sexta-feira, 9 de agosto de 2024

A morte lenta e dolorosa da Lei Cidade Limpa, Douglas Nascimento , FSP

 

Douglas Nascimento
São Paulo (SP)

Em vigor desde 1º de janeiro de 2007, a Lei Cidade Limpa foi sancionada no final do ano anterior pelo então Prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, e serviu para regular o tamanho de letreiros, placas, luminosos de estabelecimentos comerciais e proibir a propaganda em outdoors na capital paulista.

Antes da aprovação de Lei Cidade Limpa, em 2007, cenário paulistano era de muita poluição visual. Na foto outdoor com a modelo Daniela Cicarelli, no Elevado João Goulart. - Rubens Cavallari/Folhapress

A princípio, como toda lei polêmica, ela dividiu a opinião da população paulistana, apesar da ampla margem de pessoas favoráveis a nova lei municipal. Naquele já distante ano de 2007 os principais opositores foram aqueles que sempre poluíram visualmente a cidade sem pouco se importar com qualidade de vida como, por exemplo, empresas de publicidade focadas em outdoors, que tiveram que mudar de ramo ou migrar para outras cidades.

Rapidamente o paulistano viu os benefícios da Lei Cidade Limpa, com a remoção de propagandas gigantes por toda a cidade, e a redescoberta de fachadas antigas centenárias, antes escondidas por luminosos enormes. Ouso dizer que possivelmente essa lei, moderna e focada no bem estar do cidadão, é disparada a maior lembrança que o paulistano tem da gestão de Gilberto Kassab.

sobrado do século 10
Fachadas de sobrados históricos do final do século 19, na avenida Rangel Pestana, que até a criação da Lei Cidade Limpa estavam escondidas com luminosos enormes. - Douglas Nascimento/São Paulo Antiga

Mas, como tudo que é bom dura pouco, a Lei Cidade Limpa foi aos poucos sendo alterada e mutilada a cada ano que passava, para atender a interesses dessa ou daquela empresa, em detrimento do cidadão.

Curiosamente foi o próprio Kassab o primeiro a fazer alterações na lei, trazendo de volta a poluição visual dos famigerados relógios de rua, que marcam horário e temperatura e em troca mostram publicidade, como se fosse necessário manter esses relógios espalhados pela cidade em pleno século 21, onde todo mundo tem celular, relógio no carro, no pulso, monitores em ônibus etc. Seu sucessor, Fernando Haddad, poderia ter revogado essas mudanças, como fez com o famigerado CONTROLAR mas não quis.

De lá para cá a lei sofreu diversas alterações, reduzindo cada vez mais o seu alcance, e a própria prefeitura foi relaxando as fiscalizações, deixando a lei cada vez mais de lado, em detrimento do bem-estar do paulistano. Porém em 2024 o que se vê é uma lei que além de carente de fiscalização, é cada vez mais desrespeitada por empresas de todo o tipo.

lei cidade limpa
Publicidade alusiva a filme em cartaz nos cinemas paulistanos e a um combo de lanches da rede de fast food Burger King, na avenida Paulista. - Douglas Nascimento/São Paulo Antiga

Semana passada a rede de fast food Burger King resolveu decorar a fachada de uma de suas principais lojas na capital paulista, localizada na esquina das avenidas Paulista e Brigadeiro Luís Antônio com duas imagens gigantes de personagens de um filme que está em cartaz. A ação, que a meu ver faz o paulistano de bobo, não menciona o filme mas basta você estar minimamente antenado com a programação dos cinemas para saber do que se trata, ou então entrar na loja e ser bombardeado com a publicidade do "combo dos parças" que é alusiva aos mesmos personagens.

Já na região da Sé o que se vê é outra estratégia de violação da Lei Cidade Limpa, essa adotada por bets e cassinos virtuais. Para embarcar na onda do grafite, modalidade artística que a capital paulista se destaca, essas empresas estão pagando grafiteiros para fazer murais que são, nada menos, que publicidade disfarçada de arte em muros da cidade e bancas de jornais. Para evitar multas ou receber uma punição mais dura, esses grafiteiros não assinam essas obras como é de praxe em seus trabalhos.

É assim que a empresa de jogatina virtual Brazino 777 tem espalhado diversas publicidades disfarçadas de grafite pela cidade, as quais já localizei nas regiões central, norte e leste de São Paulo. Outra empresa a fazer o mesmo truque é a empresa de apostas Vai Vai Bet, que tem espalhado sua propaganda em bancas da região central de São Paulo, principalmente no bairro da Bela Vista.

A POSIÇÃO DAS EMPRESAS E DA PREFEITURA

Consultada sobre o envelopamento de sua loja com a publicidade de filme que é alusivo a seu combo de lanches, o Burguer King limitou-se a responder que sua ação está de acordo com as diretrizes da Lei Cidade Limpa, mas não encaminhou nenhuma documentação que autoriza sua veiculação. Também consultadas, as empresas Brazino 777 e Vai Vai Bet não responderam aos questionamentos até o fechamento desse texto.

lei cidade limpa
Publicidade alusiva a filme em cartaz nos cinemas e a combos da rede Burguer King, ausência de textos é um "jeitinho brasileiro" aplicado na lei Cidade Limpa, como se fosse apenas manifestação artística. - Douglas Nascimento/São Paulo Antiga

Já a prefeitura de São Paulo, através da Secretaria Municipal das Subprefeituras, enviou a seguinte resposta: "A Secretaria Municipal das Subprefeituras informa que os locais serão fiscalizados e autuados, caso sejam constatadas irregularidades. Este ano, a Prefeitura de São Paulo já aplicou 130 multas por descumprimento da Lei Cidade Limpa, que totalizaram mais de R$ 2,46 milhões.". No entanto a secretaria não respondeu se essas propagandas são irregulares ou não e se seriam eventualmente multadas.

