segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Os heróis morrem?, por roberto Amaral na Carta Capital

Trajetória


Ao lado de Jamil Haddad, Florestan Fernandes, Jacob Gorender e Evandro Lins e Silva, o brigadeiro Rui Moreira Lima deveria ser eterno como são os deuses gregos
por Roberto Amaral — publicado 16/08/2013 12:27
Infelizmente, os heróis também morrem, e morrem sempre muito cedo. Deveriam ser eternos, como os deuses gregos, para eternamente poderem iluminar seus povos e a Humanidade, não pela memória de seus feitos, mas pela lição de suas presenças. Sinto a ausência de Antônio Houaiss, a quem não posso mais consultar. De Jamil Haddad e de Florestan Fernandes, que encerraram o magistério socialista, o primeiro com a sua só existência, o segundo nos ensinando com sua obra monumental,  e com a monumentalidade de seu exemplo humano. Já não posso almoçar com Evandro Lins e Silva - ao lado de Sobral Pinto o maior advogado brasileiro depois de Rui Barbosa - mas, sobre ambos, um socialista de primeira água. Barbosa Lima Sobrinho já não escreve no  Jornal do Brasil. O velho diário começou a morrer quando se calou sua coluna dos sábados. Não é consolo dizer que seus textos permanecem atuais, mas o fato objetivo é que Jacob Gorender, raro exemplar de marxista que soube reunir na ação teoria e prática - já não escreve e que Lúcia continua procurando o corpo de Mário Alves.
Essas reflexões me chegam ao receber a notícia da morte do meu herói brigadeiro Rui Moreira Lima. Na II Guerra Mundial foi piloto de combate da ‘Esquadrilha verde nº 1 Grupo Esquadrão de Caça’ e entre 1944 e 1945 participou de 94 missões na Itália, todas bem sucedidas. Foi o piloto que o maior número de missões cumpriu. Por sua perícia, coragem e heroísmo recebeu do Brasil a Cruz de Combate, dos EUA a Distinguised Flying Cross e a Croix de Guerre avec Palme, da França.
Sua brilhante trajetória militar foi bruscamente interrompida pelo golpe de 1º de abril de 1964, com cassação de seus direitos políticos e a expulsão dos quadros da Aeronáutica – a que serviu com mais dignidade do que todos os seus algozes juntos.
Na ocasião, Moreira Lima comandava a estratégica base aérea de Santa Cruz. Manteve-se, como de resto todo o efetivo da Terceira Zona Aérea, sob o comando do lendário brigadeiro Teixeira, fiel às instituições democráticas.
Lembrando-se de carta que lhe dirigira o pai no dia de sua formatura como oficial (“O soldado não conspira contra as instituições. Ao fazer isso, trai seus companheiros e a nação”), disse Não à ilegalidade. Tomou seu avião, um ‘Paris’, um aviãozinho de transporte para pouquíssimos passageiros e rumou na direção de Minas, onde encontrou a tropa rebelde do trêfego general Mourão, deu uma simples rasante e a coluna se dispersou, de puro medo, como se dispersam os exércitos de formigas: ao deus dará. Precisava, precisavam ele e o brigadeiro Teixeira de uma simples autorização do presidente João Goulart para mobilizar sua esquadrilha. Bastava uma rajada de metralhadora, como fizera tantas vezes com os alemães, e a ‘revolução dos caranguejos’ ali terminaria. Não veio a ordem. As razões da penúltima conciliação de Jango é tema para os historiadores da República. Rui retorna à sua base, manda desarmar os aviões e com sua tropa  fica à espera dos golpistas.
