Numa outra vida, que hoje me parece irremediavelmente distante, formei-me em história da arte. Não me arrependi. Pelo contrário: continua sendo uma paixão, mas não uma profissão.
O problema, creio, estava no excesso de política que começou a rondar a disciplina. Não sou um prosélito do esteticismo. Não acredito na arte pela arte. E sei bem que a política sempre fez parte do pacote.
Não falo de casos óbvios, como os quadros "papistas" de Rafael, a produção pré e pós-revolucionária de Jacques-Louis David ou as denúncias de Picasso sobre a guerra civil espanhola.
Mesmo casos aparentemente "limpos" —lembro um, que sempre me comove: o "Navio Negreiro", de J. M. W. Turner— refletem a sensibilidade moral de um tempo.
No caso de Turner, não é possível olhar para a composição e fechar o debate numa análise formal. Quando vemos os escravos mortos ou doentes sendo jogados no mar, ainda com as correntes, convém perceber que Turner estava a participar dos movimentos abolicionistas britânicos com uma das mais poderosas
denúncias desse horror moral que foi o tráfico negreiro.
Quando falo da "politização" da arte, eu falo de outra coisa: a noção de que a arte só existe para cumprir um programa ideológico que, para além de extra-artístico, secundariza a dimensão estética da obra. É uma espécie de esteticismo ao contrário, em que a arte pela arte é substituída pela pura ideologia.
Em ditaduras, isso é bastante comum —do realismo soviético até a denúncia da "arte degenerada" pelos nazistas, exemplos não faltam.
Mais estranho é achar isso normal em tempos de liberdade: ou a arte cumpre uma agenda específica, ou deve ser ignorada. E quem não concorda com essa doxa é racista/homofóbico/transfóbico/misógino (pode escolher).
Um caso recente, que abalou o mundo das artes em Portugal, ilustra o meu ponto. A artista portuguesa Grada Kilomba, com uma obra sobre o racismo, não foi escolhida para representar o país na Bienal de Veneza de 2022. Motivo?
Segundo Djamila Ribeiro, nesta Folha, por causa de uma "branquitude ressentida" que não tolera "os questionamentos de seus privilégios que vêm historicamente decidindo quem pode ou não falar".
No caso de Grada Kilomba, isso se explica pelo fato de um membro do júri, ao contrário dos restantes três jurados, não ter atribuído uma pontuação elevada à artista, desvalorizando o seu projeto e impedindo a sua escolha oficial.
Por outras palavras: não escolher Kilomba é ser racista. E também misógino, como se leu em Portugal em artigos de uma violência delirante.
Não faço comentários sobre a arte de Kilomba, que conheço mal, muito menos sobre o projeto apresentado a concurso, "A Ferida", que não conheço de todo.
Meu ponto é outro: ainda é possível rejeitar uma obra de arte de uma artista negra (e mulher) sem sermos
lançados para a fogueira do racismo (e da misoginia)?
Depende dos argumentos usados, claro, razão pela qual fui ler a fundamentação do crítico Nuno Crespo, o
alegado racista da situação.
Para minha surpresa, ali temos um jurado que reconhece Kilomba como uma "brilhante escritora e pensadora" e a sua equipe como dotada de "reconhecido mérito" e "relevância nacional e internacional".
Porém, e em relação ao projeto apresentado (que era o que contava), o crítico manifesta reservas analíticas e de gosto (falta "singularidade" e "consistência", "não é inovador" etc.) que em nenhum
momento resvalam para o racismo ou para a misoginia.
Há 25 anos, quando deixei o mundo da arte para trás, o ambiente já era tóxico. Mas ainda não existia, concedo, o terrorismo emocional de hoje: a ideia perigosa de que só existe uma "linha justa" que o crítico ou o artista têm de seguir fielmente, sob pena de fuzilamento moral.
Dizer que esse ambiente é puro veneno para a reflexão e para a criação artística seria um eufemismo. Como seria um eufemismo acrescentar que o silêncio covarde ou cúmplice de muitos críticos e artistas
com tais inquisições será, a prazo, o fim de todos eles.
Felizmente, o debate que a não escolha de Grada Kilomba gerou em Portugal permitiu escutar outras vozes, que não se deixaram intimidar pela gritaria reinante.
É um sinal de esperança.