domingo, 4 de novembro de 2012

A Justiça em números


O Estado de S.Paulo Opinião 4 nov 2012
O levantamento estatístico das atividades do Poder Judiciário relativo ao exercício de 2011, feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), revela que, apesar dos investimentos em informatização, da criação de novas varas, da contratação de mais juízes e servidores e do aumento da produtividade da magistratura, os 90 tribunais de todo o País - o STF não entra na estatística - continuam abarrotados de processos, sem conseguir superar seus gargalos estruturais.
Verifica-se pelo estudo que continua crescendo a litigiosidade da sociedade brasileira. Em 1990, foram abertos 5,1 milhões de processos na primeira instância das Justiças Federal, Trabalhista e Estaduais. Em 2000, foram mais de 12 milhões. Em 2010, 24,2 milhões. E, no ano passado, o número de novas ações superou a marca de 26 milhões. Entre 2010 e 2011, a produtividade dos juízes e dos tribunais aumentou 7,4%. "Os números são avassaladores. Os casos novos aumentam a cada ano e a Justiça não consegue reduzir o estoque de processos", diz o conselheiro Guilherme Werner.
Ao todo, tramitaram nas diferentes instâncias e braços especializados do Judiciário 90 milhões de processos novos e antigos, em 2011 - em 2010, foram 83,4 milhões de processos. No ranking dos maiores litigantes, destacaram-se, no levantamento do CNJ, o setor público federal, os bancos, as empresas de telefonia e órgãos públicos municipais e estaduais. O Instituto Nacional do Seguro Social foi o órgão público - tanto como réu quanto como autor - mais envolvido nas ações judiciais de primeira instância, seguido, pela ordem, da BV Financeira, do município de Manaus, da Fazenda Nacional, do Estado do Rio Grande do Sul, de municípios do Estado de Santa Catarina, do Bradesco, da Caixa Econômica e do Banco Itaú. Isso mostra que a maioria das novas ações envolve litígios de massa, relativos a direito previdenciário e do consumidor.
Por isso, uma das soluções propostas pelo CNJ para desafogar a primeira instância das Justiças Federal e Estaduais é aumentar os investimentos em mecanismos alternativos de resolução de conflitos, como os centros de conciliação e mediação. "O CNJ tem incentivado a criação de centros de mediação nos tribunais, não só para resolver de forma eficiente os processos em estoque, mas também para atuar em conflitos que ainda não chegaram ao Judiciário", afirma Werner.
Outro fator que retarda o julgamento dos processos e contribui para o congestionamento das instâncias superiores, segundo o CNJ, é o grande número de recursos previstos pela legislação processual civil e penal. No caso do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, são protocolados mensalmente 27 mil recursos. Há um mês, o presidente da Corte, ministro Felix Fischer, pediu à Câmara dos Deputados a aprovação da PEC que autoriza a Corte a implantar um mecanismo processual nos moldes do princípio da repercussão geral, que já é aplicado aos recursos enviados ao STF. Segundo esse princípio, quando essa Corte declara que um certo tema tem repercussão geral, os demais tribunais suspendem o envio de recursos semelhantes, até que o plenário julgue o caso.
Recentemente, o CNJ encaminhou ao Congresso várias sugestões para reforma do Código de Processo Civil, com o objetivo de reduzir o número de recursos e agilizar o encerramento dos processos. Em 2011, cada um dos 33 ministros do STJ julgou, em média, 6.955 ações. No Tribunal Superior do Trabalho (TST), em cujo âmbito tramitaram 371 mil ações, a média foi de 6.299 processos por ministro. E, no Tribunal Superior Eleitoral, ela foi de 1.160 processos por ministro.
No plano orçamentário, as despesas do Judiciário totalizaram R$ 50,4 bilhões em 2011 - 1,5% a mais do que em 2010. Desse montante, 90% se referem a gastos com pessoal ativo e aposentado, diárias e passagens. Entre os tribunais superiores, que têm 82 magistrados e 6.458 servidores efetivos, requisitados e comissionados, o TST e o STJ gastaram 99,7% e 90% de seu orçamento, respectivamente, com recursos humanos. A Justiça, além de morosa, é cara.