PREFEITURA APAGA GRAFITES

Apesar de a secretaria não ter respondido na nota sobre a legalidade ou não destas publicidades em questão, ao menos ficou evidente que os grafites da Vai Vai Bet e Brazino 777 não estavam em conformidade com a lei, pois a própria prefeitura apagou os grafites após nosso contato. Resta saber se as empresas foram ou serão multadas e qual será a punição para o caso de haver reincidência.

LEI PODE SOFRER OUTRA MUTILAÇÃO

A já tão desfigurada e desrespeitada Lei Cidade Limpa está prestes a sofrer mais um duro golpe. A Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL) realizou nesta última quarta-feira, 7 de agosto, uma reunião ordinária da Comissão de Proteção à Paisagem Urbana (CPPU) que prevê alterações que irão beneficiar empresas como construtoras em stands de vendas, liberando painéis de led de até 10m² em funcionamento das 7h às 22h, e para empresas do ramo de varejo de produtos para pets, a adesivagem do lado externo de suas fachadas.

O que o paulistano está prestes a assistir é a morte lenta e dolorosa daquela que é uma das leis mais sensatas que já se aprovaram em São Paulo.


Lei Maria da Penha e a caixa-preta da família tradicional, André Roncaglia, FSP

 A Lei Maria da Penha completou 18 anos nesta semana. Infelizmente, o avanço na conscientização sobre a violência doméstica coexiste com a baixa efetividade das políticas de proteção às vítimas.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, publicado pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), mostra que ser mulher no Brasil é atividade de alto risco de letalidade. Entre 2022 e 2023, os casos de violência doméstica registrados cresceram 10%, de 236 mil para 259 mil. Esse dado é certamente subestimado.

Para entender isso, precisamos analisar a unidade familiar, idealizada por neoliberais, como Milton Friedman, como um espaço de harmonia e segurança a ser protegido da intervenção do Estado. Essa perigosa fantasia esconde as relações de poder desiguais que permeiam as dinâmicas familiares.

A economia feminista abre a caixa-preta da sagrada família e desvela as raízes econômicas da violência doméstica, apontando para a construção de políticas públicas mais eficazes e para a redução das assimetrias de poder dentro do lar. Se o ambiente doméstico é visto como espaço de produção e reprodução, as desigualdades de gênero ficam explícitas, a começar pelo trabalho não remunerado, predominantemente realizado por mulheres.

Maria da Penha Maia Fernandes, cujo nome batiza a lei contra a violência contra a mulher - Jarbas Oliveira

A economista Nancy Folbre, por exemplo, destaca a importância do trabalho não remunerado para a economia e a sociedade. Ao cuidar da casa, dos filhos e dos idosos, as mulheres garantem a reprodução da força de trabalho e a manutenção da vida social. Esse trabalho não remunerado subsidia o valor da força de trabalho e viabiliza a economia de mercado. Liberais ignoram esse imposto regressivo e sem representação que incide sobre as famílias.

O saber econômico convencional invisibilizou, por séculos, esse trabalho essencial ao capitalismo. Como mostra Melinda Cooper, em seu livro "Family Values", o neoliberalismo foi além: romantizou a subordinação feminina e naturalizou a desigualdade de gênero.

O trabalho doméstico desvalorizado torna as mulheres economicamente dependentes dos homens, sujeitando-as a vários tipos de violência que escapam ao radar masculino. Entre elas está a violência patrimonial, isto é, a apropriação ou a destruição de bens, a limitação do direito de ir e vir e o controle do dinheiro. Ao controlar os recursos financeiros da família, o agressor restringe a autonomia da mulher e a impede de romper com a relação abusiva. Essa é uma causa importante de subnotificação de ocorrências.

A economia feminista oferece subsídios importantes para a construção de políticas públicas mais eficazes no combate à violência doméstica. Valorizar o trabalho doméstico exige garantir direitos trabalhistas e previdenciários às mulheres. O acesso à educação e ao mercado de trabalho por meio de maciços investimentos na área de cuidados (como creches) promove a autonomia financeira das mulheres e protege as crianças.

Estudo do Made-USP criou um Indicador de Infraestrutura Social de Cuidado (IISC) para avaliar a desigualdade regional na oferta de serviço de cuidados. As mulheres são maioria nesse setor, mas são mais informalizadas e recebem menos do que os homens. O eixo centro-sul tem uma melhor provisão de cuidado em relação às regiões Norte e Nordeste. Em outros recortes, o meio rural enfrenta aguda escassez de serviços remunerados de cuidado e o setor privado domina a oferta desses serviços, enquanto a maioria da população brasileira depende do cuidado público.

A Lei Maria da Penha reforça o imperativo de denunciar os agressores e proteger as vítimas. Ela indica, sobretudo, a centralidade das políticas públicas que rompem com os ciclos de violência e promovem a igualdade de gênero em todas as esferas da vida, em particular, dentro do lar. Sem isso, a sagrada família continuará ocultando perniciosos pecados.