quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Paliativo para as Santas Casas


10 de novembro de 2013 | 2h 07

O Estado de S.Paulo
O pacote de medidas anunciado pelo governo para socorrer as Santas Casas, que desempenham papel fundamental no Sistema Único de Saúde (SUS), deve aliviar as sérias dificuldades que elas enfrentam. Constitui portanto um avanço. Mas não se pode perder de vista que a verdadeira solução para a grave crise em que elas estão mergulhadas há anos - e que decorre do fato de o SUS não cobrir inteiramente os custos dos serviços prestados por essas entidades - exige muito mais do que o governo está oferecendo.
As dívidas das Santas Casas e dos hospitais filantrópicos são estimadas em R$ 15 bilhões, valor que dá uma ideia do tamanho do problema com que se debatem. Cerca de um terço desse total (R$ 5 bilhões) representa dívidas tributárias, cujo pagamento será parcelado, a partir de janeiro, em até 15 anos. Serão também concedidas facilidades para o pagamento das dívidas com a Caixa Econômica Federal. O prazo para a quitação desses débitos passa de 80 para 120 meses, a juros de 1% ao mês.
O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, acenou com a possibilidade de também os bancos privados oferecerem melhores condições que as atuais - muito duras - para a quitação das dívidas contraídas junto a eles por aquelas entidades: "Já recebemos sinais de interesse (por parte deles)". Como os bancos não são sabidamente inclinados a esse tipo de liberalidade, é preciso esperar para ver se o ministro não está sendo excessivamente otimista.
O Ministério decidiu também criar, por meio de portaria, novas regras para obrigar Estados e prefeituras a repassar logo às Santas Casas os recursos a elas destinados pelo governo. Esses atrasos podem chegar a um ano. O governo estadual ou municipal que não fizer o repasse no prazo fixado terá bloqueado, no mês seguinte, o valor equivalente em recursos de outra natureza que lhe são devidos.
Finalmente, o governo decidiu aumentar de 26% a 50%, a partir do ano que vem, o valor pago às Santas Casas e hospitais filantrópicos por procedimentos de média e alta complexidade feitos para o SUS, tais como cirurgias e exames. Estima-se que essa medida terá um impacto financeiro de R$ 1,7 bilhão em 2014.
As reações às providências anunciadas pelo governo foram ao mesmo tempo positivas e cautelosas, tendo em vista seu caráter limitado. Segundo o deputado Antônio Brito (PTB-BA), coordenador da Frente Parlamentar de Apoio às Santas Casas e Hospitais Filantrópicos, por exemplo, elas permitem a essas entidades "sair da UTI e respirar sem aparelhos". Ou seja, o paciente apenas superou a fase aguda da doença. Seu colega Darcísio Perondi (PMDB-RS) foi mais objetivo, tocando no ponto sensível da questão. As medidas amenizam na crise, que só será resolvida definitivamente quando a tabela de procedimentos do SUS, que hoje só cobre 60% do custo, for corrigida, disse ele.
Esse é o grande problema a ser resolvido, porque salta aos olhos que as Santas Casas e os hospitais filantrópicos não têm condições de arcar indefinidamente com os 40% dos custos que o governo finge que não existem. É para cobrir esse buraco que essas entidades se endividam. Portanto, a rigor o governo não faz mais do que a sua obrigação ao ajudá-las, como agora, a quitar seus débitos. Além disso, como elas respondem por 45% dos atendimentos do SUS, sua sobrevivência se confunde com a do sistema público de saúde.
Além do caráter limitado das medidas, para ter direito aos benefícios oferecidos pelo governo, a começar pelos referentes à quitação das dívidas, as Santas Casas e os hospitais filantrópicos terão de se submeter a uma exigência que a médio e longo prazos agrava sua situação. A Lei 12.873/13 estabelece que para isso elas terão de oferecer "serviços de saúde ambulatoriais e de internação ao SUS em caráter adicional aos já realizados, a partir de rol de procedimentos definido pelo Ministério da Saúde, desde que haja demanda".
Trocado em miúdos, isso quer dizer que aquelas entidades terão de aumentar o atendimento ao SUS e, como ele dá prejuízo de 40%, isso vai alimentar as dívidas. Nesse caso, o que o governo deu com uma mão está tomando com a outra.