Autoridade


UGO GIORGETTI - O Estado de S.Paulo
Na época de ouro da várzea, quando havia jogos importantes nos campos da zona norte, chamavam para apitar o grande Lupércio, a raposa da várzea, como ele mesmo se intitulava. Ninguém podia contestar suas decisões. Ex-pugilista, grande brigador de rua, valente lendário, resolvia as questões mais agudas no braço.
Naquela várzea indisciplinada, em que jogava qualquer um, elementos até mesmo estranhos e às vezes perigosos, jamais uma partida do Lupércio não chegou ao fim ou sua autoridade foi posta à prova. Quando alguém do time supostamente prejudicado ousava pedir a substituição do juiz durante a partida, sua resposta era sempre a mesma: "Não tem problema. Tá aqui o apito, pode vir buscar. Mas traz uns três ou quatro junto com você". Ninguém ia.
No futebol profissional também havia esse tipo de árbitro. Mario Vianna, famoso juiz carioca, tinha sido policial na famosa PE do Rio de Janeiro. Tinha briga para uns cinco ou seis. Enfrentou nas ruas do Rio até Madame Satã, valente retratado em mais de um filme. No campo, quem pensasse em reclamar ele já chegava junto. Não havia nem cartão amarelo e nem vermelho naquele tempo. Havia Mario Vianna, e o que ele apitava estava acabado, não se discutia mais.
Armando Marques era outro que, com métodos diferentes, impunha sua autoridade. De voz fina, dando corridinhas estranhas pelo campo, a impressão que dava era de estar na mão dos jogadores. Expulsou Pelé e Coutinho num famoso Santos x São Paulo. Num Fla x Flu, validou um gol de mão talvez mais evidente que este gol do Barcos, que está dando tanto o que falar. Houve foto de revista com a bola encostada na mão do jogador. Mas prevaleceu sua autoridade quase arrogante.
Lembro de Dulcidio Vanderley Boschila, também ex-PM, que xingava jogador em campo e chamava para a briga. Apitou jogos em que teve uma atuação polêmica, nunca se acovardou e sustentou suas decisões, certo ou errado.
Romualdo Arpi Filho mantinha a autoridade na base da esperteza. Era mais malandro que os jogadores em campo. Mais inteligente que todos. Trazia a partida sob controle com picardia, combinando situações aparentemente contraditórias, e tinha sempre o jogo na mão.
Tudo isso pra dizer que o que está faltando para muitos árbitros hoje é coragem. Fora algumas exceções, vemos árbitros apavorados com a televisão. Sabem que há uma câmera que vê melhor do que eles, e morrem de medo dela. Os árbitros não estão lá para fazer justiça e nunca se esperou isso deles. Estão lá para impor um determinado ordenamento que leve o jogo a termo. Sempre foi assim e todo mundo sabe disso, de outra forma os árbitros não seriam vaiados já ao entrar em campo. A escola de árbitros, portanto, deveria ensinar principalmente como se portar em campo, ensinar ao árbitro o que ele é e representa. O problema é que não se ensina a ser um Mario Vianna ou Armando Marques.

