domingo, 29 de janeiro de 2017

Inventor do requeijão em copo morre em Minas Gerais, OESP




Moacyr de Carvalho Dias teve a ideia quando era presidente da Laticínios Poços de Caldas


Priscila Mengue ,
O Estado de S.Paulo
29 Janeiro 2017 | 18h11
O inventor de um dos produtos alimentícios mais tradicionais do Brasil morreu neste domingo, 29, aos 96 anos. Como presidente da Laticínios Poços de Caldas, Moacyr de Carvalho Dias criou o requeijão cremoso em copo em uma época na qual a iguaria era vendida em tabletes e com uma textura mais sólida. Ele será enterrado nesta segunda-feira, 30, às 16h, no Cemitério Municipal de Poços de Caldas, de acordo com a administração do local.
Em 2008, Moacyr recebeu a visita do caderno Paladar no Sítio da Ferradura, sua residência em Poços de Caldas. No local, lotado de animais como galinhas, micos e pavões, ele explicou que começou a fabricar o produto como uma forma de reaproveitar o leite excedente fabricado pela empresa. 

Foto: Sergio Castro/AE
Moacyr de Carvalho Dias morreu aos 96 anos
Moacyr de Carvalho Dias morreu aos 96 anos 
Segundo ele, a ideia surgiu em 1950, quando estava de férias em São Lourenço (MG), cidade onde se localizava a fábrica do requeijão Catupiry, desenvolvido em 1911 pelo italiano radicado no Brasil Mario Silvestrini. 
"O Catupiry era um queijo muito bem feito e bem cotado no comércio. Eu achei que poderia fazer um requeijão semelhante. O dono da fábrica era uma pessoa muito tranquila e deixava o veranista visitar as instalações. Como eu estava ali de férias, entrei na fábrica para ver como se fazia o Catupiry", relatou.
De acordo com ele, o processo de fabricação do queijo incluiu a criação de centenas de fórmulas, inclusive algumas com sabor. "Eu comecei a enumerar cada receita. No começo, fazia uma por dia, depois passei para três e acabei fazendo seis por dia. Quando cheguei na 606, já achei que tinha dado certo."
O produto começou a ser vendido no mercado local em 1952, embalado em papel de alumínio, como os tabletes de manteiga. Em 1955, passou a ser comercializado na forma que se tornaria a mais tradicional, dentro de um copo de vidro.
"Eu comecei a enumerar cada receita. No começo, fazia uma por dia, depois passei para três e acabei fazendo seis por dia. Quando cheguei na 606, já achei que tinha dado certo". 

Foto: Sergio Castro/AE
Desde os anos 1990, o requeijão Poços de Caldas são vendidos pela Danone
Desde os anos 1990, o requeijão Poços de Caldas são vendidos pela Danone
Ao Estado, disse que sua receita não tem segredo. "É leite desnatado coalhado, dessorado e cozido. Depois é só colocar creme de leite fresco. Hoje em dia, substituíram parte do creme de leite. O mundo virou uma bagunça, resolveram que a gordura faz mal, engorda as mulheres e causa enfarte, por isso tiraram parte do creme de leite", argumentou.
Além do requeijão, o empresário também foi responsável por trazer ao Brasil o iogurte com polpa de frutas para o Brasil, em parceria com a Danone, que comprou a Laticínios Poços de Caldas nos anos 1990.
Desde a aposentadoria, em 1996, ele se dedicava ao estudo e à promoção da reprodução de aves ameaçadas de extinção, reunindo mais de 300 espécies no Criadouro de Aves Poços de Caldas. 

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Morrendo como objeto, El Pais

texto escrito pela escritora, reporter e documentarista Eliane Brum, publicado em 23/01/2017, no www.brasil.elpais.com 
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“Somos seres que morrem, isso não podemos evitar. Somos seres que perdem aqueles que amam, e isso também não podemos evitar. Mas há algo aterrador que persiste, e isso podemos evitar. E, mais do que evitar, combater. É preciso que os mortos por causas não violentas cessem de morrer violentamente dentro dos hospitais.
