segunda-feira, 29 de abril de 2024

Até na ex-Iugoslávia guerra civil era vista como ficção, João Pereira Coutinho , FSP

 Bons tempos, aqueles, em que as ameaças vinham do espaço –meteoritos, invasões alienígenas, radiações cósmicas.

Ou, para não sermos tão megalômanos, os perigos vinham de uma natureza terrestre sem rosto, sob a forma de tufões, vulcões, terremotos ou pandemias.

O cinema americano, com uma gula sadomasoquista, sempre gostou de recriar essas destruições com a certeza consoladora de que elas seriam improváveis.

Mas eis que Alex Garland, diretor que se especializou a filmar os nossos medos contemporâneos, resolveu dar carne e osso a uma possibilidade mais real, mais próxima, mais plausível, com seu "Guerra Civil": um conflito nos Estados Unidos entre facções que já não conseguem viver no mesmo território.

O diretor não nomeia essas facções. Prefere mostrar, pelo olhar de quatro jornalistas, as consequências sangrentas de uma guerra entre Washington e os estados rebeldes. Não era a primeira vez. Haverá uma segunda também na realidade?

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Profecias não são a minha praia. Mas há certas coisas que até um cego, sem precisar do dom de Tirésias, é capaz de vislumbrar no horizonte.

A primeira evidência é que Donald Trump quer vingança. Não apenas pela derrota de 2020. Por tudo: a derrota, as tribulações judiciais, o ego ridicularizado e ferido.

Emaranhado de letras atravessado ao meio por uma rachadura, que divide os dois lados da composição em dois hemisférios de diferentes cores
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 29 de abril de 2024 - Angelo Abu

Não é caso único. O cientista político Ivan Krastev, tempos atrás, explicava que o comportamento é comum a líderes populistas que se sentem injustiçados pelo "deep state", ou seja, por funcionários públicos, burocratas, militares, agentes de segurança, magistrados ou até jornalistas que, segundo esses líderes, operaram na sombra para sabotar o governo.

No leste da Europa, por exemplo, a "limpeza" das segundas oportunidades faz parte dos manuais. Na Hungria, Viktor Orbán, que começou bem como liberal clássico, regressou ao poder em 2010 para se vingar dos socialistas. Ainda lá está, ao leme da sua democracia iliberal.

Na Polônia a mesma coisa: o partido Lei e Justiça, em 2015, também não perdoou os seus adversários quando voltou para ajustar contas.

Por que motivo Donald Trump seria diferente?

Fato: o desejo de vingança não justifica o tipo de guerra civil que Alex Garland apresenta no filme —ataques bombistas, linchamentos, valas comuns. Não aconteceu na Hungria. Não aconteceu na Polônia.

Mas aconteceu na ex-Iugoslávia depois do fim do comunismo, quando as ex-repúblicas cumpriram um calvário conhecido: anocracia, faccionalismo e guerra aberta.

Essa trilogia é apresentada por Barbara F. Walter em "Como as Guerras Civis Começam" (Zahar), livro de 2022 bastante mais perturbador que o filme de Alex Garland. Para a autora, a trilogia pode existir nos Estados Unidos com uma Presidência musculada. As sementes estão todas lá.

Anocracia é um estado intermediário entre democracia e autocracia. Sim, o povo ainda vota; não, o sistema de freios e contrapesos já não funciona como antigamente —o Judiciário foi capturado pelo Executivo, o Legislativo também, as Forças Armadas se encontram divididas em suas lealdades e a segurança da população tem dias.

O faccionalismo vem a seguir. Não confunda com polarização. Sociedades democráticas tendem a ser polarizadas e ninguém morre por causa disso: a defesa vigorosa de propostas antagônicas não é um mal em si. É expressão de liberdade e pluralismo.

O mal acontece quando a polarização extravasa o jogo político pela constituição de facções que se sentem ameaçadas, existencialmente falando, pela existência de outras facções.

Tradicionalmente, Barbara Walter tem razão quando afirma que o faccionalismo que amedrontava os pais fundadores dos Estados Unidos se baseava em diferenças de renda.

Aliás, desde a Antiguidade que assim era: já Aristóteles tinha alertado para o fosso perigoso entre ricos e pobres, preferindo uma "polis" de classes médias.

