quarta-feira, 28 de abril de 2021

Antonio Delfim Netto O Congresso traiu a sociedade, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

A lambança produzida no Orçamento aprovado pelo Congresso é conhecida: acotovelaram-se R$ 49 bi em emendas parlamentares, mais de R$ 30 bi delas de caráter não obrigatório, em detrimento de um maior espaço às urgências da população pelos efeitos do recrudescimento da pandemia sobre a saúde e a renda, além da retirada do auxílio emergencial do teto de gastos.

Sancionado na semana passada pelo presidente, após muito ruído e diz que me diz, a peça órfã trouxe algum corte nas emendas (R$ 11,9 bi) e nas despesas do Executivo. Retiraram-se do alcance do teto os gastos diretos com a pandemia, como o programa de corte de jornadas e salários e o de acesso a crédito pelas pequenas empresas, ambos a um custo total estimado de R$ 15 bi, embora, formalmente, não tenham sido estabelecidos limites --um mau presságio.

É falso, portanto, que não havia espaço no Orçamento, mas sim que, acolhidos os interesses menores e paroquiais, não couberam as necessidades maiores. Por mais que não se discuta a urgência das despesas estritamente relacionadas à pandemia, e até a eventual necessidade de excetuá-las do teto em 2021, como convencer a sociedade de que o Orçamento não comportava dois programas cujo custo é cerca de 30% do montante destinado às emendas parlamentares?

Como convencê-la de que o Brasil precisa continuar voando às cegas em suas políticas públicas, pois não foi possível acomodar R$ 2 bi para a realização do Censo? Como dizer que era infactível melhorar a dotação do Bolsa Família para, no segundo semestre, dar conta do fim auxílio emergencial? Como explicar para os 2.700 doutores aprovados por mérito no último edital do CNPq, entre os 4.300 que pediram bolsa, que apenas 400 deles serão contemplados pois "não tinha onde cortar"? Como dizer que foi inevitável passar a tesoura em R$ 1,35 bi da agricultura familiar (Pronaf)?

Como os espectros que produziram tal acordo político no Legislativo e no Executivo irão convencer seus eleitores de que tudo foi feito na melhor tentativa de representar os seus interesses? Como (e quando) irão prestar contas dos recursos gastos em tais emendas, muitas vezes de maneira pouco transparente?

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Como explicar que os recursos federais repassados a alguns estados em 2020 foram utilizados para pagar despesas de custeio e 13º salário de funcionários públicos? Como racionalizar que foi possível derrubar um veto de 2009 e gerar uma despesa de R$ 2,7 bi para a União em 2021 ao permitir uma reestruturação de carreiras na Receita Federal?

Como encarar os brasileiros que perdem familiares, amigos, renda e emprego há mais de um ano? Como?

O QUE A FOLHA PENSA Errado por vias tortas

 Como se não houvesse temas mais urgentes a tratar num estado que sofre terrivelmente com a pandemia, a Assembleia Legislativa de São Paulo prepara-se para votar um projeto que, a pretexto de proteger os mais jovens, estimula a censura e a discriminação de minorias.

O estapafúrdio PL 504/2020, de autoria da deputada Marta Costa (PSD), veda qualquer publicidade no território paulista “que contenha alusão a preferências sexuais e movimentos sobre diversidade sexual relacionados a crianças”.

Numa emenda ao texto, a deputada Janaina Paschoal (PSL) substituiu “preferências” por “orientação”, e incluiu os adolescentes.

Em sua justificativa ao diploma, Costa alude a um “desconforto emocional” que seria imposto a “inúmeras famílias” por um suposto “uso indiscriminado” desse tipo de propaganda. Paschoal vai além, mencionando riscos de jovens “se declararem transexuais e serem submetidos a tratamentos hormonais precoces”.

Compreensivelmente, a proposta gerou reações de outros parlamentares e de diversas entidades, que apontaram o caráter preconceituoso e discriminatório contra a comunidade LGBT.

Com efeito, em sua redação torta e vaga, o projeto institui uma deplorável censura prévia a determinados tipos de publicidade, como as que envolvam temáticas LGBT ou mostrem casais homoafetivos. Ferem-se, dessa maneira, princípios fundamentais da Constituição, como apontou a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Não bastassem os vícios de conteúdo, o projeto é também inconstitucional na forma. A Carta de 1988 é cristalina ao estabelecer, no artigo 22, que compete à União, e não a estados e municípios, legislar sobre propagandas comerciais.

Discussões acerca dos limites da publicidade infantil, bem como preocupações sobre possíveis excessos sexuais em anúncios, são pertinentes, por certo, e ocorrem há tempos. Descabido é que se busque tratar da matéria por meio de uma campanha ideológica persecutória e ao arrepio da Constituição.

Tampouco se deve abordar o tema pelo prisma autoritário da proibição, que não só agride o direito à informação como faculta ao Estado a prerrogativa de substituir os pais na decisão do que pode ser visto por seus filhos.

Por imperfeita que seja, a autorregulamentação ainda constitui o melhor caminho para se lidar com essa e outras questões similares.

editoriais@grupofolha.com.br


O QUE A FOLHA PENSA - Antes tarde

 Um dos contenciosos narrativos mais dolorosos do século 20, o genocídio armênio sempre foi usado pelas grandes potências como instrumento diplomático na sua complexa relação com a Turquia.

Situada na encruzilhada da Europa com a Ásia, a antiga sede do Império Otomano tem papel crucial para o Ocidente —ameaça no passado, hoje integrante da Otan, o clube militar liderado pelos EUA.

Ao longo dos anos, europeus e americanos foram mais ou menos críticos ao papel turco na morte de talvez 1,5 milhão de armênios nas perseguições iniciadas em 1915.

Como elementos fundadores da República da Turquia em 1922 já davam as cartas no ocaso otomano, o país sempre rejeitou a noção de extermínio, colocando as atrocidades na conta das agruras da guerra mundial que se desenrolava.

Com o advento da União Soviética, absorvendo a Armênia, a causa do genocídio foi integrada à disputa geopolítica com a Turquia.

Um novo capítulo dessa história se deu no sábado (24), quando o americano Joe Biden tornou-se o primeiro presidente do país a reconhecer o genocídio como tal.

Washington e Ancara se estranham desde que Donald Trump se recusou a extraditar o clérigo muçulmano que inspirou o golpe fracassado contra o presidente Recep Tayyip Erdogan em 2016.

O turco aproximou-se de Moscou e comprou sofisticados sistemas antiaéreos, o que irritou os EUA, que expulsaram Ancara do projeto do avançado caça F-35.

Como os atritos na Síria, na Líbia e no Cáucaso mostram, no último caso com o tempero de envolver a aliada russa Armênia, a relação com Moscou é instável, mas ao fim dá mais cacife a Ancara.

Sob a vista grossa de Trump, que espezinhava a Otan, Erdogan atormenta seus colegas, em especial a rival histórica Grécia —ambos os países disputam recursos energéticos em torno de Chipre.

A França chegou a pedir a expulsão da Turquia do grupo, algo difícil na prática: quase toda intervenção ocidental recente no Oriente Médio passou pela base turca de Incirlik, onde há bombas nucleares americanas armazenadas.

Biden sinaliza agora apoio a seus colegas europeus, após anos de insultos de Trump, e reafirma sua política de falar grosso quando há direitos humanos envolvidos.

Foi assim com aliados como o príncipe saudita Mohammed bin Salman e adversários como o presidente russo, Vladimir Putin.

Com Erdogan, Biden arrisca um pouco mais, talvez considerando que a assertividade externa turca seja a de um tigre de papel.

editoriais@grupofolha.com.br

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