Aqueles que amamos se tornam vítimas de violência no espaço onde deveria existir cuidado. E nós, que os perdemos, também nos tornamos vítimas. Quando tudo acaba, não somos apenas pessoas que precisam elaborar o luto de algo doloroso, mas natural. O sistema médico-hospitalar faz de nós violentados. Não há apenas luto, mas trauma. E é preciso que comecem a responder por isso – ou a rotina de violências não cessará.
Escrevo sobre o morrer e sobre a necessidade de recusar a “obstinação terapêutica” há quase dez anos. Em 2008, acompanhei o cotidiano de uma enfermaria de cuidados paliativos por quatro meses, para contar da morte com dignidade, a partir da ideia de que quando não se pode curar, ainda se pode cuidar. Neste percurso, testemunhei o morrer de várias pessoas, cada uma à sua maneira, vivendo até o fim a sua singularidade. A morte como parte da vida, não como seu contrário.
Morrer com dignidade é morrer da forma que se escolheu morrer quando o fim se tornou inevitável. É escolher até onde os médicos podem ir na tentativa de prolongar uma vida que já não é vida, é escolher se quer morrer numa cama de hospital ou em casa, é escolher na companhia de quem se quer estar quando chegar a hora de partir.
Como a maioria de nós não sabe o que vai provocar sua morte, nem quando, existe um instrumento chamado de ‘Diretiva Antecipada de Vontade (DAV)’. Particularmente, prefiro outro nome, ‘Testamento Vital’, porque é de vida que se trata. Mas apesar do nome burocrático, hermético para a maioria, este documento pode ser até mesmo escrito a mão. Nele, determinamos previamente nosso desejo, assim como os limites à equipe de saúde que nos atenderá, caso não estejamos em condições de expressar nossas escolhas quando o fim chegar. Caberá a nossos familiares levar esse documento à equipe de saúde e garantir que essa vontade seja cumprida. Ou, se nenhuma vontade foi expressa, escolher o que nos cabe quando já não for possível evitar a morte. Porque são eles que nos conhecem melhor – e porque possivelmente nos amam.
É preciso lembrar que o fim de uma vida é ainda vida – e não morte. Para respeitar a vida, é preciso respeitar aquele que vive. Só há respeito quando há reconhecimento de que ali há um sujeito. No momento em que o corpo se torna objeto, o sujeito é sujeitado. E o que é apresentado como cuidado vira tortura.uti-4
Comprovei da forma mais dura que, com exceção de alguns pequenos enclaves de resistência, morrer com dignidade é uma ficção no sistema médico-hospitalar brasileiro. No momento em que se entra num hospital e a morte se desenha como desfecho, aqueles que amamos deixam de pertencer a si mesmos. É uma espécie de sequestro, mas sem resgate possível.
No início de 2016, perdi um parente querido. Numa noite, logo após um dia particularmente feliz, um aneurisma em sua aorta rompeu-se. Depois de uma longa cirurgia, as possibilidades de recuperação eram escassas. Após mais de uma semana na UTI, em que ele não despertou nenhuma vez, complicações mostraram que não havia chance. Era preciso deixá-lo partir. Mas ainda assim ele seguia entubado, continuava sendo espetado por agulhas e manipulado de várias maneiras. Havia se tornado um objeto de intervenção. Quando manifestávamos nossa preocupação, a resposta era: ‘Não se preocupem, ele não sente nada’.
Receber a notícia da perda de alguém tão estrutural na vida é devastador. Podemos tão pouco neste momento. E o que podemos é cuidar. Para nós, não é um corpo sedado que ali está. É uma pessoa na grandiosidade de seus últimos momentos de vida.
Pedi então para conversar com um dos médicos. Ele me atendeu incomodado por estar sendo chamado. Manifestei, educadamente, a nossa preocupação com a continuidade dos procedimentos invasivos e a nossa necessidade de compreender melhor o que estava acontecendo e quais seriam os próximos passos. Já que não era mais possível desejar que aquele que amávamos vivesse, queríamos assegurar sua dignidade na morte e nos despedir em paz.
Estávamos no corredor da UTI, em pé. O médico não concordara em conversar com os familiares numa sala reservada, apesar de existir um espaço para isso. Ele alterou a voz, quase gritando. Claramente, sentia-se afrontado porque, como ‘doutor’, qualquer pergunta soava como um questionamento a uma autoridade que acreditava incontestável. Disse-me que não havia nada a ser questionado, que eles sabiam o que fazer – e estavam fazendo.
