meio das redes sociais os churrascos, que batizaram de "Segunda com Carne". Também foram marcados atos nas portas das agências de Ribeirão Preto (SP), Araçatuba (SP), Birigui (SP), Cuiabá (MT), Rondonópolis (MT), Araguaína (TO), Água Boa (MT), Canarana (MT), Barra do Garça (MT), Goiânia (GO) e Xinguara (PA).

População faz fila para receber churrasco em frente ao Bradesco em Cuiabá
População faz fila para receber churrasco em frente ao Bradesco em Cuiabá - Rogério Florentino/Folhapress

Em Mato Grosso, o protesto é apoiado pela Acrimat (Associação dos Criadores de Mato Grosso), da Nelore Mato Grosso e da ABCZ (Associação Brasileira dos Criadores de Zebu).

"Não é exagero da parte deles, é má-fé. Eles fazem de propósito para quebrar o agronegócio. A mesma propaganda feita pelo Banco do Brasil mostra a diferença entre um banco consciente e outro que faz difamação do agronegócio", disse o deputado estadual Gilberto Cattani (PSL).

Durante o ato em Cuiabá, cerca de 2.000 espetos de carne são distribuídos para as pessoas que passam pela agência, no centro da cidade. No fim da manhã, uma fila chegou a se formar na porta do prédio.

No ano passado, imagens de moradores de Cuiabá fazendo fila em busca de ossos ganharam as redes sociais. Nesta segunda, alguns deles aproveitaram que passavam pelo centro para pegar um espetinho com os manifestantes. Um deles é Estevão Vargas, 27. "Já peguei um pouco de carne e estou na fila para pegar de novo. Sou de Santa Catarina, mas moro em Cuiabá e apoio os manifestantes."

Para o pecuarista Jorge Pires de Miranda, também de Cuiabá, é importante que o setor se posicione contra a campanha. "Ela traz inverdades para a população, a pecuária é um segmento que só traz boas notícias para a população. Além de atendermos ao mercado nacional, exportamos para vários países, somos responsáveis por sustentar a balança comercial."

"Quisemos desmontar essa narrativa feita pelo banco, que vem passar informações falsas sobre a agropecuária. Há pesquisas que vão em sentido oposto ao que diz o vídeo", disse Wagner Martins, presidente do Sindicato Rural de Araguaína (TO). Ele estima que 1.500 pratos de carne bovina assada tenham sido distribuídos à população da cidade no evento, que durou três horas e meia.

Criadores de Xinguara (PA) divulgaram nas redes sociais doação de carne para quem levar um comprovante de inscrição no programa Auxílio Brasil e documento de identificação.

De acordo com os sindicatos, os modelos de produção da agropecuária brasileira utilizam práticas sustentáveis, pastagens produtivas e integrações para a criação de bovinos, que contribuem positivamente para a questão das emissões de carbono.

Após tirar o vídeo de suas redes, o banco divulgou, no dia 24, uma carta aberta ao agronegócio, em que procurou se desvincular do conteúdo e disse que tomaria ações administrativas internas severas por conta do ocorrido.

"Nos últimos dias lamentavelmente vimos uma posição descabida de influenciadores digitais em relação ao consumo de carne bovina, associadas à nossa marca. Importante dizer que tal posição não representa a visão desta casa em relação ao consumo da carne bovina", diz a carta do banco.

"Se o Brasil não tivesse a produtividade que a pecuária tem, a comida seria muito mais cara. A questão da fila do osso é governamental e não podemos ser responsabilizados por isso, o que nós esperamos são políticas que melhoram a renda do brasileiro", disse Jorge Pires, diretor do Sindicato Rural de Cuiabá. "Participamos de diversas ações de doação de alimentos."

Na semana passada, a Acrimat emitiu uma nota repudiando tanto o vídeo quanto a postura do banco, "que emitiu um comunicado se isentando de qualquer responsabilidade sobre o ocorrido e reiterando sua confiança e apoio ao setor".

