segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

O canto da sereia que pode levar a PM ao descrédito, FSP

Renato Sérgio de Lima
A Prefeitura de São Paulo registrou, no primeiro semestre de 2019, 9.457 reclamações de barulho na cidade, incluindo os pancadões. Isso é equivalente a 52 ocorrências por dia. No distrito de Vila Andrade, onde fica localizada a favela de Paraisópolis, foram registradas apenas 60 reclamações neste mesmo período, o que é pouco frente ao total da cidade e é emblemático da desconfiança e do temor dos seus moradores em relação ao Poder Público.
E não à toa, a ação policial injustificável da madrugada deste domingo (1), que inacreditavelmente bloqueou saídas e encurralou participantes do baile funk, é uma daquelas ações que nos fazem entender as razões para o descrédito da população com as instituições públicas. Em nenhuma hipótese, uma ação policial que, para prender dois fugitivos, dispersa com brutalidade e violência uma festa com 5 mil participantes pode ser vista como técnica ou moralmente correta.
A Polícia Militar de São Paulo precisa apurar com máxima celeridade, transparência e rigor a sequência dos acontecimentos e a cadeia de comando de uma operação que, até aqui, fugiu de todos os padrões de excelência que marcam a corporação. Não é possível transigir com o descontrole da tropa empregada na operação.
Enganam-se as pessoas que imaginam que a ação visou a manutenção da ordem e louvam a morte de 9 pessoas nas redes sociais e nos comentários dos portais de notícias. A ação contrariou recomendações contidas em vários Manuais de Controle de Distúrbio Civil para que, na dispersão, é necessário controlar o fluxo da multidão e sempre deixar rotas de fuga desobstruídas, para que pisoteamentos e outras tragédias sejam evitadas  (a versão vigente de SP é classificada como sigilosa pela PMESP, mas a de 1997, disponível na web, também corrobora tais recomendações).
E, mais, no Controle de Distúrbios Civis (CDC), tropas de choque sejam acionadas e que o policiamento territorial não fique no primeiro plano da operação. Os vídeos que estão circulando mostram policiais armados, sem escudos e no meio da multidão. A chance de confrontos violentos é sempre maior, como acabou ocorrendo. Diante de uma perseguição que acabou enveredando para uma ação de CDC com 5 mil pessoas, em termos de ordem pública, a medida mais adequada teria sido ter desmobilizado a equipe envolvida e acionado retaguarda aérea e pedido de apoio da tropa de choque.
A investigação que foi anunciada pelo Governador João Doria deve buscar saber o que de fato ocorreu e quem autorizou esta ação. Nada justifica o que ocorreu e não é saudável para a corporação tentar minimizar os acontecimentos ou punir apenas os policiais que estavam na ponta.
A Prefeitura de São Paulo, na contramão da transparência, não permite mais buscas no campo de observações das reclamações do SP156, mas, usando dados de 2015 e 2016, o mapa abaixo mostra que pancadões fazem parte da vida na cidade e que, se plotarmos as unidades da PMESP, teremos que tais festas acontecem próximas aos Batalhões e Companhias da PM.

Ou seja, a polícia historicamente sabe e monitora quando estas festas acontecem e tem todas as condições de planejar operações e protocolos de contingência que evitassem uma ação como a desta madrugada, em Paraisópolis. Se não o fez, errou feio. E errou ainda mais sabendo que uma ação como esta jamais ocorreria na dispersão de uma festa em um bairro “nobre” da cidade e/ou em um clube de elite (lembremos a dispersão do Carnaval na Vila Madalena que, mesmo com episódios de confrontos, todos os protocolos são seguidos).
A experiência acumulada com o controle das manifestações desde 2013 é exemplo de que é possível fazer diferente.
É verdade que polícia sozinha não resolve o problema dos pancadões, mas não podemos aceitar, como nos alertou Thiago Amparo na Folha de S. Paulo, a naturalização da truculência. Paraisópolis convive com os pancadões sem nenhuma resposta mais efetiva do Poder Público para a oferta de espaços de convivência pacífica.
Na toada de populismos autoritários, a ação destrambelhada em Paraisópolis acontece dias depois do Governador João Doria publicar a sua Política Estadual de Segurança Pública sem qualquer meta de controle de uso da violência por parte das polícias. Por tudo isso, a PMESP deve evitar o canto da sereia do tempo social e não pode se sentir autorizada a abandonar o investimento de décadas no profissionalismo e na supervisão da atividade policial.
A Força Pública se constrói com confiança e eficiência democrática; não com demagogia e truculência.

domingo, 1 de dezembro de 2019

Luzes artificiais, FSP

Tabelamento de juros do especial vem a calhar para governo que teme povo nas ruas