Abismo social nas cidades


10 de novembro de 2013 | 2h 07

O Estado de S.Paulo
Pelo menos até 2010, a melhoria das condições de vida dos brasileiros mostrada em estatísticas de renda, emprego e condições de moradia não havia chegado às favelas. Persistia um grande abismo social entre os moradores das favelas e os das demais regiões das cidades em que elas estão instaladas. Eram 11,4 milhões de pessoas vivendo em 3,2milhões de domicílios particulares precários, que não obedecem aos padrões e às exigências do planejamento urbano, de acordo com pesquisa que acaba de ser divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base no Censo Demográfico de 2010.
Existem no País 6.329 aglomerados subnormais, denominação que o IBGE utiliza para se referir a assentamentos urbanos irregularidades, com pelo menos 51 unidades habitacionais, como favelas, terrenos invadidos, vilas, mocambos ou palafitas. Esses aglomerados estão instalados em 323 municípios, predominantemente nas Regiões Sudeste e Nordeste. A maior parte da população que ocupa esse tipo de habitação vive nas regiões metropolitanas.
A Grande São Paulo tem 596,5 mil habitações precárias, onde moram 2,16 milhões de pessoas. Destas, cerca de dois terços vivem na capital. Guarulhos abriga 10,7% da população que vive em favelas na Grande São Paulo, seguindo-se Santo André e São Bernardo do Campos (cada um com 8% do total) e Osasco (3,9%).
Além de viverem em condições piores, os moradores das favelas ganham menos, têm nível de instrução menor e estão mais sujeitos ao trabalho informal, com menos garantias e com remuneração menor, do que os demais habitantes das cidades. Bens que caracterizam a vida moderna, como eletrodomésticos, computadores com acesso à internet e automóveis são menos presentes nas favelas do que nas demais áreas.
A informalidade no mercado de trabalho caiu nos últimos anos - como comprova o aumento mais rápido da arrecadação de contribuições sociais vinculadas ao trabalho formal do que o crescimento da renda média dos trabalhadores -, mas caiu menos entre os habitantes da favela. Entre estes, 27,8% dos trabalhadores não tinham carteira assinada, índice que cai para 20,5% entre os trabalhadores de outras áreas da cidade.
A disparidade de renda entre os moradores das favelas e os demais habitantes é ainda mais ampla. Enquanto 31,6% dos moradores dos aglomerados subnormais tinham rendimento domiciliar per capita de até meio salário mínimo, nas demais áreas da cidade o porcentual se reduzia para 13,8%.
Também o acesso à educação mostra a diferença entre as condições dos moradores das favelas e as dos demais habitantes. Enquanto 14,7% dos moradores de habitações regulares tinham concluído o ensino superior, entre os moradores dos aglomerados subnormais o índice era de apenas 1,6%.
Em geral, os moradores das favelas gastavam o mesmo tempo que os demais moradores das cidades no deslocamento entre a residência e o trabalho. Entre os primeiros, 19,7% gastavam mais de uma hora diariamente no deslocamento para o trabalho; para os demais, o índice era de 19%, praticamente o mesmo. Curiosamente, no Rio de Janeiro, 21,6% da população dos aglomerados levava mais de uma hora para chegar ao trabalho, enquanto nas outras áreas a proporção era de 26,3%. No Rio, com a ocupação de encostas ao longo da cidade, os moradores puderam se instalar perto de seu local de trabalho.
Já em São Paulo, onde a ocupação irregular ocorreu em áreas mais distantes do centro, a proporção se inverte. Os conhecidos problemas de deslocamento na cidade prejudicam todos, mas afetam mais os moradores dos aglomerados, dos quais 37,0% gastavam mais de uma hora para ir ao trabalho, porcentagem que se reduzia para 30% entre os demais habitantes da cidade.
A persistência de um grande número de pessoas que vivem em condições precárias e enfrentando mais dificuldades que os demais cidadãos mostra que as políticas públicas para essa faixa da população não têm produzido resultados na velocidade necessária para aliviar o sofrimento delas.

Comissões da Verdade vivem impasse


Colegiado nacional criado para apurar crimes da ditadura estimulou dezenas de novos grupos que não resultam em fatos de relevância