Ao ouvir a voz alterada do médico, o filho do homem que morria se postou ao meu lado. Ele, que perdia tanto, disse ao médico com toda a calma que não era aceitável ser grosseiro quando já sofríamos tanto. E reiterou que precisávamos compreender melhor o momento e os próximos passos para fazer as melhores escolhas. Depois de mais alguns minutos de rispidez, o médico afastou-se sem nos dar qualquer resposta. Estávamos num dos templos do sistema hospitalar brasileiro.
Naquele momento, além da dor da perda, já somava-se uma outra. Havíamos sido agredidos quando estávamos tão frágeis. Em vez de acolhimento, abuso. Nos dirigimos então à recepção da UTI para perguntar se havia um setor de cuidados paliativos. Estávamos confusos, sem informação. Nossa esperança era que alguém com um conceito mais humanizado sobre o morrer pudesse intervir e conseguisse responder a nossos questionamentos, assim como assegurar os direitos de quem morria. O recepcionista da UTI disse que iria pesquisar e, depois de alguns minutos, apareceu com um telefone num pedaço de papel. Era um domingo. Passei a manhã ligando e só encontrava uma gravação de secretária eletrônica. Perguntei se havia outra maneira de contatar o setor, o recepcionista me deu um celular de emergência da suposta equipe. Outra secretária eletrônica. Deixei recado. Nunca recebemos resposta.
Da sala de espera da UTI comecei a buscar orientação com médicos paliativistas que eu conhecia, trocando mensagens privadas nas redes sociais. Estes me escutaram e me orientaram pelo Twitter. Uma médica amiga foi ao hospital e entrou na UTI como visita para poder nos explicar o que estava acontecendo e o que poderíamos exigir que fosse diferente, a partir de nossa escolha de evitar procedimentos invasivos e desnecessários e poder alcançar a melhor despedida possível dentro das circunstâncias.
É importante sublinhar: foi preciso infiltrar uma médica para ter informações e tentar fazer escolhas que respeitassem aquele que morria. Num momento tão limite da vida de todos, foi necessário uma ‘clandestina’ para tentar proteger quem partia. E o que era proteger e cuidar quando já não era possível salvar? Tratá-lo como uma pessoa, um ser com história – e não como um objeto, um invólucro de carne ‘que nada sentia’.
Pouco antes da morte, soubemos por uma enfermeira que há pelo menos uma semana já era claro que este seria o desfecho. Mas nada disso nos foi contado. Possivelmente não era necessário que morresse numa UTI, possivelmente não havia sentido que permanecesse numa UTI. Possivelmente poderíamos ter nos despedido do nosso jeito. Certamente poderíamos ter escolhido bem mais.
Mas no instante em que ele entrou no hospital, numa situação de emergência, perdemos o acesso a quem amávamos. Tínhamos apenas o acesso controlado ao seu corpo ‘que nada sentia’. De repente, ele era um objeto sob vigilância, protegido de nós, que com ele compartilhávamos a vida e a história.
Seis meses depois, em agosto, perdi meu pai. Havíamos combinado de assistir juntos à abertura da Olimpíada. Como morávamos em estados diferentes, eu ainda estava no caminho quando ele passou mal. Foi levado ao hospital de ambulância. E lá sofreu um AVC e entrou em coma. Meu pai tinha 86 anos e já não havia chance para ele.
Quando cheguei com parte da família ao hospital, depois da pior viagem de nossas vidas, ele estava na UTI. As visitas eram permitidas apenas em três horários. Como só conseguimos chegar de madrugada, convenci a enfermeira a me deixar entrar. Ao perceber que ela ficaria ao meu lado, pedi que saísse porque eu queria privacidade. Antes de sair, ela fez um comentário: ‘Fazia muito tempo que você não via o seu pai?’.
