segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Pisa na Sabesp

Todo dia, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) divulga a quantidade de água disponível no Sistema Cantareira. Em 15 de janeiro, o índice era de 6,2%. Na verdade, o número que melhor representa a realidade é 4,89%. A culpa não é da água que sumiu do reservatório, mas dos engenheiros da Sabesp, que talvez não seriam aprovados no Pisa.
O Pisa é um exame aplicado ao final do ensino médio. Ele mede a capacidade do aluno de usar conceitos básicos de matemática para entender e representar a realidade. O uso correto dos princípios por trás do conceito de porcentagem faz parte da prova todo ano. Afinal, porcentagem é algo com que nos deparamos e utilizamos todos os dias.
Imagine uma caixa d'água de 100 litros com 50 litros de água no seu interior. Que porcentagem deste reservatório está cheio? Você acertou, 50%. Ótimo. Agora imagine que, sem retirar uma gota de água do reservatório, você aumente a altura das paredes laterais e a caixa d'água passe a ter capacidade para 200 litros. Vamos refazer a conta? Que porcentagem deste reservatório está cheio? A caixa contém 50 litros de água e sua capacidade total é de 200 litros. Fácil, 25%. Agora imagine que você coloque mais 10 litros de água na caixa. Serão 60 litros em uma caixa de 200 litros, a porcentagem é de 30%. Parabéns, você acertou uma questão do Pisa.
E os engenheiros da Sabesp? Eles fazem a seguinte conta: são 10 litros a mais, 60 litros. Mas, como a caixa original tinha 100 litros, vamos continuar usando esse valor, desprezando o fato de a caixa d'água ter aumentado. Nessa conta, a porcentagem disponível é de 60% (60 divididos por 100 é 0,6, portanto 60%). Pronto, os mesmos 60 litros de água passaram de 30% para 60% e a crise não parece tão grave. Esses engenheiros seriam reprovados no Pisa.
Foi exatamente isso que aconteceu no Cantareira mas, em vez de aumentar a parede da caixa d'água, o fundo do reservatório foi rebaixado. Vou explicar.
O Sistema Cantareira pode armazenar 1.459 hm3 (1 hm3 equivale a 1 bilhão de litros). Mas, como o túnel que leva a água para São Paulo não está no fundo da represa, somente 974 hm3 podem ser retirados por gravidade. Os 486 hm3 que estão abaixo da entrada do túnel são o volume morto. Em meados de 2014, esses 974 hm3 haviam sido consumidos, e a água disponível ia acabar. Foi então que a Sabesp instalou uma série de bombas para sugar o fundo da represa e retirar 283 hm3 dos 486 hm3 que estavam no volume morto. É como se você tivesse baixando o fundo da caixa d'água. Quando as bombas foram ligadas, a quantidade de água disponível, que era praticamente zero, passou a ser 283 hm3. Isso evitou o colapso do Cantareira no segundo semestre de 2014. Mas a presença das bombas fez com que o volume disponível também aumentasse. Antes, era 974 hm3 e, agora, é de 1.257 hm3.
Em 15 de janeiro de 2015, restavam 61,57 hm3 de água que podiam ser retirados pelas bombas. A Sabesp diz que isso representa 6,2% do volume útil. Como ela faz essa conta? Ela divide o que resta (61 hm3) pelo volume do reservatório antes da incorporação do volume morto (974 hm3) e obtém um valor de 0,062. Pronto: 6,2%. Mas o volume total do reservatório, com a incorporação do volume morto, é de 1.257 hm3, não 974 hm3. Se você refizer as contas usando 1.257 hm3 vai obter 4,89%.
Você vai dizer que é preciosismo. Pode ser, mas veja a consequência. Imagine agora que chova um dilúvio e o Cantareira encha até a boca. Seriam adicionados 1.195 hm3 de água em uma noite (1.257 hm3 menos os 61,57 hm3 que já estão no reservatório). No dia seguinte, a conta da Sabesp seria a seguinte: 1.257 divididos por 974, ou seja, 129%.
