domingo, 3 de setembro de 2023

Ruy Castro - O batismo da Luluzinha, FSP

 Todo escritor já sonhou com isso: criar personagens cujos nomes se incorporem à língua como se eles tivessem existido. Algo assim como Iracema, Capitu, Macunaíma, Gabriela ou a garota de Ipanema —tornaram-se tão parte de nossa vida que muitos se surpreendem ao saber que eles foram inventados. E, pensando bem, por que precisariam saber? Bem, não posso falar pelos outros, mas eu quero saber. Daí, fiquei contente por descobrir, pelo obituário da Folha (26/8), quem batizou aquela deliciosa turma dos quadrinhos: Luluzinha, Bolinha, Aninha, Raposo, Glorinha, Alcéia —a turma do Bolinha, você sabe.

Exemplares originais das revistas Luluzinha e Bolinha dos anos 50 pela Editora O Cruzeiro - Heloisa Seixas

Foi a tradutora paulistana Maria Flora Whitaker Salles, que acaba de nos deixar, aos 86 anos. Em 1955, "Little Lulu", um sucesso dos gibis americanos, fora comprado pela então poderosa editora de O Cruzeiro, cuja diretora, Maria Amélia Whitaker Gondim de Oliveira, era prima de Maria Flora. Maria Amélia lhe ofereceu o trabalho. Maria Flora aceitou e, de seus amigos, conhecidos e familiares, saíram os nomes que ela sapecou em Luluzinha e demais personagens —no caso dos mais antipáticos, não sem uma ponta de maldade da tradutora.

Daí me perguntei sobre outros antigos heróis dos quadrinhos. Quem batizou os sobrinhos do pato Donald, Hughie, Dewie e Louie, de Huguinho, Zezinho e Luizinho? E Scrooge McDuck de Tio Patinhas? E os esquilos Chip e Dale de Tico e Teco? Quem fez de Bugs Bunny, Pernalonga? De Alley Oop, Brucutu? De Maggie e Jiggs, Pafúncio e Marocas? De L’il Abner, Ferdinando? E, da mãe de Ferdinando, Mammy Yokum, Chulipa Buscapé? Alô, pesquisadores.

Nem sempre deu certo. Clark Kent, recém-chegado ao Brasil, ganhou o nome de Edu. Não colou. Já Batman começou como o Homem-Morcego e logo teve de voltar a ser Batman.

Mas ninguém supera Maria Flora. Foi madrinha também de Zé Colméia, Catatau, Dom Pixote, Manda-Chuva, Babalu e Pepe Legal.

Hélio Schwartsman - Não é minha culpa..., FSP

 Num surto de sinceridade, o candidato a presidente aparece diante da câmera de TV e diz: "Eu sou um ladrão, um canalha, sou a pior escolha que você poderia fazer para a Presidência". Ele até perderia alguns votos, mas seus apoiadores mais entusiasmados diriam: "Eis aí um homem honesto. É preciso ter caráter admitir isso. É exatamente o tipo de pessoa que precisamos na Presidência".

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 3 de setembro de 2023, faz uma releitura da ilustração de Milo Winter para a clássica fábula "A Raposa e as Uvas", atribuída a Esopo e reescrita por Jean de La Fontaine. Mostra uma raposa desdenhando uvas maduras em uma parreira inalcançável.
Ilustração Annette Schwartsman

A piada acima consta de "Mistakes Were Made (But Not by Me)" (erros foram cometidos, mas não por mim), de Carol Tavris e Elliot Aronson. A dupla analisa detalhadamente os mecanismos da dissonância cognitiva e o faz com um olho na política, que é um dos terrenos mais propícios para a ocorrência desse fenômeno.

A dissonância cognitiva foi proposta nos anos 50 por Leon Festinger, com o qual Aronson trabalhou. Ela se dá quando existe uma incoerência entre atitudes e comportamentos que julgamos adequados e a realidade. Esse choque pode ser mentalmente doloroso, daí que o cérebro se vale de subterfúgios para reduzir a distância entre o esperado e o verificado. São as autojustificativas.

O sujeito pode simplesmente fingir que não viu o dado que o incomoda. É o viés de confirmação em ação. Pode também recorrer a narrativas com o objetivo de reduzir a incongruência entre o esperado e o constatado. É a raposa da fábula de Esopo dizendo que as uvas que ela não consegue alcançar estão verdes. Outra possibilidade é agir como o eleitor da piada, subvertendo inteiramente a interpretação dos fatos. Embora menos frequente, também é possível admitir que estávamos errados e reajustar as crenças.