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Paira artificialismo na decisão do governo liberal de Jair Bolsonaro de tabelar os juros cobrados no cheque especial. O Banco Central esforça-se em demonstrar que o assunto vinha sendo discutido há meses na esfera técnica e que se trata de deliberação do Conselho Monetário Nacional (CMN). Dos três assentos do órgão, um é ocupado pelo BC. Os outros dois, pelo Ministério da Economia --e, por lá, sabe-se que a medida era rechaçada por seu caráter intervencionista e radical.
Há empenho em deixar claro que o Palácio do Planalto só tomou conhecimento da iniciativa após a reunião do conselho na quarta-feira (27). "Foi bom o anúncio dos juros do cheque especial. Pedido do Banco Central. (...) Não é um canetaço, foi decidido pelo CMN", justifica o próprio presidente da República ao celebrar o feito nesta sexta (29).
Num reflexo de autodefesa, o BC afirma que até uma gestão liberal precisa atuar onde a competição não deu conta do recado e prevalecem ineficiências, apesar das tentativas de autorregulação do setor. Os bancos reagem: cobram do governo redução de custos e burocracia em vez de atos que ampliem distorções.
Logotipo do Banco Central do Brasil - Charles Sholl/Brazil Photo Press/Folhapress
No rol de efeitos colaterais, enumeram-se redução na oferta de crédito e maior dificuldade de acesso dos consumidores ao mercado. Estima-se também aumento no lucro dos bancos dada a tarifa compensatória criada para recair sobre uma parcela expressiva de usuários do cheque especial --mesmo sem fazer uso do limite emergencial.
Ainda que não seja fruto do voluntarismo presidencial, a medida vem bem a calhar para uma administração que passou a segurar reformas econômicas impopulares por medo de povo nas ruas. Cai como uma luva quando se sabe que um grupo de senadores não alinhados ao bolsonarismo preparava um conjunto de propostas no mesmo sentido.
É inescapável a leitura de gesto político populista com vistas a efeitos imediatistas e alta probabilidade de danos à competitividade no setor num prazo mais dilatado.
Julianna Sofia
Jornalista, secretária de Redação da Sucursal de Brasília.

Fantasia de imperador, editorial ,FSP

air Bolsonaro não entende nem nunca entenderá os limites que a República impõe ao exercício da Presidência. Trata-se de uma personalidade que combina leviandade e autoritarismo.
Será preciso então que as regras do Estado democrático de Direito lhe sejam impingidas de fora para dentro, como os limites que se dão a uma criança. Porque ele não se contém, terá de ser contido —pelas instituições da República, pelo sistema de freios e contrapesos que, até agora, tem funcionado na jovem democracia brasileira.
O presidente da República, Jair Bolsonaro, durante solenidade no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira-25.nov.19/Folhapress
O Palácio do Planalto não é uma extensão da casa na Barra da Tijuca que o presidente mantém no Rio de Janeiro. Nem os seus vizinhos na praça dos Três Poderes são os daquele condomínio.
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A sua caneta não pode tudo. Ela não impede que seus filhos sejam investigados por deslavada confusão entre o que é público e o que é privado. Não transforma o filho, arauto da ditadura, em embaixador nos Estados Unidos.
Sua caneta não tem o dom de transmitir aos cidadãos os caprichos da sua vontade e de seus desejos primitivos. O império dos sentidos não preside a vida republicana.
Quando a Constituição afirma que a legalidade, a impessoalidade e a moralidade governam a administração pública, não se trata de palavras lançadas ao vento numa “live” de rede social.
A Carta equivale a uma ordem do general à sua tropa. Quem não cumpre deve ser punido. Descumpri-la é, por exemplo, afastar o fiscal que lhe aplicou uma multa. Retaliar a imprensa crítica por meio de medidas provisórias.
Ou consignar em ato de ofício da Presidência a discriminação a um meio de comunicação, como na licitação que tirou a Folha das compras de serviços do governo federal publicada na última quinta (28).
Igualmente, incitar um boicote contra anunciantes deste jornal, como sugeriu Bolsonaro nesta sexta-feira (29), escancara abuso de poder político.
A questão não é pecuniária, mas de princípios. O governo planeja cancelar dezenas de assinaturas de uma publicação com 327.959 delas, segundo os últimos dados auditados. Anunciam na Folha cerca de 5.000 empresas, e o jornal terá terminado o ano de 2019 com quase todos os setores da economia representados em suas plataformas.
Prestes a completar cem anos, este jornal tem de lidar, mais uma vez, com um presidente fantasiado de imperador. Encara a tarefa com um misto de lamento e otimismo.
Lamento pelo amesquinhamento dos valores da República que esse ocupante circunstancial da Presidência patrocina. Otimismo pela convicção de que o futuro do Brasil é maior do que a figura que neste momento o governa.