A Sabesp teria de comunicar que o Cantareira estaria 129% cheio (e não vazou). Não faz sentido. Com o uso correto do conceito de porcentagem, o resultado seria 100%, o que reflete melhor a realidade. A conta feita pela Sabesp não representa adequadamente a realidade e cria uma impressão que o problema é menor do que ele é.
Existem duas explicações para esse comportamento. A primeira é que os engenheiros da Sabesp não são capazes de usar a matemática para representar de forma realista a disponibilidade de água. A segunda é que a empresa decidiu utilizar uma artimanha matemática para minimizar a crise. Prefiro a primeira hipótese. É difícil imaginar que uma empresa listada na bolsa tenha enganado clientes e investidores.
Fernando Reinach é biólogo

Ninguém sabe o que fazer com o velódromo-fantasma da USP



Adriano Wilkson
Do UOL, em São Paulo
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Velódromo da USP6 fotos

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23.ago.2011 - Velódromo da USP está abandonado, sem manutenção há duas décadas. Reformá-lo é caro; destruí-lo pode ser mais caro ainda Ze Carlos Barretta/Folhapress

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Victor Hugo Santos foi visto por seus amigos pela última vez numa madrugada de pop rock e hip hop que reuniu cerca de 5 mil estudantes no velódromo da Universidade de São Paulo. Eles estavam ali para se divertir e conhecer gente nova. Tinham pagado R$ 45 para poder beber o quanto quisessem durante a noite toda. Um amigo diria à polícia que por volta das 4h30 da manhã, Victor avisou que iria buscar bebida e se afastou.
Ninguém sabe o que aconteceu daí até o momento em que, três dias depois, o corpo de Victor foi encontrado na raia olímpica da universidade, a cerca de 100 metros de onde ele foi visto pela última vez. Ele não tinha sinais aparentes de afogamento, de acordo com os primeiros peritos que o analisaram.
A morte de Victor fez a universidade suspender todas as atividades marcadas para acontecer no velódromo, um gigante de concreto, aço e musgo, construído pela ditadura militar para receber um Pan-Americano que os generais decidiram de última hora não organizar. O velódromo, mesmo sendo um dos poucos de sua espécie no Brasil, não sedia um evento oficial de ciclismo ou de qualquer outro esporte há 20 anos.
Ninguém sabe direito o que fazer com ele. Arquitetos dizem que ele não cumpre normas de segurança. Estudantes dizem que só fazem festas lá porque não há outros espaços para elas no campus. Ciclistas, para quem o velódromo foi construído afinal, dizem que ele está defasado e fora dos padrões contemporâneos do esporte, mas que poderia ser usado para treinos. Reformá-lo é caro; destruí-lo pode ser mais caro ainda.
A universidade diz que não tem dinheiro para nenhuma das opções. Abandonado, sem manutenção há duas décadas, o velódromo viu duas árvores crescerem lentamente entre a pista e a arquibancada, o verde das folhas contrastando com o aspecto lunar do entorno. Ninguém cortou as árvores, nem impediu que entulhos fossem depositados ao pé, ao longo dos anos.
"É uma pena que esse equipamento enorme esteja sem uso há tanto tempo", lamenta Emílio Miranda, o diretor do Centro de Práticas Esportivas da USP, que assumiu o cargo no começo deste ano e já trabalha na universidade desde os anos 70. "Mas a universidade não pode ser responsabilizada por um legado que ela recebeu de terceiros e não pediu. Hoje, temos algumas prioridades de investimento, e o velódromo não é uma delas."
Sem a pista, atletas usam as ruas do campus para pedalar, às vezes em altíssima velocidade, o que provoca atritos com motoristas e pedestres, além do risco de acidentes. Há na USP uma briga antiga e eterna entre atletas e não-atletas, os primeiros sendo frequentemente acusados de desrespeitar os demais. Em 2011, uma jornalista da "Folha de S.Paulo" descobriu que motoristas estavam jogando tachinhas nas ruas do campus, numa tentativa de sabotar o treino e furar os pneus dos ciclistas.