Meu entendimento era que meu pai morria de velho. Se não morremos por tiro, acidente ou catástrofe, alguma doença nos mata em nossa progressiva corrosão física. No caso do meu pai, poderia ter sido o coração, que tantos sobressaltos lhe provocou durante a vida. Mas foi um AVC. Assim, apesar da dor sem medida que eu sentia, me era claro que a morte era inevitável. Qualquer tentativa de esticar sua vida, na sua idade e naquelas circunstâncias, seria excessiva. Na melhor das hipóteses, ele teria uma vida sem vida, o que meu pai não gostaria nem merecia. Me era claro – e era para todos nós – que tudo o que podíamos fazer naquele momento era assegurar a ele uma morte digna e garantir a nossa despedida.
Ao contrário dos principais hospitais do país, a UTI do centro de saúde em que meu pai for internado não permitia a permanência dos familiares junto à pessoa doente ou em processo de morte. Segundo o Estatuto do Idoso, ele teria direito a um acompanhante permanente. Mas ali a UTI suspendia a lei. Era preciso esperar pelos horários de visita. Mas como ficar numa sala de espera enquanto alguém que amamos morre sozinho, entubado e cheio de fios a alguns metros dali? E por quê?
uti-2Nós queríamos estar com ele. Queríamos fazer carinho no seu cabelo enrolado e tão branco. Queríamos dar beijo na testa e também nas bochechas. Queríamos afagar a sua mão. Queríamos ter certeza de que ele não estava passando frio. Queríamos contar histórias sobre ele. Queríamos dizer que o amávamos e que ele seguiria vivendo em nós. ‘Ele não sente nada’, ouvi mais uma vez. Ainda que ele não sentisse, nós sentíamos.
Quando horas depois o médico declarou a ‘morte cerebral’, sabíamos que ele tinha partido. Mas o horário de visitas não tinha chegado. A despedida já não importava ao meu pai, mas importava a nós. Ele já não estava lá, mesmo que o coração ainda batesse. Mas nós precisávamos dessa despedida para poder seguir a vida sem ele. O que nos roubaram ao impedir que ficássemos com quem amávamos, ao reduzir meu pai a um corpo passível de visitação em horários determinados, jamais poderá ser devolvido.
Minha mãe queria estar com o homem com quem viveu 63 anos de um casamento de amor, mas o horário de visitas não tinha chegado. Na noite anterior ela tinha dormido aconchegada a ele, horas antes conversavam sobre o que comprariam na feira, e agora ela era impedida de tocá-lo. Me era difícil suportar a indignidade daquela situação, mas ver a minha mãe passar por essa violência me era insuportável. Ela nunca poderia ter sido impedida de ficar ao lado do meu pai, de mão com ele. Não há necessidade de manter uma pessoa numa condição irreversível em uma UTI. E não há sentido em manter alguém na UTI longe dos familiares.
Naquele momento, meu pai já estava morto, e eu sabia disso. Morte encefálica é morte. E ponto. Mas minha mãe ainda seguia aguardando o horário de visitas. Toquei a campainha para falar com a enfermeira. Disse a ela que meu pai estava morrendo e que precisávamos nos despedir. Que não poderíamos esperar o horário de visitas e que também não podia ser um de cada vez, que precisávamos estar com ele juntos.
Ela negou, dizendo que isso era contra as regras – ou contra o estatuto do hospital, não lembro o termo exato. Eu retruquei que nosso direito de estar com o meu pai no seu morrer estava acima das regras do hospital. A enfermeira chamou o médico de plantão. Havíamos nos tornado a família criadora de problemas. Já tínhamos inclusive ouvido mais uma pérola: ‘As famílias sempre têm dificuldades de aceitar mortes repentinas’. Era o que para essa profissional justificava a nossa impertinência de exigir direitos. O médico chegou. Disse a ele o mesmo que havia dito à enfermeira. Ele concordou com os argumentos e permitiu nossa entrada.
Nos reunimos todos em volta do meu pai. Ele já estava morto, mas fingimos que o coração batendo era vida. E nos despedimos. A enfermeira que antes tinha barrado nosso direito de nos despedir talvez não tenha suportado a interdição. Com a justificativa de medir os sinais vitais, arrancava o lençol dele, expondo o seu corpo. Minha mãe, de 81 anos, voltava a puxar o lençol para cobrir o homem que ela amava, o homem com quem criou uma família, o homem com quem dividiu a vida. A enfermeira voltava a tirar o lençol. Minha mãe o recolocava. Dois gestos em disputa, o impasse de uma época. A mão asséptica, pragmática, arrancando o lençol (e a humanidade) transformava meu pai num objeto. A mão trêmula, gasta de anos, voltando a cobri-lo com o lençol, devolvia a ele a humanidade e a história.
