quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Fernando Schüler O poder e a liberdade de imprensa, FSP (definitivo)

Segundo o Ministério Público, o porteiro mentiu. É isso. Mesmo antes do MP se manifestar, muita gente já “sabia” que era mentira. Uma outra turma, mesmo depois, continua “sabendo” que é tudo verdade. A verdade líquida, na era digital, tem dessas coisas.
De qualquer forma, tenho uma intuição. Se tudo se mostrar de fato um balão furado, Bolsonaro sairá disso com um bônus retórico semelhante ao que ganhou após o atentado que sofreu, antes das eleições.
Mas há um tema complicado aí, que diz respeito às relações do poder com a liberdade de imprensa. É aí que Bolsonaro insiste em um erro. Não um erro em sua estratégia política, mas para nossa democracia. De um tipo que tem uma longa história.
Bolsonaro fala em transmissão ao vivo em rede social na noite desta terça (29), madrugada de quarta (30) na Arábia Saudita - Reprodução/Facebook
Todos se lembram de Leonel Brizola e sua infatigável disputa com a Rede Globo. Segundo Brizola, concessões de TV eram como linhas de ônibus, “não pode transportar uns e não transportar outros”. O problema, por óbvio, era explicar o que isso significava exatamente.
Mesmo que o princípio abstrato do “transportar a todos” seja correto, sua aplicação será dada pela própria imprensa. Cada veículo definirá quando e de que jeito cada um entra em cena. É injusto? Talvez.
Justo seria um mundo onde uma equidistante inteligência distribuísse a verdade, para todos, ou desse espaços iguais a cada inverdade? Lamento. Esta superinteligência não existe, e todas as vezes que alguém tentou fantasiar algo nessa linha foi um desastre.
No início de seu mandato, Lula protagonizou um episódio dantesco, tentando expulsar do país o então correspondente do The New York Times no Brasil, Larry Rohter. Foi um episódio isolado, mas revelador.
Todos se lembram, ainda há exatos três anos, do repórter Caco Barcellos sendo agredido no centro do Rio de Janeiro, aos gritos de “abaixo a Rede Globo”. Os donos da verdade, à época, eram outros.
Outros presidentes, incluindo-se aí Sarney, Fernando Henrique, Dilma e Temer, tiveram posturas de um modo geral republicanas com a imprensa. Diante da quase obsessão de setores da esquerda em “regular a mídia”, Dilma cravou a frase que deveria ser exposta permanentemente no Palácio do Planalto: “Sobre a mídia, só o controle remoto”. 
São exemplos importantes por uma simples razão: é disso que é feita a democracia. O argumento em favor da liberdade de expressão é há muito conhecido. Um de seus heróis foi John Stuart Mill, dizendo o óbvio: que a única razão para permitir que apenas ideias verdadeiras fossem veiculadas seria uma extrema confiança na infalibilidade humana.
Tudo isso é sabido, ainda que frequentemente esquecido por quem detém o poder. Recentemente tivemos um exemplo disso, vindo de nossa Suprema Corte. No episódio de interdição da revista Crusoé, o presidente da corte nos brindou como uma frase lapidar: “Se você publica uma matéria chamando alguém de criminoso (...) e isso é uma inverdade, tem que ser tirado do ar. Ponto. Simples assim”. 
Na verdade, é bem complicado. Ninguém tem, na democracia, o dom de revelar a verdade. Ela surge, a mais das vezes, do contraditório, da fratura, do cotejo dos fatos. A condição para o acerto, no mundo da informação, é precisamente a possibilidade do erro. 
É claro que se deseja que as pessoas ajam com responsabilidade (por muito tempo se discutirá se a Globo agiu com responsabilidade, neste episódio, e imagino que a própria emissora fará esta avaliação). É evidente que a imprensa pode ser criticada, inclusive por quem ocupa posições de poder. A imprensa está longe de ser uma “instituição” que observa a sociedade de fora.
As democracias vêm assistindo, em nossa época, a um processo agudo de polarização, e boa parte da imprensa terminou igualmente polarizada. Isto é um erro, sinal de mau jornalismo, na minha visão, mas é a expressão de um direito. O parcialismo da imprensa profissional fará apenas com que ela perca mais e mais espaço e credibilidade em meio ao caos informacional de nossa época. Mas quem deve julgar isso são os leitores, os ouvintes, os cidadãos. Não o poder. 
É exatamente nisso que consiste o erro do presidente Bolsonaro. Ele tem o direito de criticar este ou aquele veículo de mídia, e eventualmente extravasar a sua indignação.
Mas não pode, sob nenhuma hipótese, lançar mão de instrumentos de poder que a República lhe confere para arbitrar ou interferir nesta ou aquela opinião, neste ou naquele jornalista ou veículo de mídia. E não pode por uma singela razão: ele lida com poderes dos quais é um guardião, mas que não lhe pertencem.
Porque somos uma república, afinal de contas.
Fernando Schüler
Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação

Vocação de poder, FSP

Vocação de poder

Peronistas têm disposição para mudar de rumo a fim de manter o poder

Bom conhecedor da vida pública de seu país, o jornalista Rosendo Fraga, falando da figura mais importante da Argentina contemporânea, o três vezes presidente Juan Domingo Perón (1895-1974), disse que “(ele) podia girar da esquerda para a direita sem perder seu objetivo político, que era alcançar, reter ou recuperar o poder”. 
O mesmo se aplica às principais lideranças do peronismo, movimento de muitas faces e facções que detém —nas ruas e nas urnas— o indisputado apoio das camadas populares. Apoio de raízes fundas, porque ser peronista é uma forma duradoura de identidade política para milhões de argentinos, sejam eles trabalhadores, pobres sem trabalho ou membros das camadas baixas da classe média.
“Desde bebê/ em minha casa havia uma foto de Perón na cozinha/ e agora que sou grande/ unidos e organizados estamos com Cristina” cantam por toda parte os fervorosos apoiadores da vice-presidente recém-eleita.
De 1946 em diante, os peronistas só perderam eleições para a Casa Rosada quando foram proscritos entre 1955 e 1973; durante a ditadura militar de 1976 a 1982; ou quando concorreram, divididos, com mais de uma candidatura. Feitas as contas, ocuparam a Presidência durante 24 dos 36 últimos anos. No governo, aplicaram pragmaticamente, conforme as circunstâncias, políticas neoliberais, com Carlos Menem, ou redistributivas, com Nestor Kirchner e sua viúva e sucessora, Cristina K. Sobretudo mostraram enorme vocação para o mando quando a hiperinflação e os movimentos de rua fizeram desmoronar duas vezes —e antes do tempo regulamentar— os mandatos de seus adversários do Partido Radical, Raúl Alfonsin (em 1989) e Fernando de la Rua (em 2001).
Há quem atribua ao peronismo a culpa pelo crônico impasse político que teria gerado a decadência econômica da Argentina. Diz-se também que os peronistas, mobilizados nas ruas e dilacerados por dissidências, são os maiores inimigos daqueles a quem elegeram. O que nenhum analista nega é o realismo político de seus dirigentes e sua disposição para mudar de rumo a fim de manter o poder.
Eis por que é no mínimo prematura a crença de todos quantos, a começar pelo amargurado Bolsonaro, auguram que o presidente eleito, Alberto Fernández, repetirá inevitavelmente as políticas de Cristina Kirchner que deixaram em má situação a moeda e as contas públicas nacionais. A vocação de poder e o pragmatismo que cimentaram a união dos peronistas em torno de Fernández, somados à força relativa dos derrotados e à delicadíssima situação econômica do país, poderão dar outros rumos ao novo governo.
Maria Hermínia Tavares de Almeida
Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. Escreve às quintas-feiras.