Capital afetivo
25 de agosto de 2013 | 2h 16
A esta altura dos acontecimentos, devo admitir que ainda não achei resposta para a pergunta com que o Caetano foi ao ponto: existirmos, a que será que se destina? Seremos, como dizia no fim o Cazuza, cobaias de Deus? Se você me permite a filosofada, desconfio que o sentido da vida se resume ao inconsequente prosseguimento da espécie, nessa absurda correia transportadora em cujo termo nos espera a queda no vazio. Resta saber o que faremos enquanto estamos por aqui. Se aceita sugestão, aqui vai esta: o melhor investimento é nos afetos.
Nada impede que a gente faça amigos até o último dia, mesmo como esforço de reposição, e espero que seja assim comigo. Alguns anos atrás, para comemorar uma idade redonda, dei uma festança, e me lembro da alegria que saboreei quando, ao descer uns degraus rumo ao espaço onde estava o povaréu, me bateu essa constatação: o que costurava aquelas 200 pessoas - muitas das quais nem se conheciam -, numa inédita e irrepetível configuração, era o afeto que me ligava a cada uma delas.
E não se tratava, benza Deus, de passageiros apenas do vagão de 1945, aquele em que desembarquei no mundo; ao contrário, estacionara ali uma composição de variadas gerações, dos 80 anos aos menos de 20. Foi gratificante me dar conta de que venho resistindo bem à tentação, reforçada pelo envelhecimento, de me refugiar nostalgicamente no vagão de origem. Bom saber que posso transitar por todos os demais até que chegue à estação final.
Lá estavam, claro, vindos de diversas partes, amores meus também chegados em 1945 e imediações; os "amigos fundamentais" a quem dediquei um livro e que me empenho em cultivar. Pois não é pouca coisa uma amizade capaz de atravessar, nem digo décadas, mas tantas solicitações à dispersão. É fácil ser amigo enquanto impera o socialismo da juventude, essa companheiragem - os mesmos sonhos, os mesmos gostos, o mesmo dinheiro curto - que nos mantém mancomunados até por volta dos 30, 30 e poucos anos, quando uma diáspora nos espalha por destinos nem sempre coincidentes e não raro inconciliáveis. É duro admitir, mas há em nossos corações (ou será no fígado?) um quarto de despejo para descarte de afetos vencidos.
Cada safra de amizades tem sua marca, mas só as mais antigas ostentam o privilégio de haverem compartilhado descobertas primordiais. Só na extrema juventude você tem direito de anunciar a seus parceiros, sem risco de ridículo, que descobriu um tal de Dostoievski, um tal de Brahms, um tal de Cézanne. Ou mesmo um tal de... não, não vou dizer o nome do romancista em questão. Mas entrego a cena cômica.
Ali pelos nossos 20 anos, um de meus comparsas literários, cujo nome também devo omitir, me apareceu um dia, exultante, com um livro nas mãos. Eu tinha que ler aquilo, tinha!, urgia ele, enfático. Bom assim?, perguntei, descrente de que por trás daquele título e daquela capa, ambos medonhos, pudesse haver o que se aproveitasse. Não - concedeu ele, antes de proferir essa maravilha: "É ruim, mas importante!". Pra quê! Estava criada em nossa roda, para todo o sempre, a categoria do ruim-mas-importante.
Mas convém ir devagar nos julgamentos, pessoais e literários inclusive. Era menino quando minha mãe me aplicou o Coração, do italiano Edmundo De Amicis, centenária coletânea de histórias que li e reli apaixonadamente, mas que no final da adolescência, sentindo-me não só homem feito como senhor de insubornável senso crítico, condenei à estante da subliteratura lacrimogênea. Já me aproximava dos 30 anos quando reencontrei o mesmo exemplar de Coração, que me pus a folhear, enquanto contava à amiga que me acompanhava: "Imagina que eu lia isso e chorava...". Abri o livro ao acaso e comecei a ler, em tom de mofa, a história do pequeno vigia lombardo, até que a voz engasgou e os olhos, como antigamente, boiaram em lágrimas.
(Epa, eu falava de amizade, enveredei pelas letras, cheguei às lágrimas... Espero que você perdoe o desconchavo. Amigo não é pra essas coisas?)
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