Hoje, as diferenças étnicas (brancos vs. negros), religiosas (fundamentalistas vs. secularistas) e até geográficas (urbanos vs. rurais) são muitíssimo mais preponderantes.

E hostis: relembra a autora que, em 2017, o número de democratas e republicanos que admitiam o uso de violência para lidar com os adversários não passava dos 8%.

Nos últimos anos, os números subiram para 33% (democratas) e 36% (republicanos). Não admira que 15% dos primeiros e 20% dos segundos desejem a eliminação física de quem está do outro lado.

A formação de milícias, pró e antigoverno, é o passo seguinte. A guerra aberta depende da responsabilidade do líder do país em não explorar os medos da população armada. Ou da falta de responsabilidade.

Demasiada ficção?

Todos os civis que Barbara Walter entrevistou para o seu livro —na Bósnia, na Sérvia, em Kosovo— acreditavam que sim. Até o dia em que deixaram de acreditar.

Parafraseando Ernest Hemingway, as guerras civis são como a falência de certos negócios: tudo acontece gradualmente, e depois subitamente.

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Zambelli e Delgatti, personagens da República, Álvaro Costa e Silva, FSP

 Dois personagens, com trajetórias díspares, uniram-se para cometer um crime que explica os meios empregados para se fazer política –ou certo tipo de política que se impôs nos últimos anos no país.

A folha corrida de Walter Delgatti Neto, o Vermelho de Araraquara, mostra uma vida atribulada, com passagem pela polícia por tráfico de drogas, estupro, falsificação de documentos, golpes em instituições financeiras. O hacker ficou famoso ao invadir celulares de autoridades da Lava Jato, revelando a parcialidade da operação e ajudando Lula, hoje presidente da República, a se livrar da prisão. Delgatti é o Vermelho em função da cor do cabelo, não há conotação ideológica no apelido, mas naquele momento ele foi considerado um herói das esquerdas e, em especial, do PT, embora sempre tenha negado qualquer motivação partidária.

No caminho do hacker estava uma parceira do barulho. Fundadora do grupo Nas Ruas, Carla Zambelli ganhou notoriedade em 2013 com as jornadas de junho. Participou das manifestações pelo impeachment de Dilma, elegeu-se deputada na onda bolsonarista, acumulou processos por divulgar fake news. Na véspera do segundo turno de 2022, correu de arma na mão atrás de um homem.

Em depoimento à PF, Delgatti disse ter recebido um pedido de Zambelli para invadir uma urna eletrônica a fim de demonstrar a fragilidade do sistema. Não conseguindo, ele entrou no Conselho Nacional de Justiça e incluiu dados falsos, como um mandado de prisão contra o ministro Alexandre de Moraes. O serviço lhe rendeu R$ 40 mil, além de uma conversa íntima com Bolsonaro, que lhe abriu as portas do Ministério da Defesa.

A PGR acaba de denunciar a deputada e o hacker pelos crimes de invasão e falsidade ideológica. Réu confesso, Delgatti está preso. Reeleita com a terceira maior votação do país pelo sistema que gostaria de abolir, Zambelli está sob proteção da Câmara.

Depois da festa do submarino de Janja, Macron e Lula, Marinha sofre bloqueio de verbas e demite 200, OESP

 Por Marcelo Godoy

Fazer festa todo mundo gosta. Lula, Janja e Macron participaram de uma dessas no dia 27 de março, quando a primeira-dama, acompanhada pelo comandante da Marinha, almirante Marcos Sampaio Olsen, subiu uma escadaria com um espumante na mão e quebrou a garrafa no casco do S-42, o submarino Tonelero, em Itaguaí, no Rio. A cerimônia foi bonita. Teve discurso de Lula: “Nesse estaleiro de Itaguaí vislumbramos a imensidão do espaço marítimo brasileiro”. Tudo ia bem. Até a hora de pagar a conta.

A festa no lançamento do submarino Tonelero com Janja, Lula e Macron no complexo naval de Itaguaí, no Rio. À direita, o almirante Olsen.
A festa no lançamento do submarino Tonelero com Janja, Lula e Macron no complexo naval de Itaguaí, no Rio. À direita, o almirante Olsen. Foto: Marinha do Brasil

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Um dia depois do encontro entre os presidentes da França, Emmanuel Macron, e do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, no lançamento do Tonelero, a Força Naval teve bloqueados 83% dos recursos destinados justamente ao Prosub, o programa estratégico de desenvolvimento de submarinos da Marinha. Ele prevê a construção de quatro embarcações convencionais da classe Scorpène, produzidos em parceria com a França, em Itaguaí. E também a edificação ali da base naval que abrigará o grupo, inclusive uma quinta embarcação, a futura joia da coroa, o Álvaro Alberto, primeiro submarino a propulsão nuclear do País.