Estudante é encontrado morto na USP - 7 vídeos

A federação paulista de ciclismo, que até o começo dos anos 90 tinha uma sede no velódromo, afirma que saiu de lá porque a reitoria começou a restringir o acesso à pista, no que eles acreditam ter sido um reflexo dessa aversão acadêmica às magrelas. A universidade nega.
Era um tempo em que o esporte estava em alta no país, e o velódromo recebia milhares de pessoas para competições nacionais e internacionais. Era um tempo em que gente como Jair Braga, um dos grandes nomes da modalidade nos anos 80, estudava cada centímetro da pista e seus próprios batimentos cardíacos durante dias para tentar uma volta perfeita e uma quebra de recorde. Era um tempo em que bicicletas mexiam com a paixão das pessoas. Um tempo em que a rivalidade entre as equipes da Caloi e da Pirelli parecia quase um Corinthians e Palmeiras sobre rodas.
Hoje, o único esporte que o velódromo abriga são raros treinos de handebol na quadra improvisada na parte interna da pista. Quando a reportagem esteve lá, porém, ninguém soube dizer a última vez que isso havia acontecido.
Os poucos ciclistas de pista do Brasil se dividem entre os poucos velódromos espalhados em duas regiões do país. Em São Paulo, há dois no interior. O do Rio, construído para o Pan-Americano de 2007, foi descontruído e ninguém sabe o que fazer com as peças. A cidade erguerá outro, do zero, para a Olimpíada.
A seleção brasileira, que segundo a confederação do país tem tido resultados promissores para 2016, treina na Europa.
Velódromo e futebol
A história dos velódromos brasileiros é curiosa, assim como os usos que se deram a eles ao longo dos anos. No final do século 19, foi construído o Velódromo Paulista, na Rua da Consolação, centro da capital. Em seus primeiros anos, ele até recebia páreos de bicicletas, chamadas candidamente nos jornais da época de "machinas". Mas logo isso iria mudar.
Em 1905, o local foi palco de shows de entretenimento como a decolagem do balão a gás do aeronauta português Magalhães Costa, que cruzou a Avenida Paulista pelo alto e aterrissou no bairro de Pinheiros para o espanto dos moradores.
Logo, percebeu-se que o espaço central do velódromo poderia ser usado para a prática de outro esporte também em ascensão na época, o futebol. No meio da pista, um gramado foi plantado, traves foram instaladas, o campo demarcado e os jogadores chamados para bater bola naquele que alguns historiadores consideram o primeiro estádio de futebol do país – conta-se que lá havia uma placa em que se lia: "É proibido vaiar".
O futebol foi paulatinamente ganhando mais importância sobre o ciclismo e se tornou o esporte mais praticado no Velódromo Paulista, que manteve esse nome até ser demolido para dar lugar a uma avenida.
Durante a ditadura militar, São Paulo foi indicada para receber o Pan-Americano de 1975 – a cidade já sediara o evento em 1963. O Ministério do Esporte resolveu construir um novo velódromo no campus da USP.
Dois anos antes do Pan acontecer, o governo decidiu recusá-lo. A justificativa oficial era a de que o país estava ameaçado por um surto de meningite. Décadas depois, porém, funcionários disseram que o motivo real foi falta de dinheiro mesmo. Ainda assim, o velódromo na universidade foi erguido. E lá está ele até hoje.
A última gestão da reitoria, de João Grandino Rodas, encomendou um projeto para reaproveitar o espaço. O escritório de arquitetura Castro Mello, o mesmo que desenhou o novo Mané Garrincha, em Brasília, apresentou sua solução: demolir o velódromo e construir uma arena multiuso no lugar, a Arena USP.
Concorre para essa opção o fato de que a pista desse velódromo é de concreto, enquanto as melhores atualmente são de madeira. A pista da USP também está fora das dimensões oficiais que se usa hoje em dia.
A universidade assentiu. De acordo com a direção, há tão poucos ciclistas de pista, que não vale a pena reformar um velódromo que teria um uso muito restrito. A federação rebate, dizendo que existem poucos ciclistas de pista apenas porque, elementar, existem poucas pistas!
Adriano Wilkson/UOL
"Sem dúvida se houvesse mais espaços para treinar, haveria mais gente interessada e disposta a praticar a modalidade", afirma Gilson Avaristo, diretor técnico da federação. Ele argumenta que o Brasil anda na contramão do movimento olímpico porque as principais potências tendem a investir bastante no ciclismo, o esporte que mais distribui medalhas nos Jogos.
"No mundo todo, você começa pedalando no velódromo e depois vai para a estrada, é o caminho natural, mas aqui fazemos o contrário", afirma Paulo Márcio Ferreira, o Melão, que compete por uma equipe de São Bernardo e treina em Caieiras, onde está o velódromo mais próximo da capital.
Para driblar a falta de uma pista própria, os ciclistas paulistas criaram um regulamento para adaptar as regras do esporte às ruas do Estado. Acostumaram-se, então, a pedalar suas bicicletas a cerca de 40km/h em estradas. Um detalhe: as bicicletas do ciclismo de pista, por padrão, não têm freios. "Se um cachorro, um buraco, ou qualquer coisa aparecer na sua frente, há muito pouco o que fazer", diz Melão. O regulamento prevê uma área de escape para que os atletas desacelerem depois de um sprint.
As baladas e os motivos
Receber festas e outras atividades culturais, a princípio, não é um problema para velódromos, de acordo com as pessoas consultadas para esta reportagem. Em uma universidade, as atividades culturais e de lazer são essenciais para os estudantes confraternizarem. São também a única forma de eles levantarem fundos para manter a organização e o movimento estudantil.
No caso da pista da USP, o problema é que não há perspectivas no curto, médio e longo prazo para um uso esportivo do espaço, e o velódromo permanece abandonado. Cada um tem sua própria explicação sobre o atual estado das coisas.
Diz Emílio Miranda, diretor do Centro de Práticas Esportivas da USP: "O problema é que a federação simplesmente foi embora, perdeu o interesse no velódromo e foi buscar outros espaços no interior. A universidade nunca quis passar um cadeado e impedir o acesso, não faz sentido."
Gilson Avaris, diretor da federação: "Tivemos o acesso cada vez mais dificultado pelas sucessivas reitorias e isso tem a ver com a aversão que a comunidade acadêmica tem a ciclistas. As desavenças foram ficando cada vez maiores. Como não havia mais como treinar lá, tivemos que buscar opções no interior."
Gabriel Regensteiner, estudante de Ciência Sociais e diretor do Diretório Central dos Estudantes: "O problema é que a estrutura da USP é muito engessada e não há muito espaço para discussão com a comunidade. Deveria ser feito um debate amplo com todas as partes envolvidas para se definir qual é a função social do velódromo, mas isso não é feito e as decisões são quase sempre unilaterais. O velódromo não é o primeiro caso de uma obra faraônica que fica abandona, sem uso, na universidade."
Eduardo de Castro Mello, autor do projeto da Arena USP: "É uma questão de estrutura. Universidades estrangeiras dão muita ênfase ao esporte, os equipamentos e instalações são sempre os melhores e é daí que saem os atletas de ponta. No Brasil não existe um direcionamento pra essa área, a universidade está mais voltada pro lado didático, e a parte esportiva é relegada a um segundo plano."
Ao ser questionado sobre o futuro próximo do velódromo, o diretor Emílio Miranda dá de ombros e fala em um grupo de trabalho que vem discutindo uma forma de regulamentar as festas no local. Desde a morte de Victor Hugo, em meados de setembro, elas estão suspensas, por tempo indeterminado.
O projeto da Arena USP foi, aparentemente, engavatado logo depois de apresentado no final do ano passado. A direção argumenta que a greve de quatro meses, de professores e funcionários, atrasou todos os cronogramas.
Sem bicicletas, sem baladas, sem torcidas e sem razão de ser, o velódromo-fantasma, comparado pelo pai de Victor a um "mausoléu", permanece lá, imponente e decadente, um enorme ponto cinza no meio do campus verde da universidade.  
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Os torcedores mais engraçados da Volta da França12 fotos

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Birtânico vira guitarrista e grita para os ciclistas que estão competindo na 101ª edição da tradicional Volta da França AP Photo/Christophe Ena

Por que pessoas estão indo a este estádio de futebol para tentar suicídio?



Adriano Wilkson
Do UOL, em São Paulo
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Tentativas de suicídio no estádio Morenão (MS)6 fotos

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Estádio Morenão, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul Divulgação / UFMS

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Ela não teve dificuldade de chegar ao pé da torre, de alcançar seu esqueleto metálico e através dele começar uma escalada em direção ao céu. Ao pé da torre não havia nada, nenhuma grade, nenhum muro, nenhuma cerca, nenhum impedimento que a dissuadisse. Ela não se intimidou com o vento forte, com a gravidade puxando-a para baixo, e venceu os 42 metros entre o chão e os refletores no alto da torre.
No chão, duas estudantes olharam para o céu e viram uma silhueta fina contra o sol quente de setembro. Ela era uma mulher na casa dos 30 anos e se vestia de maneira casual, uma blusa leve amarela, bermuda jeans acima do joelho. Lá do alto, ela não deve ter percebido a multidão de curiosos que rapidamente se formou ao redor da torre de iluminação que ela acabara de escalar. E de onde ameaçava se atirar.
Quando o sargento do Corpo de Bombeiros Air Dione Lopes subiu e a viu de perto pela primeira vez, ela estava chorando, sentada em uma barra de metal, aparentemente alheia a qualquer estímulo exterior.
O sargento anunciou sua chegada, perguntou se ela estava bem. Tentou tranquilizá-la, dizer que estava lá para ajudar, que ela confiasse em Deus, que tudo ia dar certo. Ela continuava a chorar e não respondeu. Levantou-se e, num gesto intempestivo, ficou de pé na estreita barra de metal, balançando no vazio. Abriu os braços contra o vento forte, equilibrando-se na torre, que tremia.
Air Dione teve certeza de que aquele seria o fim.
Marcelo Victor/Campo Grande News
"Se você se jogar, eu me jogo também", avisou o sargento. E implorou: "Não faz isso comigo, moça, por favor!" A mulher retroagiu. Voltou a se sentar na barra de metal, ainda sem falar uma palavra. Fechou os olhos novamente.
Air Dione diz ter ouvido uma voz, que ele diz ter sido de Deus, sussurrando em seus ouvidos: "É agora."
Quando a mulher abriu os olhos de novo, o sargento já estava em volta dela, os braços treinados agarrando seu corpo, o coração querendo pular da boca. "Agora eu não vou te soltar mais", anunciou ele. Foi só aí, quando os dois já estavam juntos, que ela falou pela primeira vez com o homem que salvara sua vida: "Sua bota está aberta", disse ela. E parou de chorar.
Em uma situação de resgate como aquela, o protocolo sugere que o negociante convença o potencial suicida a voltar atrás. Naquela tarde de setembro, porém, a estrutura da torre, a posição da vítima, as rajadas de vento e a lei da gravidade levaram os bombeiros a temer uma tragédia. Eles tiveram de agir rápido: a mulher podia se desequilibrar e, inadvertidamente, cair.
Os bombeiros tinham calculado o risco de uma abordagem mais agressiva e o assumiram.
Depois que sargento e vítima chegaram juntos ao chão, após uma descida por rapel na qual a mulher repetia que precisava tomar a sua "gotinha" (o que os bombeiros interpretaram como uma referência ao calmante Rivotril), eles perceberam que tinha dado certo.
A torre de iluminação do estádio Pedro Pedrossian, o Morenão, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, tinha ficado para trás. Tinha voltado a ser tão inofensiva quanto uma torre de iluminação desligada pode ser.
Em solo, a mulher foi acolhida e levada a um hospital da região. Em estado de choque, não conseguiu conversar com bombeiros e policiais. O capitão Silvio Romero, que gerenciou o resgate, disse que o máximo de informação que eles puderam obter foi que: 1) ela usava remédios controlados; 2) naquele dia, não os tinha tomado; 3) ela sofria de depressão e 4) nunca havia superado a morte de um filho.
A tentativa de suicídio aconteceu em 25 de setembro do ano passado. Em 1º de dezembro, um rapaz repetiu o gesto, subiu na mesma torre com a mesma facilidade, mas foi convencido a descer pelo resgate.
Quinze dias depois, outro homem tentou suicidar-se no mesmo local, mas também desceu na última hora.
O estádio Morenão, o maior da capital sul-mato-grossense, havia sido interditado em julho para jogos de futebol por causa de problemas estruturais. Depois das tentativas de suicídio, a Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), que administra o estádio, instalou câmeras de segurança na área, uma medida que pode ajudar a prevenir a aproximação de suicidas em potencial.
Estima-se que 25 pessoas cometam suicídio por dia no Brasil e outras 50 o tentem, sem consumar o ato. O Mato Grosso do Sul tem a terceira mais alta taxa de mortes voluntárias no país (8,4 casos a cada 100 mil habitantes), atrás apenas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.
Especialistas dizem que esses números são subestimados porque muitos casos simplesmente não são notificados ou são registrados como acidentes.
O professor Edilson Reis, que há mais de duas décadas dá aulas de Bioética na UFMS, coordena um projeto de prevenção a esse grave problema social. Ele entra em escolas, igrejas, entidades de classe e faculdades para falar sobre o assunto.
Reis, que também trabalha nos Bombeiros, foi chamado quando uma das vítimas subiu na torre do Morenão. Ele foi o negociador que convenceu o rapaz de vinte e poucos anos, usuário de drogas e com problemas conjugais, a descer dos refletores.
Ele tem uma opinião clara sobre por que essas pessoas estão procurando aquela torre para seu ato desesperado.
"A resposta está em [Émile] Durkheim: o suicídio é uma denúncia individual de uma crise coletiva", afirma ele, em referência ao sociólogo francês autor de um clássico sobre o assunto. "Essas pessoas estão sofrendo e não têm com quem compartilhar sua angústia. Escolhem um lugar público, de grande visibilidade, e o Morenão é um símbolo de Campo Grande, para denunciar seus problemas, problemas com os quais elas não conseguem mais lidar. Elas fazem isso para mostrar que existem e que precisam de ajuda. Nós temos que ajudá-las."
Um elefante na sala de estar
Tirar a própria a vida é uma decisão transgressora por natureza, com a qual não sabemos lidar. E a imprensa tem papel fundamental na manutenção desse tabu. Quem já passou por uma faculdade de jornalismo sabe que o suicídio é um tema obrigatório quando se fala sobre a ética da profissão.
Em geral, a primeira lição da aula sobre suicídio é: evite falar sobre suicídio. Trata-se de uma lei não escrita da imprensa, segundo a qual notícias sobre morte voluntária incentivariam mais pessoas a tirar a própria vida.
O receio de tratar do assunto tem razão de ser, já que vários estudos mostraram a relação entre coberturas de suicídios e o aumento de casos. A relação parece ser mais direta quando a morte retratada é a de personalidades conhecidas.
Nos últimos anos, esse tabu vem sendo desafiado e já é possível encontrar reportagens aprofundadas sobre suicidas. Mesmo assim, o desconforto sedimentado em décadas de silêncio continua a existir.
O repórter Alan Diógenes, que trabalha para o site "Campo Grande News", acompanhou o resgate da mulher que subiu na torre do Morenão e escreveu uma reportagem sobre o que viu.