A mesma cela, a mesma cena


PAULA SACCHETTA - O Estado de S.Paulo, Aliás, 28 out 12

Nazareth Folli tem 65 anos, mas não aparenta mais que 50. Diz, meio ironizando, que a vida de guerreira mantém a pele assim. "O que eu já sofri, você não tem ideia", emenda. Sua mãe era irmã de Maria Sierra, casada com José Ferreira de Almeida, e ela cresceu com seus pais e os tios em casas vizinhas que compartilhavam o quintal, na Rua Ibirajá, zona sul de São Paulo. Como os tios não tinham filhos, Nazareth foi adotada por eles também. Para não gerar ciúme, chamava-os de Nona e Nono, porque mãe e pai já tinha.
No xerox da imagem feita pela repressão, Piracaia está na cela em que Vlado foi fotografado - Reprodução
Reprodução
No xerox da imagem feita pela repressão, Piracaia está na cela em que Vlado foi fotografado
Seu Nono é o personagem desta história. Nascido em 1911, José Ferreira de Almeida saiu de Piracaia para São Paulo atrás de uma vida melhor. Fez carreira na Guarda Civil e, com a extinção da guarda em 1969, virou tenente da Polícia Militar. Não tinha estudos, mas era perspicaz. Preservava as amizades dentro e fora da Guarda Civil e sempre parecia disposto a ajudar os outros. "Por isso acho que aconteceu o que aconteceu com ele", diz Nazareth.
Ela chora. "É ruim mexer numa ferida, a minha está assim, com uma casca bem grossa, até hoje não tive muita condição de falar para que ela cicatrizasse. Ainda temos medo." Interrompe a entrevista. "Se eu parar de falar é porque minha mãe chegou. Vou dizer que você foi minha aluna, tudo bem? Ela tem 91 anos, por que vou lembrá-la agora de uma história dessa?" Nazareth é professora de biologia aposentada. Evita que a mãe recorde o destino do tenente Almeida, também conhecido como Piracaia, preso em 7 de julho de 1975 e morto um mês depois, no DOI-Codi paulista, centro de repressão e tortura da ditadura militar.
Em julho de 1975, 63 policiais militares foram presos e processados, acusados de serem comunistas. Entre eles estava o tenente Almeida, então diretor do Clube dos Oficiais da Reserva, à época uma espécie de sindicato dos policiais. Segundo Nazareth, e diferentemente do que alguns afirmam, o tenente não era do Partido Comunista Brasileiro (PCB). "Só tinha ideias avançadas demais pro período", já que lutava por salários melhores e fazia outras reivindicações para sua categoria.
Os agentes da repressão iam com frequência à casa de Almeida. Num sábado apareceram na de Nazareth, que tinha 28 anos, e deram um ultimato: "Ou ele se entrega ou levamos você". Na segunda-feira, dia 7 de julho, o tenente se entregou e foi detido.
Piracaia ficou dez dias incomunicável até que Luiz Eduardo Greenhalgh, o advogado da família, conseguiu vê-lo no Dops. Tinha 63 anos e apresentava sinais evidentes de tortura. Ao conversar com o advogado, ficou meio de lado. Não conseguia sentar direito na cadeira. Olhou para ele e disse: "Saí do inferno, estou melhor aqui". O inferno era o DOI-Codi. Greenhalgh conseguiu examiná-lo rapidamente: tinha as costas cortadas, a parte posterior dos joelhos roxos por causa do pau de arara, hematomas pelo corpo todo e o lóbulo da orelha e o nariz queimados.
Frutuoso Luiz Martins, hoje com 77 anos, dividiu a cela com Piracaia. Era diretor do Centro Social dos Guardas Civis de São Paulo e bem mais jovem que o amigo, com quem conviveu por 12 anos. "Para a ditadura", conta, "todo mundo que era das entidades de representação da categoria fazia parte do Partidão, era comunista." Frutuoso também foi preso em 1975. Quando chegou à cela e viu o amigo, chegou cumprimentando, querendo dar um abraço. "Eu não podia fingir que não conhecia aquele companheiro", lembra. A reação de Almeida foi estranha. Depois, sentindo-se menos vigiado, explicou o porquê da frieza e pediu perdão.
Conversavam pouco. Não demorou, Almeida mudou de cela e o amigo não teve mais notícias dele. Frutuoso passou 31 dias preso e, depois de solto e expulso da PM, foi absolvido por "inexistência de crime". Mais tarde, reintegrado à Polícia Militar, seus superiores não queriam que nem ele nem os demais ex-prisioneiros voltassem à ativa. Assim, ainda jovens, foram aposentados por invalidez e suas esposas passaram a receber a mesma pensão de viúvas de PMs mortos.
Outro militar preso em 1975 foi Francisco Jesus da Paz. Ele era de uma organização de luta armada, a Política Operária (Polop), mas afirma que sua ficha no Dops o vinculava ao PCB. Francisco presidia a Associação dos Sargentos da PM nos anos 1970. A entidade defendia o voto para cabos e soldados. Pregava a democratização da carreira, vista como muito elitizada. Foi um dos primeiros a ser preso e o último a sair: passou mais de 45 dias entre o DOI-Codi e o Dops. Ao ser preso, foi logo submetido a sessões de tortura e de acareação com Almeida. "Ele estava muito machucado. A tortura que sofríamos era muito mais pesada porque, além de sermos tachados de comunistas, éramos traidores, e isso tornava nossos torturadores mais selvagens, mais perversos", conta Francisco.