O direito de permanecer junto à pessoa querida, assim como o direito de se despedir, seguiu sendo negado às outras famílias que estavam na sala de espera. Parte delas, em vez de se juntarem a nós num movimento que seria mais potente porque coletivo, nos acusaram de ‘privilégio’. Era desesperador ouvir direito ser convertido em privilégio justamente por quem era violado num momento tão limite. Mas não havia tempo para argumentar. Era preciso cuidar agora do corpo do pai.
Por mais que a gente se prepare para perder, e eu me preparo há muitos anos, a morte é um buraco. Não há um dia sequer em que eu não sinta falta do olhar do meu pai. Sei que ele vive em mim, o reconheço na forma como eu escuto o mundo, no formato dos dedos dos meus pés. Meu sorriso é o dele. Na minha carne há palavras que foi ele quem disse, suas histórias correm no meu rio.
Mas há um buraco onde antes havia o olhar dele. Percebo que envelhecer e perder é também aprender a andar por aí com o corpo esburacado pelos olhares que a gente já não tem. Passamos a ser carregadores de ausências. E há que se abrir espaço-tempo para viver o luto, porque só assim a gente descobre como reencontrar a alegria mesmo com o corpo esburacado. E a alegria, a forma mais bonita de amor, é quase tudo.
Meu luto é fundo, mas sereno. A violência vivida, não. Ela me escava. E é com ela que me debato hoje. Perto de mim, aquele que perdeu o pai no início de 2016 nomeou o que ambos vivemos como ‘estresse pré-traumático’. Passamos a ficar em pânico com o que acontece com uma pessoa quando ela entra num hospital e, de imediato, é convertida num objeto. E num objeto sequestrado. Descobrimos que nada do que já deixamos escrito servirá para barrar a onipotência médica se o nosso processo de morrer acontecer dentro de uma instituição hospitalar. Que nosso corpo será virado e revirado por estranhos, espetado e penetrado por objetos, mesmo quando estivermos além da possibilidade de cura. Que só teremos informações pela metade e que estranhos escolherão por nós.
Descobrimos que tudo isso que somos numa vida nos será roubado no final. Não pela morte, mas por um sistema médico-hospitalar que reduz pessoas a objetos. Numa paródia com o inferno de Dante, a inscrição no portão dos hospitais poderia ser: ‘Deixai toda história, ó vós que entrais’. Nem morremos ainda e já somos reduzidos a um não ser.
Me preparei muito para cuidar de quem amava quando morresse. E não pude. Não consegui protegê-los. Não fui capaz de fazer valer nem os meus direitos nem os deles. Aceitar que morremos e que perdemos é duro, mas é preciso. É nossa condição de existir. Mas a impotência diante da violência e da violação de direitos é uma indignidade que não podemos seguir permitindo que aconteça.
É isso o que aquele que perdeu o pai primeiro descreve como estresse pré-traumático. Prometemos um ao outro impedir a redução a objeto, mas sabemos que fracassaremos. Porque fracassamos em proteger o pai dele e o meu de quem deveria cuidá-lo. Se nossa morte não for súbita, não conseguiremos voltar para casa para morrer entre os livros, com a nossa música, no espaço que lembra de nós, entre aqueles que conhecem a nossa história. O último ato da vida será o de virar coisa num hospital. E, assim, o estresse pré-traumático seria a expectativa dessa objetificação, como os prisioneiros que ouvem os gritos nos porões e sabem que sua vez irá chegar. A antecipação da tortura já é tortura.
A imagem do nosso trauma é a descrita pelo historiador Phillipe Ariès em seu livro O homem diante da morte: ‘A morte no hospital, eriçado de tubos, está prestes a se tornar hoje uma imagem popular mais terrífica que o trespassado ou o esqueleto das retóricas macabras’. Pensávamos que podíamos escapar disso e cuidar da morte como parte da vida, mas a lógica do sistema nos esmagou. Lembro de uma mulher que entrevistei para uma das minhas reportagens sobre o morrer. Ao perceber o que fariam com seu marido, além da possibilidade de cura, ela e um filho fugiram com ele do hospital numa cena cinematográfica. Ela conseguiu encontrar um lugar em que ele pôde morrer em paz, mas ter de fugir para fazer isso revela o tamanho da distorção.
