Houve mortes, perdas e destruição, mas também solidariedade em razão das chuvas e das inundações que atingiram o Peru
Mario Vargas Llosa
02 Abril 2017 | 05h00
Minha vinda ao Peru coincidiu com uma das piores catástrofes naturais a se abater sobre o país em toda sua história. Há muito tempo, no verão, o fenômeno El Niño provoca mais chuvas do que o normal e às vezes inundações e deslizamentos de terra que resultam em danos materiais e humanos, principalmente ao longo do litoral norte do país. Mas este ano o aquecimento das águas do Pacífico e sua consequente evaporação quando chega à Cordilheira dos Andes têm acarretado verdadeiros dilúvios, destruindo estradas, casas, consumindo aldeias, inundando cidades e provocando tragédias por toda a parte.
As estatísticas - uma centena de mortos, mais de cem mil afetados, pontes e rodovias destruídas, prejuízos que reduziram pelo menos em um ponto o PIB peruano - não dão conta do sofrimento de milhares de famílias, que particularmente em Piura, Lambayeque, Ancash, Apurímac e La Libertad, e com repercussões em todo o território nacional, viram sua vida desmoronar, perderam entes queridos, seus meios de sustento, e tiveram seu futuro destroçado da noite para o dia pela incerteza e a ruína.
As últimas imagens de Piura que vi na TV, quando comecei a escrever este artigo me deixaram horrorizado. As águas do rio tomaram todo o centro da cidade e na Plaza de Armas, ao lado da catedral, e na avenida Grau, as pessoas andavam com a água até a cintura, em alguns trechos até os ombros, num imenso lago de lama no qual flutuavam animais, móveis, utensílios domésticos, móveis, arrastados pelo turbilhão que invadiu o interior das casas e edifícios. O Colégio San Miguel, onde concluí meu curso secundário, uma antiga e nobre casa republicana que já era uma ruína repleta de ratos e seria transformada em um centro cultural - promessa não cumprida pela incúria das autoridades - pelo visto está condenada. Sinto vertigens ao imaginar as pessoas e os velhos arrastados pelas inundações e a enxurrada.
Quando vivi em Piura pela primeira vez, em 1946, a cidade e seus arredores, envoltos nas areias desérticas, morria de sede. O Rio Piura era só cascalho e as águas só chegavam no verão, quando ocorria o degelo na cordilheira e o gelo se transformava em cascatas e arroios, trazendo vida às terras calcinadas da costa. A chegada das águas a Piura era uma festa, com fogos de artifício, bandas de música, valsas e bailes populares. Até o bispo colocava seus pés na água para abençoá-la. As crianças mais valentes mergulhavam no rio do ponto mais alto da ponte velha. E 65 anos depois as mesmas águas que trouxeram ilusões e prosperidade hoje provocam a morte e a devastação em uma das regiões peruanas que mais se modernizaram e cresceram nos últimos tempos.
Curiosamente, esta tragédia parece ter sensibilizado profundamente a sociedade em geral, pois a população inteira do Peru se uniu em um movimento de solidariedade e compaixão para com as vítimas. Uma mobilização extraordinária de pessoas de todas as condições que, deixando de lado preconceitos, rivalidades políticas ou religiosas, ajudam como podem, levando cobertores e colchões, fazendo coletas, armando tendas nas zonas de emergência ou instalando cozinhas populares.
Enchentes deixam dezenas de mortos no Peru
É bom dizer que, à frente desse movimento está o governo todo, a começar pelo presidente da República e seus ministros, que têm visitado todos os lugares mais atingidos, dirigindo as operações de resgate com as brigadas de militares e voluntários civis.
Eu mesmo vi minhas duas netas menores, Isabella e Anaís, preparando doces e guloseimas com seus colegas de classe para vender e arrecadar fundos para ajudar as vítimas. Não me lembro de uma atitude tão generosa e tão unânime da sociedade peruana diante de uma tragédia nacional (que, embora com longos intervalos, nunca deixa de ocorrer).
Talvez este fato excepcional seja uma resposta inconsciente à enorme injustiça que é a catástrofe do El Niño Costeiro (como foi batizada). Apesar de ainda haver muitas coisas que vão mal no Peru, a verdade é que, somando os prós e contras, desde que caiu a última ditadura no país, em 2000, o Peru está no bom caminho. A democracia funciona e há um enorme consenso nacional no sentido de manter este sistema, aperfeiçoá-lo e depurá-lo, que é o mais adequado - na verdade o único - para se avançar verdadeiramente no campo econômico, social e cultural, criando maiores oportunidades para todos, fazendo progredir a classe média, estimulando o investimento e respeitando os direitos humanos, a liberdade de expressão e a legalidade.
Desde 2000 tivemos quatro governos nascidos de eleições livres e, apesar de a corrupção ter piorado na gestão de pelo menos dois deles, o certo é que o país progrediu nesses 17 anos mais do que nos 50 anos anteriores. Ninguém duvida que a corrupção é um veneno que ameaça a vida democrática. Mas a liberdade é o instrumento primordial para combatê-la e erradicá-la. E também uma imprensa livre que denuncie essa corrupção, um Judiciário independente e corajoso que não tema indiciar e condenar os poderosos que cometem crimes. Uma opinião pública que não tolere o suborno e a ladroagem.
Enchentes deixam mortos no Peru
Tudo isto vem ocorrendo neste Peru sobre o qual, de repente, se desencadearam os elementos da natureza para golpeá-lo ferozmente. Talvez os peruanos que reagiram de modo tão rápido, ajudando com tanto empenho as vítimas, estejam dizendo à natureza cega e cruel que não se deixarão abater pelo que sucedeu, que lutarão para reconstruir o que foi destroçado e, tirando a lição, tomarão precauções para que as enchentes no futuro sejam menos destruidoras.
Escrevi este artigo em Arequipa, minha cidade natal, onde devo fazer uma nova entrega de livros à biblioteca que leva meu nome.
Enquanto redigia, veio-me à memória, junto com as imagens da população de Piura com água até o pescoço, entre os tamarindos da Plaza de Armas, um personagem literário que sempre admirei: Jean Valjean, o herói de Os Miseráveis. Valjean foi alvo das injustiças mais monstruosas, ficou preso durante muitos anos por ter roubado um pão; Javert, policial tenaz e impiedoso, o perseguiu durante toda a sua vida, não lhe deu um único dia de paz. Mas Valjean nunca se deixou abater ou vencer pela raiva ou pela desmoralização. Sempre se levantou, enfrentando a adversidade com a consciência limpa e o desejo de sobrevivência intacto, até o instante supremo da morte, com os candelabros nas mãos de Monsenhor Bienvenue, que lhe foram entregues por Jean Valjean, lhe dizendo “eu te conquistei para o bem”.
Há momentos privilegiados em que os países podem ser tão admiráveis como os grandes personagens literários. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
*MARIO VARGAS LLOSA É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA
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