Quando Nazareth e Maria conseguiram finalmente visitar Almeida no Dops, colocaram-nas em uma sala totalmente revestida de carpete vermelho. Ele pediu que não o abraçassem: "Estou muito dolorido". Foi a única vez que viram o Nono. O advogado até conseguia agendar visitas das duas no Dops, mas elas ficavam horas esperando até que alguém informava: "Ele não está aqui hoje", ou "Ele não vai poder receber visitas".
Maria começou a apresentar uma tosse muito forte logo nos primeiros dias da prisão do marido. A tosse era decorrente de um problema cardíaco, que deu seus primeiros sinais logo depois da prisão. "Nos sentíamos impotentes", lembra Nazareth. Uma amiga dela passou a dirigir seu carro para que perambulassem pela cidade em busca de notícias.
Até que um dia bateu na porta da casa de Nazareth, onde Maria também estava, um oficial de alta patente da Polícia Militar. Trazia a notícia de que o tenente havia se enforcado. Em choque, Maria gritou: "Mataram ele!" A família recebeu o corpo em um caixão lacrado e, com honras de policial, ele foi velado no Hospital da Cruz Azul, da PM. Durante a noite inteira entravam no velório pessoas que ninguém conhecia. Eram militares à paisana. Desobedecendo às ordens, o advogado abriu o caixão lacrado. Ele e Maria puderam ver que o tenente tinha vários hematomas pelo corpo e dois sulcos no pescoço, um inclinado e outro reto. "Era claro que ele não tinha morrido asfixiado", diz Greenhalgh, que logo entraria com uma representação no Conselho Regional de Medicina contra Harry Shibata e Marcos de Almeida, legistas que assinaram o laudo da autópsia registrando como causa mortis asfixia mecânica. O CRM arquivou o processo logo depois. O advogado também entrou com um pedido na Auditoria Militar para que um inquérito fosse aberto, o que nunca aconteceu.
Dois meses depois, no dia 25 de outubro - esta semana completaram-se 37 anos do ocorrido -, o jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, foi mostrado morto nas mesmas condições e na mesma cela, a número 1 do DOI-Codi, à Rua Tomás Carvalhal, 1030. O professor e pesquisador da USP Mário Sérgio de Moraes ironiza: "Eles foram enforcados com o mesmo cinto". Nas fotos oficiais, ambos estavam com os joelhos dobrados, ao lado de um colchão, e pendurados na mesma janela. E ambos tiveram no suicídio a versão oficial de morte, assinada pelo médico Harry Shibata. "Havia um modelo para dissimular as atrocidades, era o modus operandi para montar a farsa", explica o professor.
No dia 24 de setembro deste ano, Vladimir Herzog teve seu atestado de óbito retificado. Em vez de "asfixia mecânica", agora consta que a morte dele "decorreu de lesões e maus-tratos sofridos em dependência do II Exército - SP (DOI-Codi)". O juiz Márcio Martins Bonilha Filho, da 2ª Vara de Registros Públicos do TJ-SP, atendeu ao pedido feito pela Comissão Nacional da Verdade. Além de Vlado e do tenente Almeida, outros morreram "suicidados" da mesma forma. Exemplo disso é o operário Manoel Fiel Filho, morto em janeiro de 1976. Segundo o jornalista Elio Gaspari, oficialmente, José Ferreira de Almeida era o 36º preso a se suicidar dentro de uma prisão da ditadura, o 16º enforcado e o 7º a fazê-lo sem vão livre.
Nazareth e um primo entraram com um pedido de indenização junto à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), indeferido em 1996, pois o requerimento fora encaminhado por dois sobrinhos, quando a lei impede o pleito por parentes indiretos. Maria Sierra, sua esposa, já havia morrido, o casal não deixou filhos e os ascendentes do tenente também já tinham falecido. Não existia mais nenhum parente que pudesse receber a indenização. No entanto, a CEMDP reconheceu a responsabilidade dos agentes do Estado brasileiro pela morte do tenente. Nazareth afirma que o dinheiro da indenização não importava, afinal "não há dinheiro nenhum que pague o que aconteceu com nossa família", mas entrou com o pedido para receber alguma declaração oficial do Estado.
A sobrinha, que já atravessou algumas crises depressivas, hoje vive rodeada de animais - em aquários, gaiolas e soltos pela casa. Em seu último tombo emocional comprou a cachorrinha Flufy, que vem atender na porta as visitas que chegam. Nazareth espera conseguir um atestado de óbito com a causa mortis real de seu tio: morto sob tortura. Concorda que o caso de Vlado abre um precedente para que outras famílias peçam o mesmo.
Maria Sierra morreu em 1977 por causa dos problemas cardíacos que começou a apresentar logo depois da prisão do marido. Contam que os dois eram grudados, eternos namorados. E que ela morreu de tristeza. O nome do tenente está na lista dos 140 mortos e desaparecidos que a Comissão Nacional da Verdade vai investigar. Mas, até agora, Tenente José Ferreira de Almeida é apenas a designação de uma rua no bairro do Jabaquara, na qual Nazareth nunca teve coragem de pôr os pés.