"Ocorre que o próprio Bradesco, em um dos seus aplicativos, também estimula a redução do consumo de proteína animal com a desculpa de se reduzir a emissão de carbono. Ora, se somos uma das cadeias mais importantes para a economia, como o próprio Bradesco atua com essas duas versões?", questionou a entidade.

Responsável pela campanha do app que calcula pegadas de carbono, a Leo Burnett não confirma e nem nega a autoria do vídeo com as influenciadoras que propuseram a segunda-feira sem carne. A agência também não quis comentar a repercussão do material.

Na última sexta-feira (31), o Bradesco reiterou seu apoio ao setor e, por meio de nota, disse que a instituição é o maior banco privado do agronegócio.

"Foram a Pecplan e a Fundação Bradesco, com o apoio de seus técnicos, que implantaram e capacitaram milhares de agropecuaristas a fazer inseminação artificial, ajudando a agropecuária a chegar ao atual e reconhecido nível de excelência mundial."

Procurado novamente nesta segunda-feira para comentar os atos de protesto marcados pelos ruralistas, o banco reforçou que apoia o agronegócio.

Populismo e Banco Central dos EUA são riscos para economia brasileira em 2022, Affonso Celso Pastore*, O Estado de S.Paulo


02 de janeiro de 2022 | 04h00

Não há como fazer projeções econômicas otimistas para 2022. O governo não tem nada parecido com um programa econômico, colaborou para que interesses partidários capturassem o Orçamento, e com isso destruiu o arcabouço fiscal que a duras penas vinha sendo construído. O inevitável aumento da percepção de risco desestimulou as compras de ativos brasileiros por parte de não residentes e, pior ainda, estimulou os brasileiros a elevarem a proporção de investimentos em ativos estrangeiros, acentuando a depreciação do real

A combinação do baixo grau de previsibilidade na economia com a queda da qualidade das instituições gerou um clima hostil aos investimentos. É isto que sinaliza o Índice de Incerteza da Economia, construído pela FGV. Seus quatro picos acima de 130 coincidem com as recessões de 2002, 2008, 2014 e 2020. Durante as recuperações das três primeiras eles logo declinaram, porém, desde a recuperação em V da recessão de 2020 ele ainda está próximo do fatídico nível de 130, o que sinaliza risco de uma recessão em 2022. 

Federal Reserve
Fed, o banco central americano; instituição deve elevar taxa de juros, fortalecendo o dólar Foto: Leah Millis/Reuters

Uma exceção é o setor agrícola, que tem previsão de uma safra recorde. A outra é a construção civil, que até recentemente se beneficiou do aumento da demanda de imóveis provocado pelas baixas taxas de juros. Na direção contrária está a produção industrial, que nunca se recuperou da queda ocorrida nos dois primeiros anos da recessão iniciada em 2014, e que por longo período ainda será penalizada pelo rompimento das cadeias de suprimento. Quanto ao consumo das famílias, nem mesmo os mais ingênuos ainda acreditam no “aumento salvador de gastos” custeado pela “desova da poupança” acumulada em 2020. Embora o Auxílio Brasil contribua para elevar os gastos, a recuperação do nível de emprego ocorreu ao lado da sua precarização, o que reduz a massa salarial ampliada. 

Dois riscos afetam este cenário. O primeiro é a reação do Fed, não somente apressando o encerramento da compra de ativos, como elevando ainda em 2022 a taxa dos fed funds. Gera, com isso, o fortalecimento do dólar cuja contrapartida é a depreciação de todas as demais moedas, o que coloca uma “pá de cal” na expectativa de que uma sensível valorização do real anteciparia o início da queda da taxa de juros. O segundo é o risco relativo ao populismo vindo da queda de popularidade do incumbente, que eleva a probabilidade de novas surpresas fiscais, com reflexos no câmbio e na inflação, dificultando a tarefa do Banco Central

*EX-PRESIDENTE DO BC E SÓCIO DA A.C. PASTORE E ASSOCIADOS