09 de novembro de 2013 | 19h 57

Roldão Arruda - O Estado de S. Paulo
O início das atividades da Comissão Nacional da Verdade, em maio de 2012, estimulou o surgimento de grupos semelhantes por todo o País. De lá para cá, governos de dez Estados instalaram comissões oficiais para apurar violações de direitos humanos na ditadura militar. Em outros três Estados, elas foram montadas por iniciativa direta das assembleias legislativas. E três governadores analisam no momento a criação de comissões próprias.
Não foram só os Estados que se movimentaram. Grupos com o mesmo objetivo se multiplicaram por municípios, universidades, sindicatos, associações. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) tem uma comissão nacional e outras dez funcionando em suas seções estaduais. No caso da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) a adesão foi maior: foram constituídas comissões em 20 sindicatos. Embora não exista um levantamento completo, estima-se em mais de cem o total de comissões.
Apesar do entusiasmo e da rápida adesão, porém, o trabalho dessas comissões começa a dar sinais de desgaste. Com dificuldades para apresentar fatos novos e relevantes sobre a ditadura, algumas estão perdendo o foco e trombando com suas congêneres. Os problemas são mais evidentes no caso das que operam no nível público e oficial.
Em São Paulo, a Comissão da Verdade da Câmara Municipal está concentrada na busca de uma prova definitiva de que, ao contrário da história oficial, que fala em morte por acidente, o ex-presidente Juscelino Kubitschek teria sido assassinado. O presidente da comissão, vereador Gilberto Natalini (PV), disse ao Estado que ao final do trabalho será encaminhado um relatório à Comissão Nacional da Verdade, pedindo a investigação do assassinato.
A tese é antiga e acaba de ser revista numa investigação semelhante feita pela Comissão da Verdade da OAB de Minas - Estado no qual Juscelino nasceu, do qual foi governador e de onde partiu para a Presidência. Ao final do trabalho, a OAB encaminhou à Comissão Nacional um relatório com pedido semelhante ao de Natalini.
A ideia básica das comissões locais foi a de que poderiam trabalhar com focos específicos, mais próximos de sua realidade. Espalhadas por todo o País, suas investigações acabariam irrigando a Comissão Nacional e contribuindo para a construção de um painel nacional.
Vala clandestina. Nem sempre isso ocorre. Ainda em São Paulo, onde existem duas grandes comissões parlamentares em atividade, uma na Câmara Municipal e outra na Assembleia Legislativa, não se produziu até agora nenhuma novidade relevante sobre a vala clandestina do Cemitério de Perus, episódio de significado crucial em relação aos mortos e desaparecidos.
Existem indícios de que, após assassinar militantes políticos de esquerda, os agentes policiais e militares enterravam os corpos sem identificação ou com nomes falsos na vala de Perus.
Apesar das dificuldades dessas duas comissões, uma terceira está prestes a ser criada na capital paulista, dessa vez na Prefeitura. Um projeto de lei nesse sentido pode ser aprovado na Câmara no início do ano.
A Bahia também tem duas comissões oficiais no âmbito estadual - uma no Executivo e outra no Legislativo. Segundo o presidente da comissão parlamentar, Marcelino Galo (PT), o governador Jaques Vagner (PT) teria sido estimulado pelo Legislativo: "Foi importante formarmos a comissão na Assembleia, até porque ela motivou, politicamente, a instituição da comissão do Executivo". Para evitar trombadas, Galo diz que a comissão que preside vai focalizar o caso de 14 parlamentares baianos cassados pela ditadura.
Embora autônomas, a expectativa geral era de que as comissões locais trabalhassem seguindo uma orientação geral ou dialogando com a nacional, para evitar superposição de atividades. A troca de informações, porém, ainda é precária. Do total de comissões existentes no País, apenas 29 formalizaram alguma parceria com a nacional. Uma rede virtual montada com o apoio do Ministério da Ciência e Tecnologia para a troca de dados só teve nove adesões até agora.
Holofotes. Para Jair Krischke, do Movimento de Justiça e Direitos Humanos de Porto Alegre, as comissões locais patinam porque não têm poder para convocar pessoas para depor, como ocorre com a Comissão Nacional. Na avaliação dele, o quadro preocupa: "Depois do entusiasmo inicial, o que se vê agora é um refluxo."
Para Krischke, os Estados refletem o que ocorre com a Comissão Nacional: "À medida em que ela não consegue apresentar resultados, as outras começam a refluir."
Nesse cenário, ele vê o risco de as comissões focalizarem casos de maior repercussão pública, em busca de holofotes. Krischke cita o destaque que está sendo dado pela Comissão Nacional e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República à exumação do corpo do ex-presidente João Goulart. Nos próximos dias ele será submetido a análises para verificar se foi mesmo envenenado, como suspeitam seus familiares.
"É claro que a análise deve ser feita", diz Krischke. "O que não se admite é a exploração política do fato. No caso, quem está se beneficiando é a ministra de Direitos Humanos, provável candidata ao Senado pelo Rio Grande do Sul." A ministra Maria do Rosário disse que a análise atende a um pedido da família e é um "dever de Estado".
Não é de todo improvável que a eventual comprovação de envenenamento aumente o prestígio da ministra e da Comissão Nacional - que trata do caso por meio de um grupo dedicado a investigar a chamada Operação Condor. Não se pode dizer o mesmo, porém, do trabalho miúdo de comissões locais. Seus dividendos são incertos. O caso do ex- vereador paulista Ítalo Cardoso (PT) é exemplar: depois de presidir a comissão da Câmara em 2012 (e fazer um relatório sem impacto), não se reelegeu.
Com interesse eleitoral ou não, a cena atual começa a preocupar as comissões. Dias atrás, ao participar de homenagem a uma desaparecida política, o deputado paulista Adriano Diogo (PT), que preside a comissão da Assembleia, observou que, das três metas estabelecidas para as comissões - verdade, memória e justiça -, só uma está sendo alcançada, a da memória. A verdade e a justiça, completou, estariam mais relacionadas à falta de vontade política do governo para abrir os arquivos das Forças Armadas do que à falta de eficiência das comissões. / COLABORARAM ELDER OGLIARI, TIAGO DÉCIMO e MARCELO PORTELA