Foi aposentado compulsoriamente, proibido de voar  – o grande piloto! – por 17 anos (ou seja, teve cassada a possibilidade de sobreviver exercendo sua profissão), indo trabalhar no comércio, para sobreviver. Conheceu por três vezes a prisão, ele, que nos céus da Itália tantas vezes se havia exposto à morte para derrotar o nazifascismo e construir a liberdade, e no regresso ao  Brasil, ajudaria a apressar o fim do ‘Estado Novo’. Em 1970, foi sequestrado a mando dos mandarins, e na enxovia iria encontrar-se com seu filho Pedro. Em 1979, Moreira Lima fundou, com outros companheiros, a Associação Democrática e Nacionalista dos Militares (Adnam) com o objetivo de defender os direitos dos militares cassados durante a ditadura e exigir a revisão da anistia aos militares e civis que cometeram contra civis ou militares o abominável crime da tortura.
Conheci-o por volta de 1987, pela mão de Silvio Tendler, o grande cineasta, quando, com ele, e sob sua direção (cabia-me mais a parte política e a elaboração dos textos), conduzimos o primeiro programa de televisão (naquele então anual e com a duração de uma hora) do PSB. Como a direção do programa coube ao Sílvio, posso escrever sem incorrer em vitupério: foi o melhor, o mais importante programa até aqui realizado por qualquer partido. Todo ele dedicado à denúncia da tortura, então um tabu, que atacou com contundência. Não denunciamos a tortura em tese, mas como fato concreto, exemplificado, e expondo a participação de militares e a utilização de quartéis como centros de tortura e assassinatos.
Seu ponto alto foi a intervenção do Brigadeiro Moreira Lima. Denunciando os bárbaros assassinatos, em dependência da FAB (Galeão), por oficiais da FAB, de Sônia Maria Lopes de Moraes e seu companheiro Stuart Angel Jones, o qual, depois de seviciado, teve o rosto amarrado ao cano de escapamento de um veículo da FAB, conduzido por um oficial, sendo arrastado pelo patio, até à morte. São dois 'desaparecidos'.
A contundência do programa despertou grande celeuma, com os militares protestando e o presidente José Sarney invocando nossa audácia para justificar a necessidade de censura prévia aos programas políticos. Mas, além de romper com o tabu, o programa teve sua maior repercussão no plenário da Constituinte. Florestan Fernandes, em discurso notável, atribuiu-lhe o mérito de haver levado à aprovação da emenda do constituinte Jamil Haddad que qualificava a tortura como crime hediondo, inafiançável e imprescritível (CF, art. 5º, XLIII).
Moreira Lima, que sai de cena na juventude de seus 94 anos, esteve sempre do lado certo: lutou contra o nazifascismo, contribuiu para o fim da ditadura em 1945 e  lutou contra o golpe de 1954; defendeu a posse de Juscelino e resistiu à tentativa de golpe de Eduardo Gomes-Carlos Lacerda e outros atores menores em novembro de 1955; lutou pela legalidade em 1961 e resistiu ao golpe de 1964. Foi, até o fim, um adversário da ditadura.
Seu último ato político se deu em outubro do ano passado, quando prestou depoimento à Comissão Nacional da Verdade, e voltou a denunciar a tortura praticada por militares. Para Moreira Lima – e ele o dizia com a autoridade de  militar condecorado – essa prática ignominiosa em nada dignifica o homem ou a mulher de farda, pelo contrário: “o torturador é um bandido, um desgraçado, um covarde”. Palavras simples e exatas, às quais nada cabe acrescentar.
Retifico o início deste artigo: na verdade, os heróis não morrem.