O livro não é exatamente novo. Sua primeira versão é de 2007, daí que abundam exemplos de autojustificativas usadas na invasão do Iraque pelos EUA. Mas a última edição ganhou um capítulo dedicado a Trump e seus seguidores. É impressionante como ele se adapta com modificações mínimas a Bolsonaro e seus asseclas.

A Lua é sempre a mesma; o que muda são os nomes, Salvador Nogueira, FSP

 Numa época em que o céu precisa competir (e quase sempre perde) com a intensa poluição luminosa urbana e em que veículos de comunicação precisar buscar cliques a (quase) qualquer preço, temos visto uma proliferação da divulgação de eventos astronômicos "raros" e "espetaculares" que, por vezes, deixam quem os vê se perguntando se está com problemas na vista.

Pois é, mesmo os mais desenganados com a astronomia costumam ver a Lua no céu com frequência, e a dita cuja repete um ciclo mais ou menos tedioso em sua jornada de 29,5 dias por quatro fases, conforme trafega em sua órbita ao redor da Terra, e o planeta avança mais um pouquinho em seu trajeto em torno do Sol. Esperar que algo muito raro aconteça nessas circunstâncias, o senso comum já diz que é errado. Mas vira e mexe tentam nos convencer do contrário.

Peguemos o mais recente exemplo, a tal "Superlua Azul", que aconteceu na última quarta-feira (30) e foi festejada em alguns cantos da internet como um evento raro, do qual o último exemplar ocorreu em dezembro de 2009 e o próximo, só em janeiro de 2037.

Jonay Ravelo e seu cavalo Nivaria observam a Superlua Azul na ilha Grã Canária, Espanha, em 31 de agosto
Jonay Ravelo e seu cavalo Nivaria observam a Superlua Azul na ilha Grã Canária, Espanha, em 31 de agosto - Borja Suarez/Reuters

Não me leve a mal. A Lua estava mesmo linda e merecia ser admirada. A fase cheia foi atingida ao mesmo tempo em que o satélite natural alcançou o perigeu de sua órbita –o ponto mais próximo da Terra em um trajeto que, como sabemos, não é perfeitamente circular, mas elíptico. Com isso, esteve 14% maior e 30% mais brilhante do que quando está no apogeu (o ponto mais distante). Por essas características vistosas, o fenômeno ganha o apelido de Superlua. Mas não é raro. Ocorre três ou quatro vezes ao ano. Esta, do último dia 30, foi a terceira seguida, de quatro. Em setembro teremos mais uma.

Ué. E o papo de que a próxima é só em 2037? Entra a combinação da Superlua (fase cheia próxima ao perigeu) com a tal Lua Azul que, surpresa, não tem nada de azul. É só um apelido para se referir a uma segunda Lua cheia que ocorre no mesmo mês. Veja só: se o ciclo das fases lunares leva 29,5 dias, e a maioria dos meses tem 30 ou 31 dias, tudo que é preciso para que um mês tenha uma Lua Azul é que ocorra uma primeira Lua cheia logo no comecinho do mês. Isso também não é absurdamente incomum, ocorrendo em média uma vez a cada dois ou três anos.

Juntando a simultaneidade das duas ocorrências, chegamos à coisa da "raridade" –que na verdade não merece tanta atenção, porque não implica algo diferente a ser visto no céu. Uma Superlua Azul é indistinguível de uma Superlua, que, por sua vez, é bonita, mas não está tão distante assim de qualquer outra Lua cheia.

Os fenômenos mais incomuns e interessantes envolvendo a Lua são mesmo os eclipses, que podem ser do tipo solar (quando a Lua bloqueia ao menos parte do disco solar) e do tipo lunar (quando ela transita por trás da sombra da Terra). E mesmo esses não são excessivamente incomuns, embora se possa distingui-los (assim como as Superluas) por características específicas como distância da Terra à Lua, duração do fenômeno etc.

É sempre muito legal quando a mídia chama a atenção do público para um evento astronômico. Mas há de se ter cuidado e precisão para não anestesiá-lo ou frustrá-lo com promessas de espetáculo ou raridade que depois se mostram vazias. A Lua é mesmo linda, mas pelo que é –e seguirá sendo a mesma de sempre, não importa o que digam por aí.

Esta coluna é publicada às segundas-feiras na versão impressa, na Folha Corrida.

Siga o Mensageiro Sideral no FacebookTwitterInstagram e YouTube