domingo, 30 de abril de 2017

Investigar presidente não é ilegal, diz Celso de Mello, OESP



Decano da Corte diverge do procurador-geral da República, que não incluiu Temer em lista enviada ao Supremo


Luiz Maklouf Carvalho / ENVIADO ESPECIAL
30 Abril 2017 | 03h00
BRASÍLIA - O ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal, disse ao Estado, em entrevista exclusiva na noite da última terça-feira, 25, que a eventual investigação do presidente Michel Temer em inquérito da Operação Lava Jato não desrespeita a Constituição. É o contrário do que entende o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que excluiu Temer da lista de possíveis investigados que mandou ao STF, em março passado.
Janot explicou ao ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no STF, que não pediu para Temer ser investigado porque a Constituição dá ao presidente da República imunidade temporária por atos estranhos ao exercício das funções (artigo 86, parágrafo 4.º) - no caso, as acusações de alguns delatores sobre arrecadação de dinheiro para campanhas do PMDB. Fachim acolheu o argumento sem manifestar-se a respeito. Só o fez na semana passada - mandando ouvir Janot -, depois que o PSOL entrou com um recurso pedindo que Temer seja incluído na investigação. O recurso ainda não tem data para ir a julgamento.

Foto: ANDRÉ DUSEK/ESTADÃO
CELSO DE MELLO
Celso de Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal

"O Supremo Tribunal Federal, em dois precedentes, entendeu que a imunidade constitucional dada ao presidente da República, protegendo-o contra a responsabilização em razão de atos estranhos ao exercício do mandato, não há de impedir a instauração de investigação criminal", disse Celso de Mello. "É preciso fazê-la, porque as provas se dissipam, as testemunhas morrem e os documentos desaparecem", acrescentou. "Eu sei que essa não é a posição do procurador-geral da República - não obstante o Supremo tenha dois precedentes julgados pelo pleno".
Os dois precedentes são de 1992 - ambos envolvendo o então presidente Fernando Collor de Mello por fatos estranhos ao mandato presidencial. "Eu fui relator de um, e o ministro Sepúlveda Pertence de outro", relembrou o decano. "E o Supremo Tribunal Federal foi muito claro ao reconhecer a legitimidade da investigação policial ou da investigação criminal promovida pelo Ministério Público." O Supremo entendeu, nesses dois precedentes, que a imunidade temporária do artigo 86, parágrafo 4.º, tem por finalidade impedir que o presidente da República seja responsabilizado. "A responsabilização supõe, na área penal, o oferecimento de uma denúncia, e o prosseguimento de um processo criminal perante o Supremo", explicou o ministro. "Investigação é outra coisa, e o Supremo já decidiu que deve ser feita".
O ministro decano recebeu o Estado no começo da noite da terça, 25, em seu gabinete no terceiro andar do anexo 2. Depois de quase três horas de entrevista - em que falou de Lava Jato e delação premiada, foro privilegiado, processo contra Dilma Rousseff e Michel Temer no TSE, entre outros temas -, ficou mais duas fazendo uma apresentação animada e detalhada de uma impressionante coleção de estimadas quatro mil músicas. Quando acabou, sem sinais visíveis de cansaço, já era uma hora da madrugada da quarta-feira.
No próximo maio, se a pauta prevista não mudar, o Supremo vai enfrentar, por proposta do ministro Luís Roberto Barroso, a questão do foro privilegiado. Qual é a sua posição a respeito?
Eu entendo que não deve existir a prerrogativa de foro, para ninguém, porque ela fere gravemente o princípio republicano da igualdade. Ao mantê-la, e além de tudo ampliá-la, a Constituição de 1988, pretendendo ser republicana, mostrou-se estranhamente aristocrática.
O sr. é contra, e ponto final?
Entendo que qualquer pessoa, autoridade pública ou não, que eventualmente for acusada da prática de algum crime, será processada e julgada em primeira instância. Sei, entretanto, que essa é uma tese  que certamente pode encontrar muitas dificuldades. Então, se ela não prevalecer, eu também preconizo, como solução alternativa, mediante reforma constitucional, que se reconheça a prerrogativa de foro apenas em relação aos chefes dos três poderes da República.
O ministro Barroso está propondo que o Supremo possa restringir a prerrogativa de foro para os casos de crimes praticados no exercício da função. Cabe ao Supremo alterar esse ponto, ou só ao Congresso?
A modificação do texto constitucional depende, em princípio, de um procedimento formal de reforma da própria Constituição, poder que é do Congresso Nacional. Mas o Supremo tem o poder de interpretar a Constituição. Cabe a ele superar determinados  dissensos e controvérsias em torno da aplicabilidade do texto constitucional. Já o fez, duas vezes, restringindo prerrogativas como a imunidade parlamentar. Deve fazê-lo novamente agora.
O que vai acontecer se o Supremo restringir o foro?
Isso pode ter consequências práticas, com a redução do volume processual no Supremo. O mais importante é a mensagem poderosa do Supremo, dizendo que deseja ver mantida a integridade da República, respeitado notadamente o dogma que é a idéia da igualdade.
Está na hora de o Brasil ter uma nova Constituição - como os juristas José Carlos Dias, Flávio Bierrenbach e Modesto Carvalhosa defenderam em artigo recente no 'Estado'?
Sim, eu li. É uma proposta interessante, que merece reflexão, um amplo debate nacional, para quem sabe viabilizar uma solução que permita ao Brasil superar esse impasse que resulta do caráter extremamente abrangente de nossa Constituição.
Está na hora de partir para uma nova Constituição?
Não sei se poderia dar-lhe uma resposta, porque tenho a impressão de que essa questão acabará vindo para cá. Alguns poderão entender que a Constituição só poderá ser reformada nos termos por ela estabelecidos.
Emendas, emendas e mais emendas...
Hoje já são 101 emendas - seis de revisão, e mais 95. A constituição portuguesa de 1976 foi mais sábia que a nossa, de 1988, porque previu a sua reforma a cada quinquênio, facilitando o procedimento revisional. Lá é a cada cinco anos, e nada impede que haja uma revisão extraordinária antes de decorrido o quinquênio.
Quem é que mais demora no processamento da Operação Lava Jato - o Ministério Público ou o Supremo Tribunal Federal?
No que concerne à atuação do Supremo ela se mantém em dia.  São procedimentos investigatórios complexos, que estão na esfera de atuação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal.  Não cabe ao Supremo Tribunal Federal oferecer denúncia. Essa é uma função privativa do Ministério Público, como órgão da acusação penal. Então, o Supremo fica nessa dependência de ser formalmente provocado por quem dispõe de legitimidade ativa para oferecer a denúncia.
O sr. não acha que o procurador-geral Rodrigo Janot está inundando o Supremo com tudo que chega lá, aparentemente sem checagem mínima preliminar? Às vezes vem até questões já prescritas, como nessas últimas delações...
A investigação penal constitui um dever jurídico do Ministério Público e representa uma resposta legítima do Estado à suposta prática de infrações penais. O MP não pode quedar-se inerte. Ele precisa atuar. É o titular exclusivo da ação penal pública.
Como é que o sr. viu a divulgação recente das delações dos ex-executivos da Odebrecht?
Em primeiro lugar nós temos no Brasil, hoje, algumas salvaguardas para evitar uma falsa incriminação de alguém por conta de um delator. Em segundo lugar, a delação premiada não é prova. A própria lei define, e o Supremo já o disse, algumas vezes, que a delação premiada é um meio de obtenção de provas.
O sr. sempre ressalta este ponto. Por quê?
Porque a lei brasileira proíbe que o juiz condene alguém quando a única evidência incriminadora resultar de depoimento de um agente colaborador. E não importa que esse depoimento tenha sido prestado por um, dois, quatro ou dez delatores. A presunção constitucional de inocência não deixa de prevalecer pelo só fato de alguém ter sido delatado. É preciso que haja a corroboração por meio de fontes autônomas de prova, para que então o Judiciário possa, se for o caso, proferir um juízo condenatório.
Uma ideia forte da força-tarefa da Operação Lava Jato, começando pelo coordenador Deltan Dallagnol, é de que o princípio da presunção da inocência passe por uma relativização.