Naturalizamos essa lógica perversa em que se morre não como gente, mas como objeto. A assepsia do processo, os jalecos brancos, a linguagem que torna a maioria analfabetos, a informação que não é compartilhada, o poder da medicina sobre os corpos em nossa época histórica encobrem a perversão de um sistema em que bem no fim nossos direitos são suspensos. Se já não há história, não há sujeito. Se não há sujeito, não há direitos.
Não uso a palavra ‘doutor’ para ninguém. Nem para médico, nem para advogado, delegado, procurador, juiz etc. O uso do ‘doutor’, no Brasil, ecoa nossas piores distorções históricas. E, sempre que evocado, volta a reeditá-las. Assim, escolho não usar como ato político. Mas em algum momento destes processos, me vi chamando médicos que violavam direitos de ‘doutor. Percebi que queria agradá-los por duas razões: 1) a expectativa de que me tratassem com gentileza porque me sentia imensamente frágil; 2) o pavor de saber que eles tinham todo o poder sobre alguém que eu amava.
Ao fazer isso, eu assumia a posição de vítima. E esta posição, como é óbvio para qualquer um, tem um custo alto. Como a violência aparece travestida de cuidado, o que talvez seja a maior perversão do sistema, fica ainda mais difícil tratar violência como violência.
Percebo com clareza que a maioria dos profissionais de saúde não compreende que, a partir de um determinado momento, o que é apresentado como cuidado se torna tortura. Assim como o que é apresentado como zelo se torna excesso. Assim como não percebem que os corpos não lhes pertencem apenas porque ingressaram na instituição. E que, ao tomá-los, torna-se sequestro. Somos todos – e os profissionais de saúde também – filhos dessa época histórica. Por isso, quando questionados, os profissionais ofendem-se e sentem-se até mesmo injustiçados. Afinal, acostumaram-se a habitar um lugar idealizado e de enorme potência, o lugar de quem salva.
Esse estado de coisas, o funcionamento da instituição médico-hospitalar como espaço de absolutos, é naturalizado. Afinal, a medicina tem hoje o poder de decidir até mesmo quem é normal e quem não é – ou o que é normalidade. Ou, ainda, que a normalidade existe. O que somos não é mais algo complexo, cheio de camadas, mas um diagnóstico: depressivo, cardíaco, anoréxico, obeso etc. Quando esse poder de dizer o que uma vida humana é se une aos interesses da indústria farmacêutica, as chances de um olhar em que a pessoa não seja reduzida a um objeto se encolhem.
É preciso encontrar uma maneira de dar vários passos para fora e recuperar a capacidade do espanto. E assim poder enxergar o que acontece no espaço do hospital sem os véus encobridores da naturalização. Pegando o mais comum dos procedimentos, por exemplo. Uma simples injeção. Se não há justificativa, ela é não é cuidado. É tortura. Exatamente porque nem sempre é fácil identificar quando o cuidado se transforma em tortura, o questionamento se torna fundamental. E a escolha, ao final, só pode ser de quem morre ou de quem ama aquele que morre quando este já não pode escolher. O que para o profissional de saúde é digno, para aquele que morre pode não ser. Quem decide?
Abrir mão do poder absoluto sobre os corpos, porém, é algo difícil para grande parte dos médicos. Difícil por várias razões e, principalmente, porque significa aceitar a própria condição de impotência diante da morte. Assim, qualquer pergunta que questione esse poder, ainda que ela parta de uma pessoa fragilizada pela perda de alguém, se transforma numa ferida narcísica. Nesta época histórica, se quisermos morrer como sujeitos, teremos que mudar a formação dos médicos nas universidades. E botar limites na falta de limites.
