quinta-feira, 1 de novembro de 2018

A falecida, Janio de Freitas, FSP

Contra a aparência, o seu futuro presidente decidiu que a Folha 'se acabou'

Redação do jornal Folha de S.Paulo
Redação do jornal Folha de S.Paulo - Lalo de Almeida - 19.jan.2018/Folhapress
O que você tem em mãos é um objeto não identificado, como dizem de umas coisas esquisitas no céu. Não se iluda com a leveza, a textura, o cheiro de papel tingido. Contra a aparência, o seu futuro presidente decidiu que a Folha "se acabou". E que o futuro, por obra dele, não se sabe se também em seis dias com um de descanso, será mesmo "sem fake news, sem Folha de S.Paulo". Mas faça o favor de nem pensar na devolução do pago por sua assinatura. Apenas deixe-se iludir a cada manhã, imaginando a falecida Folha no objeto não identificado. Em países como o Brasil é muito útil iludir-se.
Estão aí, a provar a utilidade, vários magistrados Supremo que despencam do mundinho em que esbanjaram ilusão. Assustado como os demais, Dias Toffoli se apressa em propor "um pacto dos Três Poderes para ação em comum", nas medidas do novo reformismo. O pacto que poderia funcionar é outro, e parece inexequível: é a distribuição de poderes e funções indicada pela Constituição, segundo o ensinamento multissecular "cada macaco no seu galho".
Na realidade, e ainda que estabeleça situação cômoda no Congresso, o pelotão Bolsonaro não deixará de chocar-se com o Judiciário assim que comece a dar forma de projetos às suas intenções mais características. Várias das citadas nos últimos meses, por exemplo as 30 mil demissões no serviço público, são passíveis de questionamentos jurídicos. Se Dias Toffoli pensou na ação conjunta para adequar ao possível as propostas problemáticas, na prática apenas anteciparia o choque de visões. E deixaria o campo minado para os casos que chegassem ao Judiciário.
A preocupação do presidente do Supremo reflete, também, as deformações vividas pelo tribunal, com facilitários e prepotências que contribuíram muito para a balbúrdia institucional dos últimos anos. E não menos para o desfecho que aí está e ainda não é todo. O Supremo fez política, o Superior Eleitoral fez política, partes da primeira e da segunda instâncias fizeram política, o Conselho Nacional da Justiça fez política, sob a ilusão de que tudo se encerrava em seu tempo e objetivo, sem consequências extensas e profundas —aquelas que serão históricas.
É óbvio que houve outros fatores. Mas o Judiciário, em suas instâncias mais altas, é o garantidor dos poderes do Executivo e do Congresso e, em sua totalidade, o garantidor dos direitos de cada pessoa. Se não impõe na plenitude essa responsabilidade, muito por falha dos outros Poderes, degradar o possível é o mais pernicioso dos desvios em sua rota. Não está longe do que o próprio Judiciário qualifica como "lesa pátria".
Por isso, não tem fundamento, sequer mínimo, a propagada ilusão de que "as instituições estão sólidas e funcionando normalmente". Se estivessem, o processo eleitoral deste ano não seria o mais degenerado desde a Revolução de 1930. Incentivos à violência, na pregação de candidatos; atitudes de ódio por toda parte, uso do proibido dinheiro de empresas, interferência judicial facciosa, ação política com caracterização militar. E o temor de golpe que se espraiou, e não se recolheu, originou-se de percepção generalizada, não de geração espontânea.
A realidade está aí. Tanto que a falecida vive.
Janio de Freitas
Jornalista e membro do Conselho Editorial da Folha.

    Cadete: ides comandar, aprendei a obedecer, Marcelo Pimentel Jorge de Souza, FSP


    Marcelo Pimentel Jorge de Souza
    Passei quatro anos de minha juventude lendo diariamente esta frase, escrita no pátio de formaturas da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman): "Cadete: ides comandar, aprendei a obedecer." Inaugurada em 1944, a escola saiu do Rio de Janeiro, então capital, para evitar que cadetes continuassem imersos na efervescência política da República Velha e dos conturbados anos 30.

    "Discípulos" de Caxias, o "pacificador", tínhamos ciência do significado daquela frase, pois estávamos sendo forjados chefes militares para obedecer e emitir ordens tecnicamente corretas, moralmente aceitáveis e eticamente justas "“ sempre legais.

    Para comandar, também pelo exemplo, teríamos que aprender a obedecer, pois o disciplinado de então seria o disciplinador de sempre, numa estrutura rigidamente hierarquizada como a militar. Chama-se a isso de "hierarquia e disciplina", princípios das Forças Armadas consagrados no artigo 142 da atual Constituição.

    Por isso, soou-me muito estranho ao ler, nas páginas de revista de grande circulação em 1986, a carta de um capitão, chamado Bolsonaro, reclamando de soldo e fazendo críticas à política salarial do governo Sarney, apenas um ano após o término de longevo regime militar.

    Sabíamos que militares na ativa não deviam manifestar-se daquele modo, sem autorização de seus superiores, por lógica muito simples: se capitão fazia, qualquer outro militar, de soldado a general, também poderia fazer o mesmo.

    No ano seguinte àquela primeira desobediência, o mesmo oficial protagonizou outros atos de indisciplina, não somente em relação a salários, mas também por discordar de temas da política nacional.
    Submetido a diversos procedimentos de natureza judicial, era considerado péssimo exemplo em quase todo o Exército e sua atitude inspirara outras ações preocupantes, como no caso de um capitão em Apucarana (PR) que resolvera comandar sua tropa em invasão à prefeitura para reclamar de soldos.
    Bolsonaro manifestara publicamente seu apoio à indisciplina do colega do Paraná.

    Sua saída do Exército para a política, ao ser eleito vereador em 1988, teve distintos significados. Para o então comando dessa Força, um alívio, porque se livrava de um "mau exemplo", que, seguido, poderia comprometer o processo de redemocratização; para alguns colegas do capitão, especialmente os que se engajaram na "luta salarial", significou uma espécie de traição, pois ficaram sujeitos a incerto futuro profissional; para os "de juízo", serviu como claro aviso de que deveriam ficar distantes dele, se quisessem prosseguir com êxito em suas carreiras.

    Para o próprio capitão, uma oportunidade de somar aposentadoria integral (com apenas 16 anos de serviço) à renda considerável de uma nova profissão, na política, que lhe daria o conforto financeiro e a projeção pelos quais tanto ansiava.

    Para mim, tenente àquela época, o significado foi mais singelo: não se adaptara à carreira, faltando-lhe a compreensão do essencial na profissão militar --o respeito incondicional à "hierarquia e disciplina".

    Hoje, coronel na reserva, estou preocupado porque o "mau exemplo" de outrora é, agora, presidente da República e chegou ao cargo em grande medida pela indevida associação eleitoral de sua figura aos valores das Forças Armadas. Minha preocupação não é só porque o considero extremamente despreparado para a função. O desobediente capitão será, a partir de janeiro, o comandante em chefe das Forças Armadas e jurará obedecer à Constituição.

    Minha maior preocupação é que não tenha compreendido, até hoje, o significado daquela frase que emoldura o pátio da Aman: "Cadete, ides comandar, aprendei a obedecer". Espero que eu esteja errado.
    Marcelo Pimentel Jorge de Souza
    Coronel de Artilharia (reserva) do Exército e mestre em ciências militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme)