quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Capital afetivo, HUMBERTO WERNECK - O Estado de S.Paulo

Capital afetivo

25 de agosto de 2013 | 2h 16


A esta altura dos acontecimentos, devo admitir que ainda não achei resposta para a pergunta com que o Caetano foi ao ponto: existirmos, a que será que se destina? Seremos, como dizia no fim o Cazuza, cobaias de Deus? Se você me permite a filosofada, desconfio que o sentido da vida se resume ao inconsequente prosseguimento da espécie, nessa absurda correia transportadora em cujo termo nos espera a queda no vazio. Resta saber o que faremos enquanto estamos por aqui. Se aceita sugestão, aqui vai esta: o melhor investimento é nos afetos.
Nada impede que a gente faça amigos até o último dia, mesmo como esforço de reposição, e espero que seja assim comigo. Alguns anos atrás, para comemorar uma idade redonda, dei uma festança, e me lembro da alegria que saboreei quando, ao descer uns degraus rumo ao espaço onde estava o povaréu, me bateu essa constatação: o que costurava aquelas 200 pessoas - muitas das quais nem se conheciam -, numa inédita e irrepetível configuração, era o afeto que me ligava a cada uma delas.
E não se tratava, benza Deus, de passageiros apenas do vagão de 1945, aquele em que desembarquei no mundo; ao contrário, estacionara ali uma composição de variadas gerações, dos 80 anos aos menos de 20. Foi gratificante me dar conta de que venho resistindo bem à tentação, reforçada pelo envelhecimento, de me refugiar nostalgicamente no vagão de origem. Bom saber que posso transitar por todos os demais até que chegue à estação final.
Lá estavam, claro, vindos de diversas partes, amores meus também chegados em 1945 e imediações; os "amigos fundamentais" a quem dediquei um livro e que me empenho em cultivar. Pois não é pouca coisa uma amizade capaz de atravessar, nem digo décadas, mas tantas solicitações à dispersão. É fácil ser amigo enquanto impera o socialismo da juventude, essa companheiragem - os mesmos sonhos, os mesmos gostos, o mesmo dinheiro curto - que nos mantém mancomunados até por volta dos 30, 30 e poucos anos, quando uma diáspora nos espalha por destinos nem sempre coincidentes e não raro inconciliáveis. É duro admitir, mas há em nossos corações (ou será no fígado?) um quarto de despejo para descarte de afetos vencidos.
Cada safra de amizades tem sua marca, mas só as mais antigas ostentam o privilégio de haverem compartilhado descobertas primordiais. Só na extrema juventude você tem direito de anunciar a seus parceiros, sem risco de ridículo, que descobriu um tal de Dostoievski, um tal de Brahms, um tal de Cézanne. Ou mesmo um tal de... não, não vou dizer o nome do romancista em questão. Mas entrego a cena cômica.
Ali pelos nossos 20 anos, um de meus comparsas literários, cujo nome também devo omitir, me apareceu um dia, exultante, com um livro nas mãos. Eu tinha que ler aquilo, tinha!, urgia ele, enfático. Bom assim?, perguntei, descrente de que por trás daquele título e daquela capa, ambos medonhos, pudesse haver o que se aproveitasse. Não - concedeu ele, antes de proferir essa maravilha: "É ruim, mas importante!". Pra quê! Estava criada em nossa roda, para todo o sempre, a categoria do ruim-mas-importante.
Mas convém ir devagar nos julgamentos, pessoais e literários inclusive. Era menino quando minha mãe me aplicou o Coração, do italiano Edmundo De Amicis, centenária coletânea de histórias que li e reli apaixonadamente, mas que no final da adolescência, sentindo-me não só homem feito como senhor de insubornável senso crítico, condenei à estante da subliteratura lacrimogênea. Já me aproximava dos 30 anos quando reencontrei o mesmo exemplar de Coração, que me pus a folhear, enquanto contava à amiga que me acompanhava: "Imagina que eu lia isso e chorava...". Abri o livro ao acaso e comecei a ler, em tom de mofa, a história do pequeno vigia lombardo, até que a voz engasgou e os olhos, como antigamente, boiaram em lágrimas.
(Epa, eu falava de amizade, enveredei pelas letras, cheguei às lágrimas... Espero que você perdoe o desconchavo. Amigo não é pra essas coisas?)

domingo, 25 de agosto de 2013

“Relatório da comissão da verdade tem que ser feito com participação das vítimas”