A USP continua a nos indignar no caso Ana Rosa Kucinski!

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A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, da Assembleia Legislativa (Alesp), precisou cancelar e adiar por duas vezes consecutivas uma audiência pública sobre o sequestro, assassinato e desaparecimento, em 1974, da professora Ana Rosa Kucinski, do Instituto de Química (IQ-USP). Isso porque a Universidade de São Paulo deixou de comparecer a ambas, em 14/6 e 29/7.
Daniel Garcia
Bernardo Kucinski em ato de 13/8/2012 pela reversão da demissão de Ana Rosa
Diante do descaso demonstrado pela USP, uma convocação oficial do reitor Grandino Rodas, do procurador geral da universidade e do diretor do IQ já foi aprovada na comis­são. Ainda não há data definida para a nova tentativa de realização da audiência sobre o caso. Na mesma ocasião será discutido o caso de Wilson Silva, marido de Ana Rosa, preso com ela e executado pelos órgãos de repressão política na mesma ocasião.
A Reitoria da USP foi convocada a comparecer porque a professora foi demitida pela Congregação do instituto, em 1975, por “abandono de emprego”, quando já havia sido assassinada pelos órgãos de repressão um ano e meio antes, e era voz corrente que seu desaparecimento estava relacionado à sua militância na esquerda clandestina.
O episódio foi relatado em detalhes pelo jornalista Bernardo Kucinski, hoje professor aposentado da ECA-USP, no livro K. A Revista Adusp publicou na sua edição 52 o capítulo dessa obra “A reunião da Congregação”, que trata do assunto, e na edição 53 reportagem detalhada a respeito, apontando a resistência da atual Congregação a rever o caso.
O professor Wanderley Messias dos Santos, superintendente de Relações Institucionais, encaminhou ofício à Comissão da Verdade “Rubens Paiva”, em 6/6, no qual afirma considerar “prematuro e inoportuno o comparecimento de representante oficial desta Universidade ao referido evento”. Não bastasse o tratamento desatencioso, Messias recorreu às alegações de que 1) a USP criou sua própria Comissão da Verdade, e portanto investigará o caso; e 2) a direção do IQ “já manifestou-se oficialmente a respeito dos episódios envolvendo o caso (...) e as devidas reparações à sua memória”. 
“Subterfúgio”
O professor Kucinski enviou carta à Comissão da Verdade, na qual lamen­ta que a Reitoria da Universidade de São Paulo tenha considerado “inoportuna” a iniciativa da comissão de “esclarecer as circunstâncias da demissão por abandono de função de minha irmã Ana Rosa Kucinski, presa e desaparecida política”. Para ele, é um “subterfúgio” [destacado em negrito no original] a justificativa de que foi criada a Comissão da Verdade da USP: “Essa comissão não iniciou suas sessões, não possui regimento interno e nem cronograma de trabalho”. (Efetiva­men­te, no dia 15/6 o professor Dalmo Dallari, presidente do órgão criado pelo reitor Grandino Rodas, revelou ao Informativo Adusp que até aquela data não contava sequer com uma sala para as oitivas.)
Na carta, o professor reitera a dramática situação vivida pela família, na busca, por décadas, dos restos mortais de Ana Rosa e de uma explicação cabal do seu assassinato: “E o tempo urge. Meu irmão Wulf Kucinski, que tanto batalhou pela localização de minha irmã, faleceu no ano passado aos 80 anos de idade, sem conhecer a verdade dos fatos. Eu já estou na casa dos 76 anos”.
O professor ataca igualmente, no documento, “os inaceitáveis [destacado em negrito no original] termos da declaração da Congregação do Instituto de Química, de 27 de setembro do ano passado, nos quais também se apóia o reitor para justificar o seu não comparecimento”, uma vez que ela diz a certa altura que “se solidariza com a família, amigos e colegas que, na época, não soube­ram das reais circunstância do seu desaparecimento” (de Ana Rosa). “Ora, senhor deputado, o inusitado e escandaloso desse caso, sem paralelo na história da USP, está justamente no fato de que se sabia sim na época, e sobejamente, do caráter forçado e involuntário de seu não comparecimento ao trabalho”. 
Apelo denegado
Ele prossegue afirmando que, quando “a Comissão Processante da Reitoria e a Congregação da Química decidiram pela demissão, em janeiro-fevereiro de 1975, já era amplamente conhecida a condição de desaparecida política de minha irmã, conforme documentos, testemunhos e até notícias de jornal, tudo isso juntado em apelo à Comissão Processante pelo nosso advogado, o falecido dr. Aldo Lins e Silva, em 24 de janeiro de 1975, e denegado (processo 17.499/74/RUSP)”. 
Ainda segundo Kucinski, enquanto “entidades como a Anistia Internacional e a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo já se empe­nha­vam em denunciar a repressão política no Brasil, a Congregação da Química e a Reitoria dessa universidade optaram pelo caminho oposto de legitimar e dar cobertura ao ato criminoso do sequestro e desaparecimento de minha irmã”. 
O professor comenta também o “longo parecer da Assessoria Jurídica da Universidade”, emitido em julho de 1995 em resposta a seu pedido de anulação da demissão de Ana Rosa (Processo 74.1.17459.1.7). Na visão de Kucinski, embora recomendasse ao reitor a aceitação do seu pedido, o parecer “camufla e absolve por trás de uma obscura linguagem jurídica o nefasto papel de coadjuvante de um crime, desempenhado pela instituição USP nesse episódio, em especial por essa mesma Assessoria Jurídica à época. Não há uma palavra de auto-crítica”.

'Rotas da Ditadura' entram no mapa do País'


Atuação de Comissões da Verdade estimula criação de memoriais da luta política em locais usados pela repressão militar; em SP haverá 3 centros