Como resultado dos atrasos e cortes e bloqueios de verba do programa, a Itaguaí Construções Navais (ICN) se adaptou à realidade orçamentária e anunciou, rapidamente, em abril, a demissão de 200 trabalhadores engajados na construção dos submarinos. Parte desses homens e mulheres assistiu à festança de Lula, Janja e Macron. “Eu te batizo, submarino Tonelero. Que Deus abençoe esse submarino e todos os marinheiros que aqui navegarem”, disse a primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, ao quebrar a garrafa no casco, na cerimônia do dia 27.

Procurada pela coluna, a Marinha lamentou as demissões na ICN. “Especialmente considerando tratar-se de trabalhadores qualificados no âmbito do Prosub. A redução da mão de obra qualificada do estaleiro construtor traz impacto nos prazos e custos dos submarinos convencionais em construção, bem como na construção do primeiro submarino nuclear convencionalmente armado do Brasil.” A coluna apurou que outros 400 funcionários podem perder o emprego em Itaguaí no segundo semestre se a conta do Prosub não for paga pelo governo. E que conta é essa?

A conta do Prosub e os cálculos da Defesa e do governo

Para entendê-la não bastam os dados só do Prosub, mas de toda a Pasta da Defesa diante da necessidade de o governo fazer os ajustes determinados pelos ministérios do Planejamento e da Fazenda. A dotação orçamentária da Marinha para 2024, considerando-se o programado apenas para o custeio e para os investimentos – não entram nessa conta o dinheiro das emendas parlamentares que a Força poderá receber, cerca de R$ 190 milhões – é de R$ 3,1 bilhões ou 27% do destinado ao Ministério da Defesa (MD).

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No lançamento do Tonelero, Janja foi a madrinha do submarino, durante o evento no complexo Naval de Itaguai, no Rio
No lançamento do Tonelero, Janja foi a madrinha do submarino, durante o evento no complexo Naval de Itaguai, no Rio Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Desse total, R$ 1,01 bilhão estava reservado para o custeio e R$ 2,08 bilhões para investimentos da Força Naval, cujo orçamento total atualizado, segundo o Portal da Transparência, é de R$ 32 bilhões, dos quais R$ 7,77 bilhões comprometidos com aposentadorias e pensões. Os dados mostram que dos R$ 3,1 bilhões programados para custeio e investimentos, a Força teve uma redução de R$ 466,8 milhões (13,1%). Foram R$ 168,9 milhões de recursos de custeio (14,2%), aquele que paga, por exemplo, as contas de água e de luz, e R$ 297,9 milhões reservados para investimento (12,5%).

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Parte dessa perda aconteceu em dois cortes. O primeiro ocorreu em março. Ele foi de R$ 168 milhões e atingiu todos os setores da Marinha. O almirantado chegou ao ponto de trabalhar com um cenário de paralisação das atividades da Força em setembro. Logo depois, veio a decisão da Junta de Execução Orçamentária (JEO) do governo de bloquear R$ 446 milhões das despesas discricionárias do Ministério da Defesa. Este, por sua vez, definiu que quase metade desse valor seria absorvido pela Marinha, que entrou com R$ 199,9 milhões para “pagar a conta”, cujo impacto será totalmente absorvido pelo Prosub.

A JEO é um colegiado que reúne quatro ministérios – FazendaPlanejamentoGestão e Inovação e Casa Civil. Ele toma suas decisões a partir de informações recebidas dos ministérios em razão das projeções feitas pela Secretaria de Política Econômica, da Fazenda. Um detalhe: o decreto com o bloqueio dos recursos, assinado por Lula e pelos ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Simone Tebet (Planejamento), foi publicado no dia 28 de março. Ou seja, enquanto Janja banhava o Tonelero com espumante no dia 27, a JEO tirava a escada debaixo dos pés do governo para futuras festanças em Itaguaí.