Levei meses para compreender que me confrontava com duas situações inteiramente diversas. Uma natural, a da perda. A outra naturalizada, a da violência perpetrada pelo sistema médico-hospitalar. Uma é lidar com a condição humana de morrer. Com essa, podemos. A outra é lidar com a certeza de morrer como objeto. Com essa, não podemos. Uma é lidar com a dor da perda de quem amamos. Com essa, podemos. Outra é lidar com a violência de não poder assegurar o direito de uma morte digna a quem amamos. Com essa, não podemos. Uma é luto, outra é trauma. O luto se vive, o trauma precisa virar outra coisa para que a vida possa seguir. No meu caso, vira escrita. O luto – e a luta.
Num país em que o SUS está sendo atacado pelas forças do retrocesso, em que doenças como dengue e zika proliferam por falta de saneamento básico, em que a febre amarela ressurge no Sudeste, em que as pessoas morrem por falta de assistência, o debate sobre o direito de morrer com dignidade encontra pouco espaço. Mas é de vida que se trata. Se não sabemos morrer, jamais saberemos viver.”

Eike fez bem em fugir, por Alex Solnik, Brasil 247

Se Eike Batista fugiu para a Alemanha, que não extradita seus cidadãos (ele tem passaporte alemão), como tudo indica, fez muito bem ao defender o seu direito à liberdade.
Ele, eu e a torcida do Flamengo sabemos que no Brasil não há mais segurança jurídica, desde que as pessoas podem ser presas antes do julgamento, o que não se coaduna com regimes democráticos.
Ninguém avisa quando a democracia vai virar ditadura. Surgem sinais.
No dia 10 de novembro de 1937 ninguém desconfiava das intenções de Getúlio Vargas quando o Congresso amanheceu cercado por tropas do Exército, impedindo o acesso de deputados e senadores.
A maioria deles, por mais absurdo que pareça, ao chegaram para o trabalho e se depararem com esse fato consumado rumaram imediatamente para o Palácio do Catete. Mas não para pedir a Getúlio que o Congresso fosse reaberto e sim para aplaudi-lo.
No dia 1º. de Abril de 1964, num clima de "excitação cívica" o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade anunciou, empolgado, que a cadeira de presidente da República estava vaga, pois João Goulart se ausentara de Brasília, abrindo assim caminho para a "eleição" do marechal Castello Branco em seu lugar.
Nem em 37 nem em 64 a palavra ditadura sequer foi mencionada.
No dia 12 de maio de 2016, 367 deputados derrubaram uma presidente sob falsos pretextos acusatórios que apelidaram de impeachment, dando o sinal verde para aprofundar o clima de insegurança jurídica inaugurado pela Operação Lava Jato.
Os sinais de que o regime democrático pode se converter em autoritário estão cada vez mais presentes nos dias de hoje em nosso país: prende-se antes de julgar; as delações são a pedra angular das investigações policiais; os políticos são linchados em praça pública; os 3 poderes não se entendem.
Não há mais segurança jurídica, nem política, nem prisional, muito menos. E as instituições, tal como em 64, "estão em frangalhos".
É bom lembrar que mesmo na ditadura de 64 os presos políticos, mesmo os que tinham assaltado ou matado não eram misturados aos presos comuns depois de passarem pelo período de tortura em instalações militares e serem enviados a presídios como o Tiradentes, em São Paulo. Havia uma ala para eles, tivessem ou não diploma universitário.
Hoje, no entanto, somente o diploma garante distância de homicidas, estupradores e outros bandidos de reconhecida violência.
A civilidade e o bom senso indicam que presos acusados de corrupção, com ou sem diploma, que não mataram, não torturaram, não violentaram, deveriam ter uma ala separada para eles e não ficarem sujeitos à convivência forçada com os que cometeram crimes de sangue, independentemente se serem ou não diplomados. Mas nem isso é garantido na atual conjuntura.
O que fez Eike – fugir para um lugar seguro – deveria ser imitado por Lula.
Não dá dúvida que ele está sendo caçado e seu destino é a masmorra, seja ele culpado ou inocente. Não adianta de nada ele e seus advogados travarem uma guerra jurídica contra seus acusadores. Eles não vão ganhar. Lula deveria pedir asilo político em alguma embaixada enquanto é tempo.
Não entendo a excitação e até empolgação com que muitos jornalistas anunciam que está chegando o dia da "delação do fim do mundo" da Odebrecht.
Não se dão conta de que pode ser a "delação do fim da democracia".