18 de agosto de 2013 | 2h 13

ROLDÃO ARRUDA - O Estado de S.Paulo
Chamado de "sucursal do inferno" nos anos da ditadura, o prédio que abrigava a sede do DOI-Codi em São Paulo, no número 921 da Rua Tutoia, terá o seu destino decidido nos próximos dias. O Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) vai votar se aceita ou não pedido de tombamento do local. Se aprovado, o prédio onde hoje funciona o 36.º Distrito Policial (Vila Mariana) passará a abrigar um memorial da luta contra a tortura e a ditadura.
Será o terceiro centro cultural da cidade destinado a preservar a memória da resistência e da repressão políticas. Os outros dois, ambos na região central, são o Memorial da Resistência, que funciona desde 2009 na antiga sede do Departamento de Ordem Política e Social (Dops); e o Memorial da Luta pela Justiça, em fase de instalação no centenário casarão que abrigou a 2.ª Auditoria da Justiça Militar, na Rua Brigadeiro Luís Antônio. Juntos, vão compor o que está sendo chamado de Rota da Ditadura, com uma função didática parecida com a que foi montada em países europeus para lembrar as atrocidades do nazismo.
As três iniciativas fazem parte de uma onda que se estende pelo País, animada pelos debates provocados pela Comissão Nacional da Verdade e colegiados similares que não param de se multiplicar pelos Estados, municípios, universidades, sindicatos e estatais.
O governo federal é a principal força desse movimento. O Ministério da Justiça está investindo R$ 24 milhões na construção do Memorial da Anistia, no antigo prédio da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas de Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte. A inauguração, adiada duas vezes, agora está prevista para o final do governo da presidente Dilma Rousseff, uma ex-presa política.
Trilha da Anistia. Paralelamente, a Comissão da Anistia, vinculada à pasta da Justiça, deu início recentemente à instalação de dez pequenos memoriais para lembrar mortos e desaparecidos na ditadura. Vão compor a chamada Trilha da Anistia.
O primeiro, uma placa com os nomes de mortos e desaparecidos em Minas, foi instalado em Belo Horizonte, diante da antiga sede do Dops. O segundo está em Curitiba, na praça onde funcionou o comitê paranaense da luta pela anistia. O terceiro deve ser fincado na Cinelândia, no centro do Rio, para lembrar os militares que se opuseram ao golpe militar de 1964 e sofreram perseguições. O tipo de memorial e o local exato estão sendo discutido com o prefeito Eduardo Paes (PMDB).
As próximas capitais a integrar a trilha serão Fortaleza, São Paulo e Goiânia. O projeto dá continuidade à série denominada Pessoas Imprescindíveis, desenvolvida pela Secretaria de Direitos Humanos durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva. Ela resultou na instalação de 27 memoriais - a maioria deles constituídos por placas com nomes de cidadãos mortos por resistirem à ditadura.
O governo federal também participa de projetos patrocinados por governos estaduais. É o caso do Memorial da Democracia, no Recife. Iniciativa do governador Eduardo Campos (PSB), que cedeu o local, o histórico prédio do Liceu de Artes e Ofício, o futuro museu terá aportes da União. A estimativa é de cerca de R$ 6 milhões.
O novo memorial vai integrar a Rota da Ditadura - uma lista de locais históricos da capital pernambucana que têm ligações com a repressão no regime militar, entre 1964 e 1985. Inspiradora do projeto paulistano, a rota integra o guia turístico Recife Lugar de Memória, patrocinado pela prefeitura da capital e o Ministério da Justiça.
Sua idealizadora, a ex-presa política Amparo Araújo, atual titular da Secretaria Estadual de Articulação Internacional, diz que começou a pensar no assunto a partir de visitas a países da América Latina que também enfrentaram ditaduras e estão cuidando de preservar a memória do período. "É o melhor caminho para evitar que a violência se repita, que a tortura continue ocorrendo no País", diz.
Um dos locais de visita sugeridos é a Praça Padre Henrique - em homenagem ao auxiliar de d. Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife e um dos mais barulhentos opositores do regime militar. O padre foi assassinado em 1969, em circunstâncias até hoje não esclarecidas.
No centro da praça, na Rua Aurora, nas proximidades da antiga sede do Dops de Pernambuco, destaca-se a escultura Tortura Nunca Mais, do escultor Demétrio Albuquerque. Representa uma vítima pendurada num pau de arara - um dos mais conhecidos instrumentos de tortura na repressão.
Recife foi uma das primeiras cidades a inaugurar um monumento para lembrar as vítimas da ditadura, em 1993, e é uma das que mais investem na memória do período. Segundo Amparo, alguns projetos contam com recursos até de países europeus. Em São Paulo, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), responsável pelo Memorial da Luta pela Anistia, na antiga sede da Auditoria Militar, pretende captar recursos por meio de incentivos na Lei Rouanet.
Para o presidente da Comissão da Anistia e titular da Secretaria Nacional de Justiça, Paulo Abrão, a onda de memorialização no País segue a tendência mundial de preservação de sítios que ajudam novas gerações a valorizar a democracia. "O que temos ainda não dá conta de todas as aspirações dos movimentos sociais, mas já é um passo importante."