domingo, 1 de março de 2020

Ruy Castro A quebra da cadeia, FSP

Enquanto havia os cantores e os compositores, as músicas atravessavam gerações

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O que tinham em comum Carmen Miranda, Aracy de Almeida, Dircinha Baptista, Dalva de Oliveira, Linda Baptista, Elizeth Cardoso, Marlene, Nora Ney, Doris Monteiro, Angela Maria, Sylvia Telles, Elza Soares, Nara Leão, Elis Regina? Foram algumas das maiores cantoras brasileiras. E eram cantoras-cantoras, não compositoras-cantoras. Nenhuma jamais botou uma semifusa ou palavra no papel. Tinham quem fizesse isso para elas: Ary Barroso, Assis Valente, Noel Rosa, Wilson Baptista, Ataulpho Alves, Dorival Caymmi, Herivelto Martins, Lupicinio Rodrigues, Billy Blanco, Antonio Maria, Tom Jobim, Baden Powell, Zé Kéti, Edu Lobo —todos eles, compositores-compositores, não compositores-cantores.
É verdade que Noel, Ataulpho, Caymmi, Jobim e Zé Kéti também cantavam, mas só depois que suas músicas já tinham passado para a eternidade na voz dos cantores profissionais, homens ou mulheres. E não se diga que Dolores Duran e Maysa foram exceções entre as mulheres. Dolores levou toda a sua vida profissional como cantora e só no fim revelou-se fabulosa compositora. E Maysa, que começou cantando suas músicas, logo as trocou pelo grande repertório à sua disposição. 
Escrevo isso porque alguns leitores se deixaram tocar por minha coluna de sexta (28), em que falei da antiga e benigna cadeia de compositores e cantores, que fazia com que uma música tivesse sucessivas gravações diferentes e atravessasse gerações. Cadeia esta que se rompeu a partir dos anos 80, quando os grupos ou cantores passaram a cantar apenas o que compunham.
Em consequência, desapareceram os cantores-cantores, os compositores-compositores e, exceto por heroísmos particulares e autofinanciados, a gravação de discos de música instrumental. Para ser justo, essa quebra aconteceu em grande parte da música popular do mundo. 
Pior para a música popular e pior para o mundo.
A cantora Elis Regina, em 1966
A cantora Elis Regina, em 1966 - Folhapress
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Ações de Moro em defesa de Bolsonaro cumprem função política, FSP

Em seus primeiros dias no cargo, Sergio Moro disse que não cabia ao ministro da Justiça agir como advogado de integrantes do governo. A ideia era fustigar seus antecessores e, principalmente, fugir de perguntas incômodas sobre os gabinetes da família presidencial ou sobre o laranjal da sigla de Jair Bolsonaro.
O ex-juiz se livrou de alguns desses abacaxis, mas começou a se sentir mais confortável no papel de defensor do chefe. A mudança de comportamento coincidiu com o aumento das tensões entre Moro e Bolsonaro. Aos poucos, o ministro multiplicou declarações públicas para afastar suspeitas contra o presidente e propôs investigações para protegê-lo.
Em outubro do ano passado, Moro mudou de ideia sobre o silêncio prometido no início do governo e defendeu o presidente quando a Folha publicou planilhas que sugeriam que parte do dinheiro de candidaturas laranjas do PSL havia beneficiado a campanha de Bolsonaro.
No mesmo mês, o ministro pediu que a Polícia Federal investigasse o porteiro que disse, num depoimento desmentido meses depois, que um dos suspeitos de assassinar Marielle Franco havia ido à casa de Bolsonaro. A investigação era da Polícia Civil do Rio, mas o ex-juiz alegou que havia ofensa à honra do presidente.
Essa ferramenta começou a ser usada com mais frequência. O Código Penal diz, aliás, que cabe mesmo ao ministro da Justiça requerer ações em casos do tipo. Moro exerce essa competência com distinção —e função predominantemente política.
O ministro já pediu uma investigação contra Lula pelo discurso em que o petista ligou Bolsonaro a milícias. Depois, sua pasta solicitou inquérito sobre um festival punk cujo cartaz exibia o presidente esfaqueado na cabeça. O Facada Fest tem esse nome desde 2017 (antes, portanto, do atentado na campanha eleitoral).
A ilustração pode ser considerada ofensiva, ainda que não carregue uma ameaça objetiva. Os dois casos, no entanto, são interpretados facilmente como tentativas de constranger críticos e rivais de Bolsonaro.


Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).