Ele afirma acreditar que a ampla cobertura do fato (a maioria das emissoras de TV e jornais da cidade também deram atenção ao assunto) incentivou os outros dois homens que repetiram o gesto semanas depois.
"É um assunto difícil e polêmico, mas acreditamos que o dever da imprensa é informar a sociedade e resolvemos fazer isso", diz o jornalista.
A professora Fernanda Marquetti, estudiosa de casos de suicídio em locais públicos, tem a mesma opinião. Ela acredita que quanto mais informação e debate houver, mais estaremos preparados para lidar com o suicídio e menos desamparadas ficarão as pessoas que sofrem.
"O fundamental é mostrar que a pessoa com vontade suicida não é necessariamente um louco ou um doente", diz ela. "O mundo é que está ficando cada vez mais absurdo, sem sentido, e a pessoa que tem problemas não está sozinha. Às vezes, o pensamento suicida está atrelado a uma doença, como a depressão ou a esquizofrenia, mas na maioria dos casos, a pessoa não é doente. É importante mostrar que, por mais duro que seja o problema pelo qual ela está passando, sempre há uma saída, uma alternativa."
Barreiras
No Morenão, depois dos três casos no ano passado, foram instaladas câmeras de segurança no entorno do estádio, uma medida cuja decisão já havia sido tomada há muito tempo e que deve ao menos alertar as autoridades caso alguém resolva subir nas torres.
Mas isso ainda é pouco. O professor João Jair Sartorello, chefe da administração do estádio, afirma que apenas a instalação de uma grade de proteção em torno das torres pode, de fato, impedir que elas sejam usadas como um meio para se tirar a própria vida.
Ele diz que a universidade tem projeto de instalação das grades, mas não consegue precisar quando isso vai acontecer.
A eficácia desse tipo de barreira é discutida entre os estudiosos. De um lado, costuma-se dizer que o suicida é, em geral, um indeciso e que uma restrição nos meios de se consumar o ato pode dissuadi-lo de praticá-lo.
No entanto, pessoas que advogam barreiras em pontes, viadutos, torres e prédios altos costumam ouvir um argumento que é difícil de rebater: quem quer mesmo se matar vai encontrar um jeito.
Depois de subir na torre do estádio do Morenão e ser salva pelos bombeiros, a mulher cuja história abre esta reportagem foi encaminhada a um centro de tratamento. Semanas depois, ainda assombrada pelos próprios fantasmas, ela subiu na torre da caixa d'água de um supermercado e pôs fim a sua vida.
Dessa vez, os bombeiros chegaram tarde demais. 
***
Como ajudar a prevenir suicídios
Voluntários do Centro de Valorização da Vida (CVV), uma organização não-governamental que se dedica a ajudar pessoas com pensamento suicida, dizem que nada pode ser mais útil do que a capacidade de ouvir. Quem está disposto a ajudar um amigo, parente ou conhecido que vive um momento difícil e desesperador deve estar apto a escutá-lo desabafar.
Para quem está desesperado, para quem acha que está sozinho, se sentir simplesmente acolhido pode ser fundamental para a recuperação.
"Primeiro, é preciso ficar atento a quem está a seu redor", aconselha o voluntário Carlos Correia, do CVV. "Se você sabe de uma pessoa que está muito triste há muito tempo, pergunte como ela se sente e como você pode ajudar. Ouça tudo que ela tiver a dizer, sem julgamentos, sem conselhos, sem indicar um caminho quevocê tomaria, mas que pode não servir a ela. O mais importante nesse momento, para ela, é ser escutada."
Famílias que tenham sofrido com a perda de um membro por suicídio devem falar sobre o assunto, superar o trauma, até para prevenir que novos casos ocorram. "Falar sobre suicídio não aumenta o risco", diz uma cartilha da Associação Brasileira de Psiquiatria. "Muito pelo contrário, falar com alguém sobre o assunto pode aliviar a angústia e a tensão que esses pensamentos trazem."
Os voluntários do CVV estão sempre dispostos a conversar e atendem pessoalmente em postos espalhados pelo Brasil ou pelo telefone 141.