De modo algum. Eu participei no Supremo dos três julgamentos plenários que discutiram o significado e o alcance da presunção constitucional de inocência. Fui vencido. Mas continuo a entender que o trânsito em julgado da condenação penal há de ser real.  Não tem sentido proceder-se a uma antecipação ficta do trânsito em julgado, sob pena de completa nulificação de um direito fundamental, objeto de uma conquista histórica da cidadania em face da opressão do Estado. O Supremo Tribunal Federal, lamentavelmente, restringiu o alcance de um direito fundamental. Eu dissinto respeitosamente dessa nova orientação jurisprudencial, entendo que ela flexibiliza um direito fundamental de modo inaceitável.
O sr. ainda vê possibilidade de reversão dessa decisão?
No momento eu tenho a impressão de que a contabilidade jurisdicional do Supremo é francamente desfavorável à restauração desse direito fundamental. E eu lamento isto. Não apenas como juiz, mas como um cidadão da República.
Essa decisão do Supremo teve grande influência da Operação Lava Jato. O juiz Sérgio Moro, e a força-tarefa do MPF, em Brasília, e em Curitiba, defenderam ardorosamente essa alteração sobre o trânsito em julgado, que permite a prisão já desde a segunda instância.
Na posse da ministra Cármen Lúcia, quando eu fui convidado a falar, eu disse, e agora repito, que o Supremo Tribunal, no contexto da Operação Lava Jato, e de qualquer outra, garantirá, de modo pleno, o direito a um julgamento justo, imparcial e independente, com rigorosa observância de um dogma essencial ao sistema acusatório, consistente na paridade de armas.
Qual é a importância da paridade de armas?
Ela impõe a necessária igualdade de tratamento entre o órgão da acusação estatal, o Ministério Público, e aquele contra quem se promovem atos de  persecução penal. Esse dogma é legitimado pelos princípios estruturantes que dão sentido, fundamento e suporte ao estado democrático de direito. E repele a tentação autoritária de presumir-se provada qualquer acusação criminal e de tratar como se culpado fosse aquele a favor de quem milita a presunção constitucional da inocência.
É um puxão de orelha no Ministério Público Federal e na força-tarefa da Lava Jato?
Eu prefiro não interpretar as minhas palavras. Mas elas foram ditas na presença do chefe do Ministério Público da União, do presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e de outras altas autoridades da República. Essas palavras tiveram a intenção de alertar para determinados princípios sensíveis e básicos da nossa organização democrática. Não se pode presumir provada qualquer acusação criminal. Nós não podemos recuar historicamente no tempo ao regime do Estado Novo.
Por que o sr. mencionou o Estado Novo?
Porque Vargas, no dia 20 de dezembro de 1937, passados apenas quarenta dias do golpe que  instituiu o Estado Novo no Brasil, edita o decreto-lei 88 - que cuidava dos processos e  julgamentos dos crimes contra a segurança nacional. No artigo 20 desse decreto-lei, observando a lógica autocrática do regime político então imposto ao País, esse decreto-lei dizia que se presumia provada a acusação criminal, competindo ao réu demonstrar a própria inocência. Eu tenho enfatizado, em vários acórdãos, que a acusação representa mera proposta de condenação. Uma acusação jamais se presume provada. A acusação há de ser demonstrada de modo pleno, mediante provas lícitas. E o ônus da prova, no que se refere à materialidade do fato criminoso, à autoria do evento delituoso, recai por inteiro no órgão da acusação penal.
O sr. tem alguma preocupação institucional com a Operação Lava Jato?
A Operação Lava Jato representa um turning point, um ponto decisivo no processo de investigação de práticas delituosas perpetradas à sombra do poder. Ela transmite ao cidadão  o sentimento de confiança na prática das instituições republicanas. Se, eventualmente, houver algum excesso ou algum desvio, aí estão os tribunais, cuja razão de ser reside precisamente no controle da legitimidade dos atos estatais, promanem eles do poder Executivo, Legislativo ou Judiciário.
O Tribunal Superior Eleitoral tem uma batata quentíssima na mão: o julgamento da ação que pede o afastamento da chapa eleita em 2014 - Dilma Rousseff e Michel Temer. Qual é a sua expectativa com esse julgamento, prevista para ainda este semestre?
A Constituição não tolera o abuso de poder político, não admite o abuso de poder econômico. E quando isso ocorre, e desde que devidamente comprovado, há um instrumento processual previsto pela própria constituição, a Ação de Impugnação de Mandato Eletivo. E é precisamente o que ocorre. Agora, é preciso que haja prova, uma prova lícita, plena, que demonstre a eventual ocorrência ou não de abuso de poder econômico e/ou do abuso de poder político. Mas não posso opinar especificamente sobre um processo que está em andamento.
A conveniência política deve interferir num julgamento como este?
A interpretação da Constituição e a aplicação do texto constitucional não podem subordinar-se a interesses casuísticos ou a circunstâncias conjunturais. Portanto, manobras casuísticas podem contaminar o processo institucional, o processo de poder. Não estou me referindo especificamente a esse caso, porque não devo me pronunciar sobre esse caso. Mas essa é a percepção que todos devemos ter.
O sr. tem um ex-colega de pensão, o ex-ministro José Dirceu, que hoje é um dos presos mais longevos da operação Lava Jato.
É verdade. Fomos colegas na pensão do Abelardo, em uma travessa da Avenida Brigadeiro Luís Antônio. O prédio em si ainda existe, mas a pensão fechou há alguns anos. Eu conheci o Zé Dirceu quando ambos fizemos vestibular. Ele entrou na PUC, eu entrei na USP. Em virtude dele a pensão tinha visitas frequentes do DOPS (risos).  Mas ele ficou lá até agosto de 68, quando foi para aquela reunião da UNE, foi preso e, depois, banido do País. Voltei a encontrá-lo em 1980, no gabinete do Flávio Bierrenbach, na Assembleia Legislativa de São Paulo. Revendo, voltando ao passado, eu realmente vejo que essa situação atual é totalmente inusitada. Jamais imaginei que isso pudesse ocorrer com ele, tendo em vista a atuação dele como líder estudantil, as suas posições políticas na época. Isso me surpreendeu.
Como o sr. vê esse longo tempo de prisão - seja no caso dele, seja no caso do empresário Marcelo Odebrecht, para falar dos mais conhecidos?
Em ambos os casos essas pessoas já sofreram condenação a longas penas de prisão.
Mas ainda sem julgamento pela segunda instância.
De qualquer maneira já há duas sentenças.
Não lhe preocupa não ter um limite para a prisão cautelar - como essas?
O Supremo tem uma jurisprudência dizendo que a complexidade da matéria, e o excesso de pessoas sob investigação, pode justificar eventualmente uma prazo que seja considerado razoável. Agora, há propostas legislativas interessantes estabelecendo um limite máximo para a duração das prisões cautelares, como já acontece em alguns países, em que o limite de  duração varia de acordo com a gravidade do delito. Isso é importante. Não vejo porque não possa ser introduzido na legislação processual penal brasileira.

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