A advogada criminalista Rosa Maria Cardoso deve deixar nesta semana o cargo de coordenadora da Comissão Nacional da Verdade. Será substituída pelo também criminalista José Carlos Dias. Em entrevista ao Estado, para um balanço dos três meses em que esteve na coordenação do grupo, Rosa Maria relatou que alterou o ritmo e o rumo dos trabalhos. Entre outras coisas, abriu espaço e deu mais voz para os grupos de ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos, reduziu o número de sessões fechadas para o público, nomeou um novo secretário executivo e instituiu atas para as reuniões.
Paralelamente, ela apoiou manifestações favoráveis à reinterpretação da Lei da Anistia, oferecendo combustível a uma campanha cujo objetivo é abrir caminho para que agentes públicos que violaram direitos humanos nos anos da ditadura sejam julgados e punidos. Na avaliação dela, esse debate é irreversível e constitui a principal causa de atrito que persiste entre a comissão e as Forças Armadas.
A seguir, os principais trechos da conversa com a advogada.
A senhora ampliou o espaço de vítimas e de familiares na comissão. Qual foi sua intenção?
A comissão é a chance que eles têm de ver a sua história contada. Se não houver uma participação efetiva dos interessados, o rumo do trabalho e o relatório final será diferente do que eles querem.
E o que eles querem?
Não querem o relatório de um historiador. Querem a história contada por eles. No mundo inteiro tem sido assim: os relatórios de comissões da verdade são sempre a história de graves violações de direitos humanos. Foi por isso que ampliei o número de pessoas que sentam à mesa de reuniões, que tornei as sessões mais abertas, que abri novas possibilidades de vítimas e familiares participarem das investigações. Dos 76 depoimentos tomados enquanto fui coordenadora, 72 foram em atos ou audiências públicas. Essa média é maior do que a registrada nos meses anteriores.
A senhora anunciou que vai contratar novos assessores. O quadro atual, com 18 assessores diretos, além de colaboradores indiretos, num total de quase 70 pessoas, não é suficiente?
Uma comissão da verdade em um país do tamanho do Brasil deve ter um número maior de pesquisadores e assessores diretos. A ONU indica em torno de 250 para esse tipo de atividade. A comissão tem um mandato, que é curto, e precisa percorrer, pesquisar, buscar pistas numa quantidade enorme de documentos reunidos no Arquivo Nacional. Também precisa analisar arquivos nas seções estaduais do Dops e todo o material produzido pela Comissão da Anistia, que documentou 70 mil casos no País.
Quantas pessoas devem ser contratadas?
Preparei os documentos e as condições para a contratação de 100 pesquisadores e 20 consultores. Vão trabalhar por um tempo limitado de seis meses. É importante fazer isso agora, porque vamos começar a preparar o relatório final. A primeira reunião para discutir visões preliminares do relatório final está marcada para o início de setembro.
As vítimas e familiares devem participar da elaboração do relatório final?
As pessoas estão cobrando que seja dessa forma e eu acho que o caminho não tem retorno. Não podemos produzir um relatório que depois seja questionado pelas vítimas e familiares.
Não seria melhor um grupo mais especializado e reduzido?
Acho que não. As vítimas, os familiares, os militantes de comitês de direitos humanos, estudantes, as comissões estaduais da verdade, os grupos de apoio, todos têm suas concepções sobre como deve ser o trabalho, todos têm informações e condições de participar. A teoria não está toda contida na universidade. Tem familiar de morto e desaparecido que conhece muito bem os arquivos já existentes e sabe identificar rapidamente o que é novidade e o que não é.
Acha que antes da senhora assumir a coordenação a visão da comissão era mais acadêmica?
Tendia a ser. Acho que o relatório final merece uma composição a muitas mãos, com gente da academia, jornalistas informados sobre o tema, militantes.
A comissão tem sete integrantes mas está atuando apenas com cinco, porque a presidente Dilma Rousseff não nomeou os substitutos dos dois membros que pediram demissão. Isso não atrapalha?
É muito ruim. Se tivesse com mais gente, a comissão poderia ter viajado mais. Ainda demos pouca atenção às regiões Norte e Nordeste.
A senhora sabe o motivo da demora nas nomeações?
Não. Eu penso que ela ficou muito envolvida com as manifestações de junho e, depois, com a visita do papa. Agora imagino que ela está dando um tempo para a evolução política, para ver como a comissão resolve seus problemas, a nossa capacidade de formular alternativas.
Como vê o seu sucessor, o advogado José Carlos Dias?
Temos uma larga convivência, porque fomos advogados de presos políticos juntos. Agora ele tem uma diferença comigo e em relação a outros membros da comissão, que é o fato de ser contrário à reinterpretação da Lei da Anistia.
Isso causaria alguma resistência a ele na comissão?
Nenhuma. Os outros membros se dão muito bem com ele. Não há nenhum confronto. Ele é uma pessoa polida, educada, equilibrada. Não é um destemperado.
E quanto às vítimas e familiares? O que acham dele?
A luta pela reinterpretação da Lei da Anistia está ganhando força e não sei como isso vai ficar. Antes o debate não estava colocado com a força que tem agora. A Ordem dos Advogados está discutindo o assunto no Brasil inteiro.
A relação com as Forças Armadas ainda parece delicada. Dias atrás, ao comunicar a morte do major-brigadeiro Rui Moreira Lima, herói da 2.ª Guerra Mundial, a Aeronáutica omitiu que se opôs ao golpe militar e que colaborou com a comissão.
A relação é  é completamente delicada. Eles têm o realismo de compreender que esse assunto está fora do controle político. Não temos mais a possibilidade de um decreto que proíba, por exemplo, o debate sobre a reinterpretação da Lei da Anistia. Na verdade eles jamais acreditaram que a comissão fosse uma forma de estancar o debate. Uma minoria compreendeu logo que havia uma imposição internacional no sentido de que houvesse uma comissão da verdade, destinada a restabelecer a história. Nas Forças Armadas também há muita gente capaz de compreender que no caso de alguém que agrediu seu filho, arrancou um pedaço dele, é justo que seja submetido a Justiça.
A senhora já deixou claro que é favorável à judicialização.
A judicialização de violações não prescritas legalmente é uma solução civilizada. O que não é civilizado é a justiça com as próprias mãos. Todas as sociedades civilizadas entenderam que problemas dessa natureza têm que ser submetidos à Justiça. A impunidade não pode ser a regra, porque acaba funcionando como estímulo à repetição. A judicialização não é uma atitude raivosa, agressiva, violenta. É claro que os militares de uma geração próxima ou diretamente envolvida com os fatos não veem com bons olhos o funcionamento de uma comissão da verdade. Só se fosse uma comissão interessada em contar a história de uma forma acadêmica.
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